Opinião

Cor púrpura na 111ª Conferência da OIT: greve feminista e oportunidades iguais

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16 de junho de 2023, 9h19

No último dia 14 de junho, durante a 111ª Conferência Internacional do Trabalho (CIT), Gilbert F. Houngbo (diretor-geral da OIT) discursou no  Palácio das Nações (Genebra), evocando a importância de escutarmos e respondermos aos pleitos por justiça social, tão reivindicados por trabalhadores e trabalhadoras ao redor do mundo[1].

Justiça social essa que, para Houngbo, é indispensável para tornar nossas sociedades e economias mais coerentes, produtivas e pacíficas. Justiça Social sem a qual não é possível estabelecer a confiança nas instituições, tampouco demonstrar a existência de um multilateralismo que responda às mais diversas demandas da população[2].

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Passeata de protesto em Genebra (SUI)
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Enquanto o diretor-geral discursava, as ruas da cidade foram sendo tomadas por um oceano de cor púrpura: milhares de pessoas, especialmente mulheres, reuniam-se nos quatro cantos da cidade. Tratava-se da 3ª Greve Feminista Suíça, por meio da qual se buscou a tomada de diversas medidas concretas para alcançar uma sociedade mais igualitária, justa, antirracista e anticapitalista, para todas e todos[3].

A primeira dessas greves aconteceu também no dia 14 de junho, no ano de 2019, tendo se originado na primavera de 2018, logo após o congresso de mulheres da União dos Sindicatos Suíços (USS). Naquele evento, a proposta era justamente organizar uma grande greve feminista, o que foi ganhando fôlego por meio de organizações e discussões de movimentos sociais ao longo do ano de 2018 e do primeiro semestre de 2019. A segunda greve aconteceu em 2020 e a terceira, enfim, há poucos dias.

A escolha do dia 14 de junho como data para a mobilização feminista Suíça não foi ao acaso. De acordo com a organização do movimento[4], em 1981 a Constituição do país consagrou novo dispositivo específico sobre a igualdade de gênero. Contudo, após dez anos, nada havia mudado — por exemplo, a desigualdade salarial entre homens e mulheres persistia no país. Em virtude disso, em 14 de junho de 1991 houve a primeira greve nacional das mulheres na Suíça desde 1918[5].

No ano de 1991, algumas das reivindicações centrais estavam voltadas à igualdade salarial e ao reconhecimento do valor social do trabalho de cuidado. Ainda, a organização voltava-se contra o sexismo e a violência sexual[6].

De fato, os pleitos da greve do 14 de junho de 2023 não passaram longe disso. Ao contrário, a pauta das manifestantes também incluía o enfrentamento dessas questões[7], que ainda permanecem latentes na sociedade suíça de 2023, conforme informações oriundas das organizações do movimento grevista.

Pesarosamente, o cenário de desigualdades de gênero no mundo do trabalho não é matéria afeta exclusivamente à Suíça.

No Brasil, o contexto não é diferente. Ao contrário, as especificidades da formação do nosso mercado de trabalho, francamente marcado tanto pela divisão sexual quanto racial do trabalho — que destina às mulheres negras os trabalhos mais precários-, há grande clivagem não só entre o trabalho de homens e mulheres, mas especialmente entre homens brancos e mulheres negras.

Informações coletadas pelo IBGE para o ano de 2019 revelam que mulheres negras recebem 57% que homens brancos[8], colocando em relevo a importância de se avançar nas políticas de inclusão sob uma perspectiva inafastavelmente interseccional. 

Não fosse isso, a nível mundial, de acordo com a Organização das Nações Unidas, em todo mundo, mulheres recebem 20% menos, em média, que os homens, nas mesmas condições de trabalho e escolaridade. A despeito de serem consideradas características individuais como jornada e experiência prévia, a conclusão das agências da ONU é de que a causa central dessas desigualdades está na discriminação baseada em gênero.

As diferenças salariais bem ilustram as desigualdades de gênero existentes no mundo do trabalho.

Em função disso, a OIT há muito tem se dedicado a encontrar soluções para o enfrentamento dos severos efeitos sofridos por trabalhadores e trabalhadoras atravessados pelas intersecções entre gênero, raça, classe, deficiência, orientação sexual e tantas outras que delineiam a diversidade da população mundial.

A Convenção nº 111 da OIT, já ratificada pelo Brasil, é um clássico exemplo disso, tendo sido aprovada em 1958 na 42ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho. Em seu artigo 2º, é expressa a previsão em torno do compromisso dos estados-membros com a criação de mecanismos que promovam a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e profissão com o objetivo de extirpar qualquer discriminação sobre essa matéria.

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Outro instrumento relevante em matéria de redução das assimetrias de gênero é a Convenção nº 156 da OIT, aprovada em 1981. Isso porque reconhece o valor do trabalho de cuidado não remunerado (encargos familiares) — que, com efeito, proporciona o desenvolvimento pleno de todo e qualquer trabalho remunerado — e, em razão disso, que esse trabalho deve ser absorvido por toda a sociedade. Isto é, reconhece-se que a igualdade de oportunidades somente será alcançada mediante a criação de políticas nacionais que considerem que o trabalho de cuidado é dever de todos — e não apenas das mulheres.

A Convenção nº 156 da OIT está em processo de ratificação pelo Brasil (envio do texto, pelo presidente da República, para o Congresso).

 Nesse mesmo sentido são as Convenções nºs 183 (aprovada em 2000), que prevê medidas de proteção à maternidade, e 190 (aprovada em 2019), destinada à eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho, que podem decorrer de ato único do empregador (caracterização a partir dos efeitos). Nenhuma dessas duas convenções foi ratificada pelo Brasil, mas a de nº 190 está em processo de ratificação, tendo sido enviada ao Congresso conjuntamente com a de nº 156.

A despeito da existência desses e de outros instrumentos normativos internacionais, a permanência de desigualdades latentes entre os gêneros no mundo do trabalho e de práticas injustas de assédio, discriminação e violência baseada no gênero, tornou explícita a necessidade de estudar maneiras de implementar o conteúdo dessas Convenções Internacionais.

Nesse sentido, na 337ª Sessão realizada nos meses de outubro e novembro de 2019, o Conselho de Administração da OIT decidiu que o Comitê de Peritos do Organismo deveria preparar um Relatório Geral sobre a efetividade de aplicação dos instrumentos internacionais relacionados à equidade de gênero.

O  relatório geral, denominado Achieving Gender equality at work[9], foi submetido à apreciação dos Estados Membros na 111ª Conferência Internacional do Trabalho. O documento expõe a análise da implementação de seis instrumentos normativos: A Convenção de Não Discriminação (nº 111), e a Recomendação nº 111, A Convenção de Trabalhadores com Encargos Familiares (Nº 156) e a Recomendação nº 165, e a Convenção de Proteção à Maternidade nº 183 e a Recomendação  nº 191.

Nesse ensejo, o Comitê de Peritos examinou as leis e práticas dos estados-membros da OIT no que diz respeito à aplicação dos princípios e normas postos nos citados instrumentos internacionais e, no relatório, buscou demonstrar os avanços conquistados e os obstáculos que ainda precisam ser superados.

Ademais, ciente de que essas convenções formam um conjunto da agenda de transformação do mundo do trabalho trabalho focalizada no gênero, o Comitê de Peritos aponta quatro grandes conclusões.

Em primeiro lugar, constatou-se que há uma interconexão com algum grau de interdependência, das Convenções nº 111, 156 e 183 e de suas respectivas recomendações. Extrai-se dos estudos que a proteção à maternidade e a igualdade entre homens e mulheres quanto aos encargos familiares é essencial para atingir a equidade de gênero no trabalho. Noutro passo, caso não se elimine a discriminação com base no sexo e gênero, não serão efetivos os esforços para a proteção à maternidade e de igualdade na distribuição dos encargos familiares.

A segunda constatação é a de que apenas 20 estados membros da OIT, dentre 187, ratificaram todas as três Convenções citadas[10].

Apesar disso, os governos têm requisitado assistência técnica legislativa para ratificação das convenções, bem como a coleta de dados e implementação de treinamento e formação de quadros para a promoção desse objetivo.

Em terceiro lugar, o Comitê de Peritos aponta que organizações de empregadores e de trabalhadores são agentes essenciais para que se atinja a equidade de gênero no trabalho por meio da (re)distribuição do trabalho de cuidado.

Nesse ponto em específico, tem-se que o trabalho em conjunto com os governos pode possibilitar medidas efetivas de igualdade, tais como a criação das políticas de licença para os pais trabalhadores e outros responsáveis pelos cuidados de casa e de infantes. As organizações coletivas também podem, com maior facilidade, promover flexibilidade em arranjos de trabalho — facilitando a distribuição de encargos familiares de forma mais equitativa.

A última grande constatação expressa pelo comitê é a de que a equidade de gênero no trabalho depende do enfrentamento de outras injustiças e desigualdades, a exemplo do racismo estrutural. Nesse aspecto, a pontuação é tão forte quanto necessária:

Uma qualitativa e compreensiva mudança é urgentemente necessária nas dinâmicas de gênero onde constrangimentos de gênero e obstáculos encontram suporte. Nesse sentido, o comitê ressalta que combater esteriótipos, entendimentos arcaicos e práticas que atribuem certas habilidades e capacidades aos homens e às mulheres ou que enderecem certos papeis baseados no sexo ou gênero deve ser uma prioridade (ILC 111/III(B) — Achieving gender equality at work — p. 284)[11].

Ainda sobre esse aspecto, o Comitê de Peritos recomenda que os estados-membros devem considerar a situação de grupos específicos que estão em desvantagem e que sofrem múltiplas opressões, ao adotar medidas de enfrentamento à discriminação.

A esse respeito, releva notar os esforços perseguidos pelos membros da OIT no âmbito da Comissão de Discussões sobre Proteção Laboral — que se reuniu durante a 111ª CIT.

Nesse sentido, importa considerar que, em proposição desta última Comissão encaminhada à Conferência[12], foram sugeridas algumas medidas para alcançar a proteção laboral adequada, efetiva e inclusiva para todos os trabalhadores e trabalhadoras.

Dentre as medidas estão os esforços para o acesso de mulheres a trabalhos de qualidade e igualdade de remuneração, por meio da redução de barreiras estruturais para o tais como a violência, o assédio e a desproporção na distribuição do trabalho de cuidado não remunerado.

Além disso, a Comissão de Discussões sobre Proteção Laboral reconhece que certos grupos têm ficado de fora da proteção laboral e social — os que sofrem discriminação de gênero, os grupos étnicos marginalizados, os trabalhadores do cuidado, os trabalhadores domésticos. A partir desse entendimento, formou-se um consenso sobre a importância da criação de medidas de proteção do trabalho voltadas a esses grupos vulneráveis e que, substancialmente, se encontram na informalidade.

A partir de todo esse contexto e proposições, não é sem razão que a maré púrpura de reivindicações por mais igualdade levantada pela Greve Feminista Suíça também alcançou as discussões ocorridas durante a 111ª Conferência Internacional do Trabalho da OIT, cujo encerramento acontece hoje (16/6/23).

Espera-se que até a próxima CIT — ou o mais breve possível — o cenário seja diferente e que a Justiça Social alcance todas as trabalhadoras ao redor do mundo, efetivando-se cada um dos direitos fundamentais trabalhistas, em especial, o acesso ao trabalho decente. Afinal, conforme reconhecido por Houngbo, inexiste justiça social sem um ambiente de trabalho seguro, sem trabalho decente para trabalhadoras do cuidado, sem paridade salarial entre homens e mulheres[13], sem equidade de gênero e raça, enfim, só há justiça social quando não se efetivam políticas para não deixar ninguém para trás.

 


[3] A esse respeito vide site da organização: https://grevefeministe-ge.ch/about/

[4]  A esse respeito vide site da organização: https://grevefeministe-ge.ch/about/

[9] Disponível em: https://www.ilo.org/ilc/ILCSessions/111/reports/reports-to-the-conference/WCMS_870823/lang–en/index.htm

[10] Albânia, Azerbaijão, Belize, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, El Salvador, Cazaquistão, Lituânia, Mauritius, Montenegro, Países Baixos, Niger, Macedônia do Norte, Noruega, Peru, Portugal, San Marino, Sérvia, Eslováquia e Eslovênia ratificaram as três Convenções.

[11] Tradução livre.

[12] Disponível em: https://www.ilo.org/ilc/ILCSessions/111/reports/records/WCMS_885424/lang–en/index.htm

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