Opinião

Incidentes de assunção e de deslocamento de competência: precedentes do STJ

Autor

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

15 de junho de 2023, 13h15

Este artigo pretende tratar de alguns aspectos ligados a dois incidentes relacionados à competência entre os órgãos que compõem o sistema de justiça e a interpretação do Superior Tribunal de Justiça.

Inicialmente, vale ressaltar que a competência jurisdicional mereceu, em várias passagens da legislação processual civil (artigo 42 e seguintes, do CPC), tratamento específico, em institutos que podem, até mesmo, reorganizar a atuação de vários órgãos.

Com efeito, institutos como reunião para julgamento conjunto (artigo 55, §3º, do CPC),  cooperação jurisdicional visando a reunião ou apensamento de processos (artigo 69, II, do CPC), atos concertados entre juízes cooperantes com a centralização de processos repetitivos (artigo 69, §2º, VI, do CPC) dentre outros, consagram essa específica preocupação com o instituto da competência jurisdicional, refletindo inclusive na revisitação de conceitos ligados à competência absoluta  que seria, de início, inalterável/ improrrogável  apenas a relativa pode modificar-se pela conexão ou continência, nos termos do artigo 54, do CPC.

O objetivo deste breve ensaio é tratar de dois importantes institutos também ligados ao tema competência jurisdicional, os quais possuem objetivos e requisitos totalmente distintos: Incidente de Assunção de Competência (IAC) e Incidente de Deslocamento de Competência (IDC).

Em verdade, existem três incidentes previstos em sequência no Código de Processo Civil, sendo dois deles ligados à temática dos precedentes qualificados: o IAC (artigo 947, do CPC), o Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade (artigos 948-950, do CPC) e o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) (artigos 976-987, do CPC).

Como é sabido, o IRDR e o IAC fazem parte da sistemática dos precedentes qualificados, de observação obrigatória pelos juízes e tribunais (artigo 927, III, do CPC).

Os requisitos do IAC constam no próprio artigo 947, do CPC, e podem ser assim resumidos: relevante questão de direito, grande repercussão social, sem repetição em processos múltiplos. Como consta na passagem da Ementa da decisão de afetação do IAC 15 (IAC no CC 188.373/SC  relator ministro Mauro Campbell Marques  1ª Seção  j. em 21.06.2022  DJe 16.08.2022):

"No caso dos autos, estão atendidos os requisitos legais do cabimento do incidente de assunção de competência no presente conflito de competência, pois a matéria discutida envolve relevante questão de direito, bem como é inegável o reconhecimento de grande repercussão social do tema."

Com o IAC redireciona-se a competência funcional de atuação no recurso, remessa necessária ou processo de competência originária de tribunal para o órgão colegiado que o regimento indicar (artigo 947, §1º, do CPC), com o objeto de formar um precedente qualificado com maior potencial de aderência e aplicação a todos os juízes e órgãos fracionários (artigo 947, §3º, do CPC).

Na proposta de afetação no REsp 1.806.016 (IAC 7  relator ministro Mauro Campbell Marques  1ª Seção  J. 15.09.2020  DJe 22.09.2022), a 1ª Seção da Corte da Cidadania consagrou quais são os seus requisitos, como se demonstra com a seguinte passagem da Ementa do Acórdão:

"5. O incidente de assunção de competência previsto no CPC/2015 é dotado de importante função no sistema brasileiro de precedentes, pois além de evitar ou compatibilizar dissídios jurisprudenciais, papel também desempenhado pelos embargos de divergência nas Cortes Superiores, é técnica de julgamento que gera precedente de efeito vinculante, prevista no inciso III do artigo 927 do CPC/2015, o que impõe a sua observância por Tribunais e juízes na ótica do novo ordenamento processual. 6. A referida técnica de julgamento confere eficiência ao princípio da isonomia, pois a admissão da proposta de incidente de assunção de competência no caso concreto dará efetividade ao presente recurso especial, a fim de que o decidido por esta Corte Superior seja aplicado a todos os processos relacionados à presente controvérsia jurídica, o que afasta a possibilidade de decisões divergentes sobre o mesmo tema."

No caso em questão, a Corte admitiu o Incidente em Recurso Especial, alterando a competência da Turma para a Seção apreciar as teses controvertidas ligadas ao IAC 7 (artigo 271-C, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça  RISTJ), inclusive com a suspensão de julgamento dos processos que versam sobre o tema em todo o território nacional, nos termos do artigo 1.037, II, do CPC/15 — aplicado por analogia.

Aliás, o IAC é tratado entre os artigos 271-B a 271-G do Regimento Interno da Corte, cuja competência para apreciação e julgamento, em sendo reconhecido o interesse público, é da Corte Especial ou da Seção respectiva (artigo 271-B, §1º, do RISTJ).

Além do redirecionamento da competência interna da Corte, é importante destacar que grandes debates ligados à competência dos órgãos componentes do sistema de justiça foram travados em IACs no STJ. Por exemplo, no IAC 14/STJ, sacado de Conflito de Competência, a 1ª Seção declarou qual seria o órgão com competência jurisdicional para atuar em demanda que versa sobre a dispensação de medicamento em situação específica. Esta foi a Tese fixada para efeito do artigo 947, do CPC (CC 187276  relator ministro Gurgel de Faria  1ª Seção  J. em 12.04.2023):

"a) Nas hipóteses de ações relativas à saúde intentadas com o objetivo de compelir o Poder Público ao cumprimento de obrigação de fazer consistente na dispensação de medicamentos não inseridos na lista do SUS, mas registrado na Anvisa, deverá prevalecer a competência do juízo de acordo com os entes contra os quais a parte autora elegeu demandar;
b) as regras de repartição de competência administrativas do SUS não devem ser invocadas pelos magistrados para fins de alteração ou ampliação do polo passivo delineado pela parte no momento da propositura da ação, mas tão somente para fins de redirecionar o cumprimento da sentença ou determinar o ressarcimento da entidade federada que suportou o ônus financeiro no lugar do ente público competente, não sendo o conflito de competência a via adequada para discutir a legitimidade ad causam, à luz da Lei n. 8.080/1990, ou a nulidade das decisões proferidas pelo Juízo estadual ou federal, questões que devem ser analisada no bojo da ação principal.
c) a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da CF/88, é determinada por critério objetivo, em regra, em razão das pessoas que figuram no polo passivo da demanda (competência ratione personae), competindo ao Juízo federal decidir sobre o interesse da União no processo (Súmula 150 do STJ), não cabendo ao Juízo estadual, ao receber os autos que lhe foram restituídos em vista da exclusão do ente federal do feito, suscitar conflito de competência (Súmula 254 do STJ)."

Interessante notar que, nesse IAC 14/STJ, também ocorreu o redirecionamento da competência interna Corte, sendo fixada a tese pela 1ª Seção. Ocorreu, portanto, mudança de competência interna para o órgão colegiado maior visando a fixação da tese que delimitou quais os critérios para a fixação da competência dos órgãos componentes do sistema de justiça para atuação em certas demandas de saúde (jurisdição estadual ou federal) — com vinculação horizontal (artigo 947, §3º, do CPC) e vertical (artigo 927, III, do CPC).

Portanto, para os objetivos pretendidos neste texto, vale ratificar que o IAC redireciona/ desloca a competência interna do tribunal para a apreciação do recurso, remessa necessária ou ação originária, tendo em vista a clara preocupação em relação à maior força de vinculação do seu resultado aos demais órgãos (interna e externamente).

Aliás, enquanto no IAC há a assunção de uma competência no próprio tribunal, vale tecer algumas observações em relação a outro incidente extremamente importante, com requisitos constitucionais próprios e que, ao final, poderá alterar até mesmo a competência jurisdicional absoluta de causa em tramitação em 1º ou 2º grau (da justiça estadual para a federal).

O incidente de deslocamento de competência (IDC) advém da Emenda Constitucional nº 45/2004, que incluiu o §5º ao artigo 109, da CF/88, com a seguinte redação:

"§5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o procurador-geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)."

As hipóteses para o deslocamento da competência absoluta (da justiça estadual para a federal), refletindo sobre os conceitos de juiz natural e do próprio pacto federativo, devem ser analisadas de forma absolutamente restrita. No IDC 5/STJ (relator ministro Rogério Schietti Cruz  J. em 13.08.2014), a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça deixou claro, mencionando inclusive o resultado do IDC 1/STJ, quais são os requisitos para o IDC:

"2. A Terceira Seção deste Superior Tribunal explicitou que os requisitos do incidente de deslocamento de competência são três: a) grave violação de direitos humanos; b) necessidade de assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais; c) incapacidade  oriunda de inércia, omissão, ineficácia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais e/ou materiais etc.  de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal (IDC nº 1/PA, relator ministro Arnaldo Esteves Lima, julgado em 8.6.2005, DJ 10.10.2005)."

Em seguida, concluiu a Ementa do Acórdão do IDC 5/STJ:

"6. O incidente de deslocamento de competência não pode ter o caráter de prima ratio, de primeira providência a ser tomada em relação a um fato (por mais grave que seja). Deve ser utilizado em situações excepcionalíssimas, em que efetivamente demonstrada a sua necessidade e a sua imprescindibilidade, ante provas que revelem descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições pessoais e/ou materiais das instituições  ou de uma ou outra delas  responsáveis por investigar, processar e punir os responsáveis pela grave violação a direito humano, em levar a cabo a responsabilização dos envolvidos na conduta criminosa, até para não se esvaziar a competência da Justiça Estadual e inviabilizar o funcionamento da Justiça Federal."

No IDC 10/STJ (relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca  3ª Seção  J. em 28.11.2018 – DJe 19.12.2018), há passagem que também indica, nos termos da Jurisprudência da Corte da Cidadania, quais são os pressupostos principais que devem ser atendidos simultaneamente, para o acolhimento do incidente:

"1) a constatação de grave violação efetiva e real de direitos humanos; 2) a possibilidade de responsabilização internacional, decorrente do descumprimento de obrigações assumidas em tratados internacionais; e  3) a evidência de que os órgãos do sistema estadual não mostram condições de seguir no desempenho da função de apuração, processamento e julgamento do caso com a devida isenção."

Já na recentíssima decisão unipessoal do ministro Messod Azulay Neto no IDC 30/STJ (J. 18.05.2023), restou clara a natureza político-jurídica e processual penal do incidente, senão vejamos:

"O Incidente de Deslocamento de Competência, previsto no §5º do artigo 109 da CRFB, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, constitui um instrumento político-jurídico, de natureza processual penal, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos, previstos em tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro seja parte."

Como se pode observar, a própria leitura do artigo 109, §5º, da CF indica quais os requisitos para esta medida excepcional de alteração da competência absoluta (estadual para federal): grave lesão a direitos humanos, afronta a tratado internacional e omissão das autoridades competentes para atuação no caso concreto. Apesar da alteração constitucional ter ocorrido em 2004, não é elevada, se comparada com outras classes, a quantidade de IDCs instaurados no Superior Tribunal de Justiça, após a provocação do Procurador-Geral da República, o que ratifica a absoluta excepcionalidade da medida.

É possível identificar alguns pontos de contato entre o IAC e o IDC, especialmente em relação à natureza jurídica de incidentes e a consequente alteração de critérios de competência para processamento de demandas, recursos ou outras classes dentro dos próprios órgãos que compõem o sistema de justiça brasileiro.

Contudo, enquanto o IAC provoca o redirecionamento da competência visando a fixação de precedente qualificado com maior padrão vinculante interno e externo, o IDC é incidente de natureza constitucional penal, de competência exclusiva do Superior Tribunal de Justiça após a provocação do procurador-geral da República e com o deslocamento da competência da(s) causa(s) atingida(s) para a Justiça Federal (federalização) desde comprovados os requisitos ensejadores da medida excepcional o que, em última análise, provoca debates sobre a relativização da competência absoluta, sobre o próprio pacto federativo e sobre os poderes dos estados brasileiros.

São, portanto, dois incidentes que debatem, por caminhos diferentes, o mesmo instituto: critérios de fixação de competência dentre os órgãos jurisdicionais.

Autores

  • é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), doutor e mestre (Universidade Federal do Pará), professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), procurador do estado do Pará e advogado.

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