Opinião

Impasse histórico na OIT: sem menções à orientação sexual e identidade de gênero

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14 de junho de 2023, 11h15

Para aqueles que acompanham encontros de organismos internacionais e a própria dinâmica das conferências da organização internacional do trabalho, as reuniões do comitê de finanças nunca foram catalisadores de grandes emoções. 

Efetivamente, conforme pontua Nina Larson[1], até a Conferência da OIT deste ano, a aprovação de textos orçamentários sempre se tratou de mera formalidade, não havendo grandes debates.

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Não é que debates orçamentários sejam desprovidos de seu óbvio relevo. Trata-se de consequência do distanciamento de suas habituais deliberações do coração dos debates, dos verdadeiros temas centrais desses encontros de cúpula.

Mas eis que em ano que se inaugura um novo ciclo de gestão do organismo, agora sob a batuta de Gilbert Houngbo, o primeiro africano a ocupar o cargo de diretor-geral da OIT, durante a 111ª Conferência Internacional do Trabalho, a antes tediosa e rápida apresentação e aprovação de proposta de novo biênio orçamentário adquiriu simbólica importância para um aparante momento de reencontro do mundo com as pautas de inclusão e combate à discriminação.

É que alguns países sustentaram oposição quanto ao conteúdo de um dos objetivos de destinação orçamentária para os anos de 2024-2025, concernente à (im)possibilidade de cada estado-membro de criar, implementar, definir e tipificar suas próprias agendas sobre igualdade de gênero, não discriminação e inclusão de grupos de pessoas vulneráveis.

Rosalind Yarde, chefe de mídia da OIT, esclareceu que esse grupo dissidente não queria incluir quaisquer menções ou palavras relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero na proposta orçamentária, especificamente em relação ao trabalho em seus países.[2] Isto é, o descontentamento de alguns países africanos e da Organização de Cooperação Islâmica envolve a inclusão de termos sobre equidade de gêneros, não discriminação e inclusão.

Conforme informações constantes no site da OIT[3], a versão preliminar do orçamento para o biênio de 2024-2025 ("Preview of the Programme and Budget proposals for 2024–25") foi apresentada na 346ª sessão do conselho de administração da OIT, que ocorreu entre 31 de outubro de 2022 e 10 de novembro do mesmo ano. A referida versão veio acompanhada dos objetivos centrais de Houngbo durante seu mandato, todos voltados à promoção de ações por meio das quais fosse possível avançar numa Coalização Global pela Justiça Social.

Em virtude disso, os objetivos fixados para o biênio orçamentário foram concernentes (i) à modernização e fortalecimento da boa governança da OIT no mundo do trabalho com base nas normas internacionais e no diálogo social tripartite (outcomes 1 and 2); (ii) ao fornecimento de apoio aos países membros para desenvolver e adaptar políticas sociais que possibilitem a criação de trabalhos decentes para todos e todas  (outcomes 3, 4, 5 and 6), especialmente a partir da (iii) criação de programas em áreas transversais para implementação de uma agenda transformadora no que tange à igualdade de gênero, não discriminação e inclusão (outcome 7).

Com a finalidade de avançar nesse propósito, previu-se como estratégia de ação para o biênio a disseminação de conhecimento sobre as formas existentes de discriminação e suas intersecções — e formas de combatê-las —, tais como as desigualdades salariais entre homens e mulheres, segregação ocupacional, violência e assédio. Para tanto, partiu-se da premissa de que as desigualdades sociais são profundas e estruturais.

Assim, grupos de pessoas vulneráveis, tais como mulheres, indígenas, afrodescendentes, minorias, pessoas com deficiência, pessoas vivendo com HIV e lésbicas, gays, bissexuais,pessoas trans, intersexo ou queer (LGBTQIA+) teriam menos acesso a oportunidades na sociedade em geral. 

Todas estas premissas estão contidas no item "Output 7.2. Improved coherence in support and action to implement a transformative agenda on gender equality, non-discrimination and inclusion" da proposta orçamentária. E é justamente acerca deste último aspecto que se instaurou a oposição do grupo dissidente desde a 346ª sessão do Conselho de Administração da OIT (out.-nov. 2022).

Independentemente de se poder entender que o questionamento em si mesmo poderia vir a atingir, a título de exemplo, a Convenção 111 da OIT (uma das oito fundamentais), a oposição é um percalço na organização, considerando-se que o conteúdo da proposta não é exatamente novo, no que tange aos objetivos de uma agenda transformadora, voltada a grupos minoritários.

De fato, a  redação original do texto apenas conceitua que as desigualdades profundas e estruturais continuam a afetar as oportunidades de vida de mulheres, comunidades marginalizadas, incluindo pessoas indígenas, descendentes de africanos, minorias étnicas, pessoas com deficiência, pessoas portadoras de HIV, pessoas lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans, intersexo ou queer (LGBTQIA+)[4]. E prossegue assim definindo as metas para o biênio:

Output 7.2. Improved coherence in support and action to implement a transformative agenda on gender equality, non-discrimination and inclusion 151. Deep-rooted and structural inequalities continue to afflict the life chances of women and marginalized communities, including indigenous peoples, people of African descent, ethnic minorities, people with disabilities, people living with HIV and lesbian, gay, bisexual, transgender, intersexual or queer (LGBTIQ+) persons. A transformative agenda, as called for by the Centenary Declaration and the Global Call to Action, requires coordinated and concerted action in several areas to secure rights, protection and equitable economic participation. Through a dedicated action programme, the ILO will generate and disseminate knowledge on emerging forms of discrimination, such as those facilitated by technology, as well as tackling persistent manifestations of discrimination such as gender pay gaps, occupational segregation and violence and harassment, including gender-based violence and harassment. The impact of intersectionality in exacerbating discrimination, stigma and exclusion will be taken into account.

Apesar de se tratar de definições e expressões que já constavam de versões anteriores do Programa e Orçamento, desde o biênio 2020-2021 e igualmente não haver fato novo a sustentar eventual estratégia de debate sobre o tema, houve discussão acirrada sobre o ponto durante a 346ª sessão do Conselho de Administração da OIT (out.-nov. 2022).

A objeção se referia a toda a parte final do texto acima. Cedendo à pressão, o secretariado concordou em redigir versão que pudesse alcançar consenso tripartite. Acordou-se que outra perspectiva seria apresentada na reunião seguinte do conselho, que se realizaria em março de 2023.

Então, na 347ª Sessão do Conselho de Administração da OIT (13 a 23 mar. 2023), apresentou-se nova versão da proposta orçamentária, excluindo o conteúdo final da cláusula original (output 7.2.). A nova versão ficou assim redigida:

Output 5.1. Increased capacity of Member States to design and implement a transformative agenda on gender equality, non-discrimination and inclusion 159. Deep-rooted and structural inequalities and discrimination continue to impact the social and economic opportunities and outcomes of women and groups vulnerable to discrimination. Making the transformative agenda a reality for all requires the ILO to be at the forefront of research and knowledge on emerging forms of discrimination, such as those facilitated by digitalization and technology, as well as tackling persistent manifestations of discrimination such as gender pay gaps and vertical and horizontal occupational segregation. To be effective, a transformative agenda on gender equality, non-discrimination and inclusion should take account of the compounding effects of multiple and intersecting forms of discrimination.[5]

Isto é, retirou-se da versão preliminar todo o trecho em que se mencionava exemplificativamente os grupos sociais marginalizados, isto é "(…)indigenous peoples, people of African descent, ethnic minorities, people with disabilities, people living with HIV and lesbian, gay, bisexual, transgender, intersexual or queer (LGBTIQ+) persons".

De acordo com Nina Larson[6], delegados de países ocidentais viam a  oposição como uma tentativa de reduzir a linguagem e as discussões sobre questões de gênero e orientação sexual.

Ainda de acordo com a autora, essa resistência parece estar aliada a outras ocorridas contra organismos internacionais e seus documentos orientadores, tais como a Organização Mundial de saúde e o Conselho de Direitos Humanos, os quais têm esbarrado em mobilizações contrárias a estratégias de prevenção de doenças e de monitoramento de discriminações com base na orientação sexual e identidade de gênero.

Durante a 111ª CIT, (6 a 16 de junho de 2023), o mesmo grupo dissidente opôs objeção maior, voltada à supressão da integralidade da norma, ficando em suspensa, assim, a aprovação do orçamento da OIT — o que jamais ocorreu na história das deliberações desta organização.

Após os debates em torno do tema, formou-se  um consenso no Comitê de Finanças para recomendar ao Plenário da Conferência a adoção da redação apresentada no resolução preliminar, com os registros das ressalvas à redação feitas pelo grupo dissidente. A deliberação que prevaleceu se deu nos seguintes termos:

Reaffirming the commitment expressed by all the tripartite constituents during the 347th Session (March 2023) of the Governing Body, as well as in the Finance Committee, strongly reiterated by the Director-General on behalf of the Office, to combat all forms of discrimination and exclusion on any ground for the benefit of all; Mindful of the different positions expressed on some issues during the discussion on the Programme and Budget at the 347th Session (March 2023) of the Governing Body as well as in the Finance Committee, as reflected in the respective Minutes of the sessions (GB.347/PFA/PV and ILC.111/Record No. 3A); The Committee decided to recommend that the Conference adopt the draft resolution, the text of which appears at the end of the present record[7].

É bem verdade que o mundo tem assistido nos últimos quatros anos a um lamentável recrudescimento de extremismo, refletido em diversos seguimentos. Até onde se tem notícias, ainda em 2023 ao menos seis países (Arábia Saudita, Brunei, Iêmen, Irã, Mauritânia e Nigéria) preveem em seus códigos penais a pena capital para as relações sociais estabelecidas entre pessoas LGBTQIA+.

Já no Afeganistão, Catar, Emirados Árabes Unidos, Paquistão e Somália há registros quanto à possibilidade de aplicação da pena de morte, em razão da sharia ou lei islâmica[8].

Ainda, de acordo com Julia Ehrt, diretora executiva da Associação Internacional de Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais (Ilga World, na sigla em inglês), 68 países ao redor do mundo ainda proíbem relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo[9].

Esse cenário localiza a importância dos debates ocorridos durante a 111ª CIT. Ainda, evidencia-se o esforço para a construção do consenso a que se chegou no âmbito da Comissão de Finanças, que referendou o posicionamento institucional pelo combate a todas as formas de discriminação e exclusão no mundo do trabalho, a despeito das divergências de alguns membros constituintes.

De fato, de forma alguma o prestígio ao diálogo tripartite pode ceder lugar à função ampliativa e inclusiva dos direitos humanos enquanto direitos fundamentais trabalhistas, notadamente em se considerando o caráter simbólico de uma norma internacional de organismo do sistema das Nações Unidas.

Em uma perspectiva brasileira e amefricana (GONZALEZ, Lélia, 1988)[10], os direitos humanos devem ser compreendidos a partir da zona do não-ser, isto é, a partir de um olhar voltado às pessoas marginalizadas pelos sistemas de opressão. A partir desse olhar não hegemônico sobre os direitos humanos, rompe-se com o padrão de humanidade pensado pela lógica coloniais, que os direciona para um perfil de sujeito soberano, qual seja, homem, branco, cis/héterosexual, cristão, proprietário e sem deficiência (PIRES, THULA, 2019)[11].

Nesse sentido, é assente que gênero e sexualidade têm significados e conceitos não homogêneos, firmando-se a partir das relações de poder de cada território. Essas especificidades devem ser reconhecidas pelo sistema internacional e estender direitos às pessoas LGBTQIA+ e às demais pertencentes a outros grupos de opressão no mundo do trabalho é um importante passo na consolidação da ideia de que o trabalho decente não refletirá as visões de mundo atravessadas pelas violências decorrentes de transfobia, sexismo, classismo, racismo, cisheterossexualidade capitalismo, cristianismo, capacitismo, imperialismo.

Significa, ainda, uma abertura às tentativas de se conferir efetividade a uma Coalizão Global pela Justiça Social, em que ninguém será deixado para trás ou excluído da teia protetiva conferida pelo almejado trabalho decente.

 


[4] Tradução livre de “Deep-rooted and structural inequalities continue to afflict the life chances of women and marginalized communities, including indigenous peoples, people of African descent, ethnic minorities, people with disabilities, people living with HIV and lesbian, gay, bisexual, transgender, intersexual or queer (LGBTIQ+) persons" (redação original do item Output 7.2.).

[8] Informações disponíveis em: bbc.com/portuguese/internacional-64252532

[9] Informações disponíveis em: bbc.com/portuguese/internacional-64252532

[10] Termo cunhado por Lélia Gonzales. Disponível em: Gonzalez, Lélia. 1988. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. Tempo Brasileiro (Rio de Janeiro), nº. 92/93 (jan./ jun.)

[11] PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Direitos humanos e Améfrica Ladina: por uma crítica amefricana ao colonialismo jurídico. Fórum Latin American Studies Association, v. 50, n. 3, p. 69-74, 2019.

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