Opinião

A "queda de braço" entre o Estado "fraco" e o indivíduo "forte"

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

7 de junho de 2023, 6h37

Há, no meio jurídico, uma máxima segundo a qual as decisões judiciais devem ser cumpridas, frase que reflete a essência da autoridade estatal, exteriorizada, no caso, pelo Estado-Juiz, cuja respeitabilidade institucional é mesmo um atributo fundamental, dotado de assento constitucional.

Assim, soa evidente que o artigo 5º, XXXV, da Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que pretendeu garantir que nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá ser excluída da apreciação do Poder Judiciário, igualmente objetivou dotar referido Poder dos meios necessários para o cumprimento da missão que lhe é imposta pela norma constitucional, o que inclui o indeclinável dever de respeito às decisões judiciais, ainda que elas não estejam de acordo com os anseios de uma das partes.

Nesse sentido, quando o próprio Poder Judiciário responsável pela aplicação concreta das regras legais aos conflitos que lhe são submetidos à apreciação se depara com atitudes que retratam inequívoca oposição às suas ordens legais, tal lamentável fenômeno, além de traduzir uma grave ofensa a um dos Poderes da República, configura um sinal de que o país caminha, a passos largos, ladeira abaixo.

Dessa feita, cumpre, urgentemente, restaurar o prestígio das decisões judiciais e, por conseguinte, de uma das principais funções inerentes ao Judiciário, ou seja, a nobre missão de pacificar a sociedade e conduzi-la aos desígnios plasmados na Lei Maior, promovendo, dentre tantos outros valores almejados pelo Direito, a justiça e a paz social.

Nesse contexto, tal providência restauradora demanda, em primeiro lugar, que o Estado, reconhecendo suas inúmeras mazelas inércia, comodismo, ineficiência, desorganização, corrupção, perdularidade etc. , e cumprindo com o seu dever de casa, adote ações concretas destinadas a recuperar o conceito estatal. Sem essa conscientização por parte dos agentes do Estado no sentido de reconhecer os próprios erros e efetivamente deflagrar um processo a fim de corrigi-los , provavelmente não se chegará a lugar algum. Ingressaremos num círculo vicioso (ordem desordem ordem desordem) cujas consequências serão severas para todos. Afinal, como se diz no jargão popular, "o exemplo deve vir de cima".

Simultaneamente, numa espécie de reinauguração do pacto social, cabe a todo e qualquer indivíduo, em benefício de si próprio e da coletividade, reconhecer que as decisões emanadas do Estado, quando devidamente respaldadas no ordenamento jurídico notadamente na sua expressão máxima, isto é, na Constituição , não podem e nem devem ser desabonadas, restabelecendo-se, assim, o tão necessário respeito mútuo que deve reger a relação entre Estado e indivíduo.

Obviamente, são muitas as dificuldades a serem superadas. E seria muita pretensão esgotá-las no âmbito das presentes linhas. De qualquer forma, estamos convictos de que o principal óbice a ser enfrentado ostenta um viés nitidamente ideológico, mas de matiz extremista, próprio dos denominados radicais de direita ou de esquerda. Lidar com radicais é sempre problemático, posto que, de um modo geral, a radicalização que lhes acomete o raciocínio praticamente inviabiliza qualquer possibilidade de compreensão dos fatos como eles efetivamente se apresentam na realidade. Radicais tendem a negar os próprios fatos, quando se sabe que "contra fatos não há argumentos". A ideologia, quando se radicaliza, produz uma espécie de "metástase reflexiva", sendo que uma das características frequentemente identificadas em pessoas consideradas ideologicamente radicais é a relutância delas em cumprir o Direito editado pelo Estado e, respectivamente, as decisões estatais nele amparadas.

Ora, ao Direito compete, primordialmente, organizar o Estado (e respectivas instituições) e estabelecer as principais regras de convivência social, sem as quais a sociedade simplesmente sucumbe. Portanto, observar o regramento estatal vigente significa, em última análise, garantir a própria coexistência pacífica do corpo social. Ao Estado, por meio de seu poder soberano, incumbe fazer cumprir o Direito, independentemente da condição, sob todos os aspectos possíveis, daquele a quem a norma é dirigida.

Nesse contexto, as ordens judiciais, como uma das expressões da soberania do Estado, não devem ser objeto de questionamento fora do ambiente democrático e constitucionalmente idealizado para tanto, ou seja, a seara processual. Qualquer que seja a insatisfação (quanto ao teor do comando exarado no decisum judicial) de uma das partes envolvidas no conflito, a discussão deve permanecer adstrita aos autos. Essa deve ser a lógica em um Estado Democrático de Direito, lógica cuja evidência, ao que nos parece, não se apresenta de modo tão cristalino para os referidos radicais, sejam eles de direita ou de esquerda.

Se por um lado o indivíduo não deve negar validade ao Direito vigente, nem se contrapor às ordens legais emanadas das autoridades competentes sentindo-se, por assim dizer, acima da lei e da ordem jurídica , não se admite, por outro prisma, que o Estado se "acovarde" ou se revele "fraco" quanto à sua inflexível obrigação de fazer prevalecer as normas jurídicas, por mais "fortes" que sejam determinadas pessoas, mormente as dotadas de certo poder (econômico, político etc.).

Lamentavelmente, quando um Estado "fraco" se curva perante determinadas pessoas "fortes", chegando ao cúmulo de "negociar" com o réu as condições de sua própria prisão, como se com ele travasse uma "queda de braço", forma-se, nessa situação Estado "fraco" versus indivíduo "forte" , um perfeito caldo de cultura para que outras pessoas também decidam não cumprir as leis editadas pelo ente estatal.

Autores

  • é desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

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