Fábrica de Leis

O Legislativo e a governança das estatais

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6 de junho de 2023, 9h39

As estatais brasileiras existem, nos termos do artigo 173 da Constituição, para desempenhar atividades que os Poderes Executivo e Legislativo reputem ser de relevante interesse coletivo ou atender a imperativo de segurança nacional. Partindo de proposta do chefe do Poder Executivo, a sua criação deverá ser objeto de lei autorizativa aprovada no Parlamento, somente após a qual poderão ser tomadas as medidas necessárias à sua constituição, que deverá observar as normas de direito empresarial.

Empresas estatais e privadas apresentam semelhanças e diferenças. Como semelhança, pode-se mencionar o fato de terem que observar a legislação comercial. No caso das sociedades de economia mista, necessariamente precisam se organizar sob a forma de sociedade anônima e, se forem abertas, atender às exigências da CVM (Comissão de Valores Mobiliários).

ConJur
Quanto às diferenças, a Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976 — "LSA") estabelece que os administradores das estatais podem tomar decisões para que elas cumpram o interesse público que está na base da sua existência. Nos termos do artigo 238 da LSA, "a pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (…), mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação". Algumas estatais, inclusive, não geram receitas suficientes para cobrir suas despesas de pessoal ou de custeio, necessitando diuturnamente de repasses de natureza orçamentária (são designadas, nos termos do artigo 2º, III, da Lei de Responsabilidade Fiscal, "estatais dependentes").

A Lei nº 13.303/2016, que consubstancia o estatuto jurídico das Empresas Estatais, determina que a realização do interesse coletivo deverá ser orientada para o alcance do bem-estar econômico e para a alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pela estatal. A lei exige que esses sejam utilizados para ampliação economicamente sustentada do acesso de consumidores aos produtos e serviços, bem como ao desenvolvimento ou emprego de tecnologia brasileira para produção e oferta de produtos e serviços, sempre de maneira economicamente justificada. Além disso, devem adotar práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam (artigo 27).

Para que os objetivos legais e estatutários dessas entidades possam ser alcançados, a lei preocupou-se com regras de governança corporativa, trazendo um conjunto de exigências e vedações que necessitam ser observadas por quem pretenda ter assento nos conselhos de administração ou nas diretorias. Dentre elas, a lei proíbe a nomeação daqueles que atuaram, nos últimos 36 meses, como participantes de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado à organização, estruturação e realização de campanha eleitoral.

Todavia, o projeto de Lei nº 2.896/2022, aprovado na Câmara dos Deputados no apagar nas luzes de 2022, pretende permitir essa espécie de nomeação, uma vez cumprida uma quarentena de apenas 30 dias. Caso o projeto de lei em questão viesse a ser aprovado, ter-se-ia, na prática, a ausência de quarentena e, consequentemente, seria esperado aumento da influência político-partidária nos cargos de alto comando na administração das estatais.

A previsão legal hoje em vigor visa endereçar o risco de que os cargos de administração das sociedades controladas pelo Estado sejam ocupados por pessoas que representem interesses conflitantes com o objetivo social da empresa estatal. Considera, nesse sentido, que um elemento clássico de barganha política seria o oferecimento desses cargos de direção nas estatais a políticos, como uma forma de recompensar aqueles que apoiaram o chefe do Poder Executivo nas eleições.

Há inerentes dificuldades de alinhamento de interesses nas empresas estatais entre o acionista controlador, os acionistas minoritários e a sociedade (que sempre é, por meio das suas contribuições ao orçamento do controlador, "acionista indireta" dessas entidades). Vale lembrar, a título ilustrativo, que a União já foi condenada pela CVM por abuso de poder de controle, ao ter votado em assembleia geral  da Eletrobras (à época estatal) de forma a aprovar a implantação de uma política de governo de redução artificial de tarifas do setor elétrico, considerada prejudicial à companhia e a seus acionistas minoritários (o caso envolveu a renovação das concessões com base na medida provisória 579/2012). A decisão da CVM foi posteriormente revertida em grau de recurso, em votação desempatada por voto de qualidade, mas ficou o alerta de que o interesse do controlador, da companhia de economia mista e de seus minoritários nem sempre convergem. É por esses e outros motivos que a governança das estatais se mostra tema de elevada relevância social.

Ao autorizar a criação dessas entidades, o Poder Legislativo está permitindo que o Executivo realize intervenções em mercados com efeitos de longo prazo. Estatais não são o lócus adequado para acolher correligionários. Estatais são empresas e, como tais, precisam ter planejamento estratégico de médio e longo prazos. Para isso, requerem pessoas com elevado conhecimento técnico e do mercado, e que não tenham por função representar interesses político-partidários no âmbito da estatal. Elas devem ser preservadas de tentativas de que sirvam a finalidades outras que não o cumprimento do seu objeto social, cuja relevância para a coletividade vem atestada pela lei autorizativa de sua existência.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) reputa o fato de a lei brasileira das estatais proibir a nomeação de políticos para membros dos conselhos de administração "um dos mais importantes recentes avanços no país" na matéria. Todavia — talvez até mesmo em virtude do seu acerto — a previsão legal vem sendo objeto de questionamentos, seja no âmbito judicial (vide ADI 7.331, ajuizada pelo PCdoB), seja por meio de iniciativas legislativas, como a comentada neste artigo.

A sociedade não deve admitir retrocessos nesse tocante. É preciso tratar as estatais como verdadeiras sociedades empresárias que são, exigindo-se que adotem boas práticas de governança, atuem em efetiva concorrência nos seus respectivos setores econômicos, e apresentem de forma transparente seus resultados, em atendimento aos deveres de impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37, caput, CF/88), pois que integram a Administração Pública. Estatais têm elevada responsabilidade social com clientes, empregados, fornecedores e a sociedade em geral, para o que a adequada governança, planejamento e resiliência se mostram fundamentais.

A Lei nº 13.303/2016 teve origem parlamentar, em proposta redigida por comissão mista, e representou relevante avanço no aprimoramento institucional dessas entidades. O Parlamento não deve permitir que se desfaçam as conquistas de boas práticas de governança corporativa que foram obtidas com a sua aprovação. Em acertada medida, o Senado parece não estar disposto a dar andamento ao tema, como se observa do fato de o último andamento do projeto legislativo datar de 29 de dezembro de 2022.

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