O Legislativo e a governança das estatais
6 de junho de 2023, 9h39
As estatais brasileiras existem, nos termos do artigo 173 da Constituição, para desempenhar atividades que os Poderes Executivo e Legislativo reputem ser de relevante interesse coletivo ou atender a imperativo de segurança nacional. Partindo de proposta do chefe do Poder Executivo, a sua criação deverá ser objeto de lei autorizativa aprovada no Parlamento, somente após a qual poderão ser tomadas as medidas necessárias à sua constituição, que deverá observar as normas de direito empresarial.
Empresas estatais e privadas apresentam semelhanças e diferenças. Como semelhança, pode-se mencionar o fato de terem que observar a legislação comercial. No caso das sociedades de economia mista, necessariamente precisam se organizar sob a forma de sociedade anônima e, se forem abertas, atender às exigências da CVM (Comissão de Valores Mobiliários).
A Lei nº 13.303/2016, que consubstancia o estatuto jurídico das Empresas Estatais, determina que a realização do interesse coletivo deverá ser orientada para o alcance do bem-estar econômico e para a alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pela estatal. A lei exige que esses sejam utilizados para ampliação economicamente sustentada do acesso de consumidores aos produtos e serviços, bem como ao desenvolvimento ou emprego de tecnologia brasileira para produção e oferta de produtos e serviços, sempre de maneira economicamente justificada. Além disso, devem adotar práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam (artigo 27).
Para que os objetivos legais e estatutários dessas entidades possam ser alcançados, a lei preocupou-se com regras de governança corporativa, trazendo um conjunto de exigências e vedações que necessitam ser observadas por quem pretenda ter assento nos conselhos de administração ou nas diretorias. Dentre elas, a lei proíbe a nomeação daqueles que atuaram, nos últimos 36 meses, como participantes de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado à organização, estruturação e realização de campanha eleitoral.
Todavia, o projeto de Lei nº 2.896/2022, aprovado na Câmara dos Deputados no apagar nas luzes de 2022, pretende permitir essa espécie de nomeação, uma vez cumprida uma quarentena de apenas 30 dias. Caso o projeto de lei em questão viesse a ser aprovado, ter-se-ia, na prática, a ausência de quarentena e, consequentemente, seria esperado aumento da influência político-partidária nos cargos de alto comando na administração das estatais.
A previsão legal hoje em vigor visa endereçar o risco de que os cargos de administração das sociedades controladas pelo Estado sejam ocupados por pessoas que representem interesses conflitantes com o objetivo social da empresa estatal. Considera, nesse sentido, que um elemento clássico de barganha política seria o oferecimento desses cargos de direção nas estatais a políticos, como uma forma de recompensar aqueles que apoiaram o chefe do Poder Executivo nas eleições.
Há inerentes dificuldades de alinhamento de interesses nas empresas estatais entre o acionista controlador, os acionistas minoritários e a sociedade (que sempre é, por meio das suas contribuições ao orçamento do controlador, "acionista indireta" dessas entidades). Vale lembrar, a título ilustrativo, que a União já foi condenada pela CVM por abuso de poder de controle, ao ter votado em assembleia geral da Eletrobras (à época estatal) de forma a aprovar a implantação de uma política de governo de redução artificial de tarifas do setor elétrico, considerada prejudicial à companhia e a seus acionistas minoritários (o caso envolveu a renovação das concessões com base na medida provisória 579/2012). A decisão da CVM foi posteriormente revertida em grau de recurso, em votação desempatada por voto de qualidade, mas ficou o alerta de que o interesse do controlador, da companhia de economia mista e de seus minoritários nem sempre convergem. É por esses e outros motivos que a governança das estatais se mostra tema de elevada relevância social.
Ao autorizar a criação dessas entidades, o Poder Legislativo está permitindo que o Executivo realize intervenções em mercados com efeitos de longo prazo. Estatais não são o lócus adequado para acolher correligionários. Estatais são empresas e, como tais, precisam ter planejamento estratégico de médio e longo prazos. Para isso, requerem pessoas com elevado conhecimento técnico e do mercado, e que não tenham por função representar interesses político-partidários no âmbito da estatal. Elas devem ser preservadas de tentativas de que sirvam a finalidades outras que não o cumprimento do seu objeto social, cuja relevância para a coletividade vem atestada pela lei autorizativa de sua existência.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) reputa o fato de a lei brasileira das estatais proibir a nomeação de políticos para membros dos conselhos de administração "um dos mais importantes recentes avanços no país" na matéria. Todavia — talvez até mesmo em virtude do seu acerto — a previsão legal vem sendo objeto de questionamentos, seja no âmbito judicial (vide ADI 7.331, ajuizada pelo PCdoB), seja por meio de iniciativas legislativas, como a comentada neste artigo.
A sociedade não deve admitir retrocessos nesse tocante. É preciso tratar as estatais como verdadeiras sociedades empresárias que são, exigindo-se que adotem boas práticas de governança, atuem em efetiva concorrência nos seus respectivos setores econômicos, e apresentem de forma transparente seus resultados, em atendimento aos deveres de impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37, caput, CF/88), pois que integram a Administração Pública. Estatais têm elevada responsabilidade social com clientes, empregados, fornecedores e a sociedade em geral, para o que a adequada governança, planejamento e resiliência se mostram fundamentais.
A Lei nº 13.303/2016 teve origem parlamentar, em proposta redigida por comissão mista, e representou relevante avanço no aprimoramento institucional dessas entidades. O Parlamento não deve permitir que se desfaçam as conquistas de boas práticas de governança corporativa que foram obtidas com a sua aprovação. Em acertada medida, o Senado parece não estar disposto a dar andamento ao tema, como se observa do fato de o último andamento do projeto legislativo datar de 29 de dezembro de 2022.
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