Opinião

Revogação da Súmula nº 231 do STJ à luz dos princípios da individualização da pena

Autores

  • Fernando de Oliveira Zonta

    é advogado mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado lato sensu em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas (FGV) coordenador do Grupo de Estudos Avançados em São Paulo (GEA/SP) de Dogmática Penal vinculado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e vice-presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB – Subseção Penha de França/SP.

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  • Ivan Serpa Carvalho Neto

    é advogado criminalista e diretor da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB – Subseção Penha de França/SP.

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5 de junho de 2023, 19h30

Imaginemos a seguinte situação hipotética: Tarso e Jubileu responderam a um processo criminal e os dois foram condenados a cumprir pena privativa de liberdade no patamar legal mínimo. Após o trânsito em julgado da sentença condenatória, iniciaram o cumprimento de suas penas.

Ocorre que Tarso é menor de 21 anos e, em juízo, arrependeu-se e confessou a prática delituosa. Jubileu por sua vez tem 40 anos e, em um depoimento extremamente evasivo, negou os fatos de forma bastante genérica e confusa.

Tais elementos, por si sós, fariam com que Tarso tivesse a possibilidade de que a sua pena fosse inferior à pena de Jubileu, mesmo que tenham cometido o mesmo crime, em um mesmo contexto.

Isso porque, por questões técnicas e de política criminal, convencionou-se a dar tratamento distinto e mais benéfico àqueles que seriam menores de 21 anos, por não terem totalmente formados o seu caráter e a sua personalidade (artigo 65, inciso I, CP). Da mesma forma, a confissão também é causa que influi na dosimetria da pena de forma positiva ao acusado, já que tal atitude pode auxiliar o julgador na resolução do caso e pode indicar arrependimento pela prática delituosa (artigo 65, inciso III, alínea "d", CP).

Assim, não seria justo no caso hipotético em tela, aplicar a mesma pena para Jubileu e para Tarso, uma vez que as condições de ambos os agentes são diferentes.

Ocorre que, em razão da atual Súmula nº 231 do Superior Tribunal de Justiça ("A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal"), é inviável a redução da pena em razão de circunstâncias atenuantes abaixo do patamar mínimo legal, em abstrato.

Isso faz com que Tarso e Jubileu  ainda que possuam situações muito diferentes, como acima relatado  tenham o mesmo tratamento penal.

Portanto, em nosso caso hipotético, os benefícios derivados das atenuantes previstas em lei não teriam qualquer efeito prático, restando suas eficácias absolutamente cerceadas.

Em nossa ótica, tal agir viola a redação literal do artigo 65 do Código Penal e, por consequência, faz letra morta dos princípios da individualização da pena, da isonomia (igualdade material) e da legalidade estrita (artigo 5º, caput e incisos. II, XXXIX e XLVI, todos da CF/88). É o que demonstraremos a seguir.

Antes de tudo, vale destacar que a redação do artigo 65 do Código Penal é bastante clara ao determinar que "São circunstâncias que sempre atenuam a pena".

Ora, não é preciso nenhum esforço retórico para se interpretar que a palavra "sempre" indica uma situação de obrigatoriedade por parte do Julgador, não existindo margem para a sua inaplicabilidade, mas apenas e tão somente para a sua quantificação, à luz do caso concreto. Ou seja: presentes as circunstâncias atenuantes, é dever do julgador reduzir a pena do acusado.

Trata-se, portanto, de norma cogente, ainda mais por se tratar de tema afeto ao direito penal, especialmente em benefício do acusado, o que indica a necessidade de observância ao princípio da legalidade.

E aqui vale um recorte histórico: a edição da Súmula nº 231 do STJ se deu num contexto de aplicação de analogia do parágrafo único do artigo 48 do Código Penal de 1940 [1], o qual cuidava da proibição de fixação da pena aquém do mínimo legal em casos de cooperação dolosamente distinta [2].

Portanto, cabem algumas observações que devem ser atualmente levadas em conta para a correta reavaliação do teor sumular em tela, a saber: 1) o artigo 29, §2º do Código Penal vigente, o qual atualmente trata da cooperação dolosamente distinta, não replicou o comando restritivo acerca da aplicação da pena abaixo do mínimo legal contido no parágrafo único do artigo 48 do Código Penal de 1940; 2) a legislação penal vigente não contempla nenhuma norma que restrinja a aplicação da pena aquém do mínimo legal, razão pela qual a interpretação analógica é absolutamente inviável à luz da legislação atual; e 3) é vedada a utilização de analogia no direito penal, especialmente em prejuízo dos acusados.

Mas não é só. Também é importante destacar que o direito penal sob uma ótica constitucional finca raízes em dois princípios que dialogam com a questão posta, a saber: a individualização da pena e a isonomia [3].

De um lado, a clássica definição de igualdade material (ou isonomia) se dá no sentido de que é necessário tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de sua desigualdade [4]. De outro lado, o princípio da individualização da pena exprime a ideia de que "os réus são pessoas diferenciadas, pois cada um possui as suas próprias características, devendo haver respeito à individualidade no momento da concretização da pena" [5].

Portanto, a interpretação do artigo 65 do Código Penal conforme a Constituição conduz a uma única e inafastável conclusão: o primado da individualização da pena, à luz do princípio da isonomia, exige que distinções sejam feitas quando da aplicação da lei penal (dosimetria), de modo que se mostra razoável e proporcional a diminuição da pena aquém do mínimo legal quando presentes causas atenuantes.

Neste contexto, depois de mais de 20 anos da fixação da Súmula nº 231 do STJ , há agora três recursos especiais [6] afetados à 3ª Seção a fim de rever o seu teor novamente após um longo e importantíssimo debate em audiência pública ocorrido no último dia 17 de maio [7].  Espera-se, com isso, que o caminho a ser trilhado seja pela sua revogação (ou reformulação), especialmente em razão da síntese dos argumentos acima expostos.

 


[1] Artigo 48, Código Penal de 1940: São circunstâncias que sempre atenuam a pena: […] Parágrafo único. Se o agente quis participar de crime menos grave, a pena é diminuida de um terço até metade, não podendo, porém, ser inferior ao mínimo da cominada ao crime cometido.

[2] Sobre este particular, confira-se os ensinamentos de Cezar Roberto Bitencourt (In Tratado de Direito Penal: Parte Geral, v. 1, Ed. Saraiva, 2014, 20. ed., p. 785): "O equivocado entendimento de que 'circunstância atenuante' não pode levar a pena aquém do mínimo cominado ao delito partiu de interpretação analógica desautorizada, baseada na proibição que constava no texto original do parágrafo único do artigo 48 do Código Penal de 1940, não repetido, destaque-se, na Reforma Penal de 1984 (Lei nº 7.209/84)".

[3] Acerca do princípio da isonomia, confira-se as palavras de Luis Gustavo de Carvalho (In Processo Penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal, Ed. Saraiva, 2014, 6. ed., e-book, capítulo IV, item 2): "O raciocínio aplica-se inteiramente ao direito processual e as suas consequências são sobejamente marcantes. A mais importante dentre elas é a afirmação da igualdade das partes na relação processual, com iguais direitos, deveres, ônus e faculdades processuais. Essa igualdade não é, porém, absoluta. As peculiaridades das partes e a natureza de sua constituição podem autorizar outras desequiparações".

[4] Neste sentido, confira-se as palavras de Misabel Abreu Machado Derzi (In: Constituição Federal Comentada, Ed. GEN Jurídico, 2018, 1. ed., e-book, comentários ao artigo 145, item 7.), apoiada em Rui Barbosa: "'A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam'. Esse conceito milenar, difundido entre nós por Rui Barbosa (Oração aos moços. In: Escritos e discursos seletos. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960, p. 685), parte do pressuposto lógico clássico e dedutivo de que os indivíduos podem ser agrupados segundo notas comuns e separados por suas diferenças. Opondo-se ao nominalismo, que vê na desigualdade a característica básica do mundo real, ao contrário, o princípio da igualdade admite a comparabilidade entre indivíduos distintos, para agrupá-los segundo suas semelhanças e dessemelhanças. Nos distintos campos do conhecimento (feita abstração da lógica ou da matemática), igualdade e identidade não se confundem".

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. In: Constituição Federal Comentada, Ed. GEN Jurídico, 2018, 1. ed., e-book, comentários ao artigo 5º, inciso XLVI.

[6] REsps 2.057.181, 2.052.085 e 1.869.764

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  • é advogado, mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-graduado lato sensu em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas (FGV), coordenador do Grupo de Estudos Avançados em São Paulo (GEA/SP) de Dogmática Penal, vinculado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e vice-presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB – Subseção Penha de França/SP.

  • é advogado criminalista e diretor da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB – Subseção Penha de França/SP.

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