Opinião

Pretos e pardos sob suspeita: o perfilamento racial na persecução penal brasileira

Autores

  • Bruno César Gonçalves da Silva

    é mestre em Direito Processual pela PUC-MG professor de Processo Penal na PUC-MG ex-presidente do Conselho Penitenciário de Minas Gerais (2015/2017) e advogado criminalista.

  • André Myssior

    é mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e advogado sócio do Escritório Myssior & Valadares Sociedade de Advogados.

5 de junho de 2023, 7h06

"(…) Infelizmente, ter pele preta ou parda, no Brasil, é estar permanentemente sob suspeita. (…)" [1].

Em inúmeros casos a persecução penal se inicia por um tipo de abordagem policial popularmente conhecida como "dura", "geral", "revista", "baculejo" ou "esculacho", calcada na genérica alegação de que o indivíduo submetido ao procedimento se encontrava em "atitude suspeita".

Segundo a disciplina legal prevista no artigo 244 do Código de Processo Penal brasileiro a busca ou revista pessoal — bem como a veicular  somente se reveste de legalidade quando precedida de "fundada suspeita" justificada pelas circunstâncias do caso concreto de que o cidadão abordado esteja na posse de armas ou de outros materiais que constituam corpo de delito, apto a evidenciar a urgência de se implementar a diligência [2].

A "fundada suspeita", portanto, deve ser alicerçada em algum dado concreto que justifique, objetivamente, a afetação da intimidade do cidadão (artigo 5º X da Constituição), não bastando meras conjecturas ou impressões subjetivas. E mais, essa fundada suspeita deve se referir à "posse de arma proibida ou de objetos ou papeis que constituam corpo de delito".

Exige-se, portanto, uma vinculação da medida à sua finalidade legal probatória, sendo inadmissíveis abordagens e revistas exploratórias, baseadas em suspeição genérica sobre indivíduos, atitudes ou situações. Assim, ao contrário do que muitos pensam, no âmbito do patrulhamento ostensivo não há suporte normativa que autorize buscas pessoais de "rotina" ou "praxe" praticadas aleatoriamente e sem prévia base concreta devidamente justificada [3].

Não obstante os limites normativos sucintamente relembrados, tem-se, por exemplo, a pesquisa "Elemento Suspeito"  também abordada no Acórdão do RHC 158.580/BA do STJ , desenvolvida pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), revelando que "a revista corporal costuma ser reservada a quem a polícia acha que tem 'cara de criminoso' ou que está 'escondendo algo', nas palavras dos próprios agentes. Entre os que já foram revistados, metade de todos os abordados, 84% eram homens, 69%, negros, e 70% eram moradores de favelas e bairros da periferia. Em contrapartida, somente 10% dos brancos que ganham mais de dez salários mínimos são revistados". (Disponível em: Negros são os mais abordados pela polícia no Rio, afirma pesquisa — Estadão (estadao.com.br) , acesso em: maio de 2023).

Ou seja, há pesquisas quantitativas e qualitativas revelando algo que sempre saltou aos olhos num país de capitalismo tardio como o Brasil, que timidamente começa a tentar enfrentar as sequelas sociais deixadas pela escravatura: a abordagem policial "de rotina" é largamente empregada pelas instâncias policiais e, dado ao racismo estrutural sob o qual se ergueu a sociedade brasileira, constata-se a existência de um "viés da suspeição racial apriorística" [4], em que aqueles indivíduos que não possuem pele alva, possuem "pele-alvo", sendo recorrente no âmbito das instâncias policiais referências à percepção de um "elemento suspeito de cor padrão", revelando de modo inequívoco o emprego do perfilamento racial como referencial central da suspeita policial.

Ante o quadro sinteticamente exposto, observa-se que a discricionariedade policial na identificação de suspeitos, pautada em significativa medida pelo perfilamento racial, vulnera sobremaneira os Direitos Fundamentais à intimidade, à privacidade, à inviolabilidade do domicílio e à liberdade (direitos humanos) dos afrodescendentes.

Por tal razão, o acórdão do RHC 158.580/BA do STJ buscou fixar um importante marco interpretativo da legislação federal apto a (re)orientar as praxes persecutórias: "3. Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições/impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, baseadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de 'fundada suspeita' exigido pelo artigo 244 do CPP".

A observância deste marco interpretativo visa não só preservar os Direitos Fundamentais passiveis de afetação pela busca pessoal, mas também prevenir e dissuadir incondutas policiais no campo da ilicitude probatória, vez que o Acórdão paradigma assentou que "5. A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência".

A atual jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça) acerca dos limites às buscas pessoais, veiculares e domiciliares, bem como em relação ao reconhecimento de pessoas, tem promovido um verdadeiro acerto de contas do processo penal brasileiro com a sua própria história, com o condão de estancar o fluxo de uma política criminal de segregação dos indesejáveis através da construção, reforço e manutenção de um estereótipo criminoso racista, cuja marca principal é que "todo camburão tem um pouco de navio negreiro" [5].

Não é, porém, o bastante a definição dessa Jurisprudência apenas nos Tribunais Superiores, se os pretos e pardos precisarem, a cada abordagem, acessar aquelas cortes. É preciso criar e incentivar mecanismos para assegurar que as instâncias inferiores observem a jurisprudência, seja pela via correicional, seja pela via judicial.

E, não apenas; não basta soltar o preso e absolvê-lo depois de dois, três anos, às vezes mais. A promoção da responsabilidade civil do Estado, conforme o artigo 37, §6º, da Constituição  e os competentes regressos — servirá, de um lado, como reparação à vítima do racismo estrutural e, de outro, como efeito dissuasório dos agentes públicos que teimam em desprezar os direitos humanos.

Oxalá, que este "acerto de contas" nos reserve um futuro melhor!

 

[1] BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça (Sexta Turma). Acórdão do RHC 158.580/BA. Relator ministro Rogério Schietti Cruz, jul. 19/04/2022, pub. 25/04/2022, Brasília: STJ, 2022. Disponível em www.stj.jus.br. Acesso em 25/05/2023.

[2] Iden: "1. Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) – baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência".

[3] Iden: "2. Entretanto, a normativa constante do artigo 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à 'posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito'.Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto que constitua corpo de delito de uma infração penal. O artigo 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como 'rotina' ou 'praxe' do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata".

[4] Iden.

[5] Título da letra composta por Marcelo Yuka e eternizada na interpretação magistral do grupo O Rappa.

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