Opinião

O que falta à AGU no texto da Constituição?

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5 de junho de 2023, 16h16

A Advocacia-Geral da União é uma carreira jurídica que, a exemplo do Ministério Público e da Defensoria Pública, exerce uma função essencial à Justiça. Nisso se equivalem. Mas a Advocacia Pública vai além. Assim como se diz que a Lei de Introdução de Normas do Direito Brasileiro (Lindb) é uma norma de sobredireito, a AGU é uma "sobreinstituição", até mesmo por conta da sua atuação nitidamente transversal.

Com efeito, além de exercer uma função essencial consistente na consultoria e assessoramento do Poder Executivo e na representação judicial da União, AGU ou órgão vinculado (artigo 71, I, do CPC) permeia todo Estado brasileiro.

É plenamente razoável defender a tese de que, quando o texto constitucional fala em consultoria e assessoramento do "Poder Executivo", o constituinte, na verdade, atribuiu à AGU tais funções também em relação ao demais Poderes, mas, evidentemente, quando esses Poderes estivessem no exercício de suas funções executivas atípicas, por exemplo, no controle da legalidade da realização de uma licitação.  De qualquer sorte, é uma proposta de lege ferenda.

De lege lata, a AGU atua prestando a consultoria e assessoramento e promovendo o respeito, quando o direito fazendário é violado, dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; representando a União, suas autarquias e fundações, a AGU pode promover procedimento preparatório (artigo 37, VXI, da Lei 13.327, de 2016) e de propor, em nome desses entes, a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; em nome da Presidência, promover a ação de inconstitucionalidade, declaratória de constitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos estados, nos casos previstos nesta Constituição; defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas por meio da Funai, os quilomboloas, por meio do Incra e as populações tradicionais pelo ICMBio e outros órgãos; zelar pela infraestrutura concedida do país pelas agências reguladoras; auxiliar no desenvolvimento da pesquisa, inovação e do ministério do ensino superior, por meio da Capes, CNPQ, universidades e institutos federais; promover a defesa do consumidor, pelas agências reguladoras; a concorrência, pelo Cade etc.  A atuação da AGU, nesse mister, não deve nada para nenhum outro órgão.

A AGU atua na defesa de agentes públicos, inclusive membros do MPU ou da DPU. Ela representa esses mesmos órgãos autônomos, desde questões simples até aquelas relacionadas a suas prerrogativas. Como exemplos das primeiras, tem-se a defesa Procuradoria da República em São Paulo, quando foi alvo de cobrança de IPTU. A AGU também conseguiu junto ao TST (Tribunal Superior do Trabalho) a suspensão de decisão liminar que impedia a retomada dos serviços presenciais no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT-1) [1].

Em casos mais complexos e relevantes, a AGU conseguiu firmar a competência exclusiva do STF (Supremo Tribunal Federal) processar e julgar, originariamente, todas as ações ajuizadas contra decisões do CNJ e do CNMP [2]. Ainda mais, a AGU garantiu a legitimidade do processo de escolha de membros do CNJ e do CNMP para vagas de juízes escolhidos pelo Superior Tribunal de Justiça [3]. A AGU defendeu também no STF a legalidade de acórdãos do TCU que decretaram a indisponibilidade de bens para garantir a reparação futura de prejuízos sofridos pelos cofres públicos [4].

Em defesa do Legislativo, a AGU evitou a "ingerência indevida em votação na Câmara" [5], noticiou sua assessoria de comunicação. E é apenas um caso ilustrativo, porque, para que essa atuação como essa seja possível, foi editada a Ordem de Serviço nº 10 de 17 de agosto de 2009, que regulamentou a defesa de órgãos públicos federais despersonalizados do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e do Ministério Público, com capacidade judiciária, pela AGU. Sem se falar do acordo de cooperação técnica celebrado com o Ministério Público da União e com o CNMP para aperfeiçoar a representação judicial da União em causas envolvendo os dois órgãos e seus agentes públicos [6].

No entanto, a Constituição da República, apesar dessas relevantes atribuições, foi tímida em relação ao regramento da Advocacia Pública. Como ensina o ministro Gilmar Mendes [7], o constituinte não a "tratou com a minúcia que devotou ao Ministério Público  opção que não deve ser interpretada como valoração diferente da relevância dos entes que compõe esse capítulo da Carta. Todos, dentro das peculiaridades, são fundamentais para realização da Justiça". Inexiste gradação entre a funções: todas são igualmente essenciais, respeitado o traço de sobreinstituição que, graciosamente, a AGU realiza.

Para agravar ainda mais essa disparidade de tratamento, é certo que o panorama constitucional das carreiras do MPU e da DPU sofreu, por Emendas Constitucionais  frise-se , mudanças significativas, que não foram acompanhadas pela AGU, pelo menos por enquanto..

Com efeito, a EC nº 19, de 1998, deu ao Ministério Público, no seu artigo 127, §2º, da CF/88 o poder de propor a "política remuneratória e os planos de carreira", que antes cabia apenas ao Presidente da República. Hoje, a legitimidade é disjuntiva, cabe tanto ao PGR quanto ao Presidente da República, embora não se tenha visto nos últimos anos propostas desse último sobre o MPU. Na Defensoria Pública da União, por seu turno, teve a "iniciativa de sua proposta orçamentária", o que inclui a política remuneratória de seus membros, incluída pela EC nº 74, de 2013, que inseriu o §3º no artigo 134 da CRFB, atribuindo a mesma autonomia das Defensorias Estaduais à DPU e DPDFT.

O princípio da simetria, no que couber  e que isso fique bem claro , à magistratura, foi outra novidade trazida por Emenda. No Ministério Público da União, a EC nº 45, de 2004, deu nova redação ao §4º do artigo 128 da CRFB trazendo a cláusula de que "aplica-se ao Ministério Público, no que couber, o disposto no artigo 93". Na Defensoria, foi o §4º do artigo 134 inserido pela EC nº 80, de 2014, que trouxe a cláusula "aplicando-se também, no que couber, o disposto no artigo 93 e no inciso II do artigo 96 desta Constituição Federal". Pelo texto legal, a simetria com a magistratura da Defensoria Pública é até maior do que a ministerial.

À AGU o legislador reformador, infelizmente, ainda tarda. Falta uma PEC para dar freios e contrapesos às carreiras jurídicas, outorgando à AGU a proposta sobre a "iniciativa de sua proposta orçamentária e a política remuneratória e os planos de carreira", bem como cláusula que lhe dê simetria da procuratura à magistratura, determinando que se aplica à Advocacia-Geral da União, na forma da lei e no que couber, o artigo 93 da Constituição da República.

Somente o foco numa PEC poderá corrigir anos de assimetria institucional que, no dia a dia, coloca a defesa do Poder Público em Juízo em desvantagem institucional. Lembrando que uma das primeiras propostas a tratar do tema foi a decantada PEC 82/2007 [8], de autoria do então deputado federal Flávio Dino, que também previa inovações para a Defensoria Pública. Esta avançou; a AGU, ainda é um gigante, em berço esplêndido.

 


[7] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional.  3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 999.

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