Opinião

Governança orçamentária em contratos de infraestrutura

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

4 de junho de 2023, 15h18

O planejamento de uma contratação pública envolve um processo preciso de organização orçamentária com o objetivo de garantir a previsão de recursos quando da execução de uma obra e/ou serviço de engenharia.

Ao determinar esse tipo de matriz de planejamento, a intenção do legislador é estabelecer uma regra uniforme que possibilite, além de lisura ao certame licitatório, previsibilidade para o pagamento, o que entoa a ideia de sustentabilidade orçamentária às contratações públicas.

O estabelecimento dessa matriz também busca evitar uma contratação irracional que eventualmente, especificamente em relação às contratações com viés de engenharia correlatas ao direito da infraestrutura, resultem em obras inacabadas ou até mesmo paralisadas.

O fôlego orçamentário às contratações públicas possui lastro na Lei Orçamentária Anual (LOA), gênero da espécie dotação orçamentária. Ao passo que na loa há uma autorização global e genérica, no dia a dia da gestão pública, o ordenador de despesas faz, de acordo com o seu juízo de discricionariedade, uma espécie de distribuição alocativa: a escolha onde e como gastar.

Embora a loa autorize o gasto de maneira genérica, no processo de planejamento do empenho orçamentário, é outro normativo que estabelece a dicção que comanda os passos da gestão pública: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Os artigos 16 e 17 da LRF apresentam a topografia do planejamento específico da distribuição orçamentária e determinam um estudo temporal a respeito do impacto orçamentário e financeiro da despesa pela janela de dois anos, incluindo o ano em que a despesa for implementada.

Em relação às licitações que possuem a temática de infraestrutura, tanto o regramento antigo, como a nova lei de licitações trazem uma preocupação específica em relação a assegurar recursos e para isso, a lei 14.133/2021 determina a obrigatoriedade de um "orçamento detalhado do custo global da obra, fundamentado em quantitativos de serviços e fornecimentos propriamente avaliados", nos termos do artigo 6º, inciso XXV, alínea "f".

Isso demonstra a preocupação do legislador em a administração pública não colocar um edital na rua sem a respectiva margem orçamentária que autorize aquele gasto e em relação ao direito da infraestrutura a preocupação é mais específica porque o regramento determina um "orçamento detalhado do custo global da obra".

Para balizar as ações do ordenador de despesas, a lei propõe um panorama de planejamento: o quantitativo de serviços e fornecimentos propriamente avaliados.

Ora, se a própria administração planeja a demanda, o volume de passivo a ser contratado deve ser estimado, o que é uma dedução lógica em relação à probidade administrativa e à própria responsabilidade na gestão fiscal, referenciais basilares para quem se propõe a administrar o erário.

Para isso existem instrumentos específicos que auxiliam a nortear o processo de tomada de decisão do gestor público, caso do estudo técnico preliminar, do termo de referência e do próprio projeto básico.

Contudo, embora aquelas ferramentas correlatas ao planejamento material de uma licitação intrínseca à infraestrutura sejam importantes, é preciso em primeiro lugar uma autorização política para gastar, que é contida no orçamento público, gênero que se divide nas seguintes espécies: Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA).

A responsabilidade na gestão fiscal se verticaliza pelo estudo a respeito da estimativa do impacto orçamentário (autorização para o gasto) e financeiro (efetivo lastro para adimplir a obrigação), e a LRF estabelece um lapso temporal em que o gestor deve projetar os efeitos da sua iminente decisão: dois anos, além do exercício em que o gasto for realizado.

Os gastos com infraestrutura são qualificados porque representam um suporte para a concretização do oferecimento dos direitos fundamentais sociais, os quais significam uma ponte para o desenvolvimento do país.

Além disso, o direito à infraestrutura simboliza molas que impulsionam a promoção da equidade: atuação estatal que objetiva proporcionar meios para o desenvolvimento das populações em situação de vulnerabilidade socioeconômica.

Dessa maneira, é possível afirmar que o gasto com infraestrutura é atividade meio porque serve como ferramenta para que o gestor público, em seu processo de criação discricionária, estabeleça premissas estratégicas para implementar as políticas públicas que estão sob a sua responsabilidade.

O direito à saúde, por exemplo, deve levar em consideração três perspectivas sobre o gasto: a compra de equipamentos e insumos, a contratação de pessoal e a própria construção de unidades de saúde, que vai desde as unidades básicas até os hospitais.

Como se vê, a implementação do direito à saúde perpassa variantes distintas do gasto público, que começa com a criação da própria infraestrutura.

Assim, o gasto com o direito da infraestrutura é a pedra fundamental da implementação de uma política pública e compõe, na escala de planejamento orçamentário, uma escolha prioritária.

 A pesquisa no direito financeiro demonstra que a judicialização do orçamento tem feito a jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal) amadurecer reflexões importantes sobre a matéria e o que se vê é que a relação de embate que se tinha entre a reserva do possível e o mínimo existencial se transformou em uma regra de hermenêutica mais ampla que deságua atualmente na teoria das escolhas trágicas.

Em relação à judicialização da ordenação de uma despesa, em um passado não muito remoto, existiam dois campos de argumentação: o mínimo existencial, pautado no princípio da dignidade da pessoa humana, e a reserva do possível, justificativa institucional do Estado de que "a Constituição não cabe no orçamento".

Atualmente o STF realmente entende que o gestor público diariamente deve tomar decisões difíceis e aquela corte encampa um novo padrão jurisprudencial a respeito do tema, que é a teoria das escolhas trágicas.

Por intermédio daquela teoria, o pensamento do Supremo é de que "Os recursos estatais são, por excelência, escassos, de modo que há, no mais das vezes, um descompasso entre as demandas da sociedade e as correspondentes capacidades jurídico-administrativas do Estado. Consectariamente, na impossibilidade fática de aplicar recursos ótimos em todas as áreas deficitárias, o gestor público deve realizar escolhas alocativas trágicas" [1].

Ora, se há um reconhecimento jurisprudencial de que os recursos estatais são, por excelência, escassos, logo, em seu processo de escolha alocativa o gestor público deve ter em mente um planejamento estratégico para maximizar a utilização de recursos públicos e como o gasto com infraestrutura é transversal, então, deve ser priorizado.

A transversalidade do direito à infraestrutura diz respeito à possibilidade de que obras e serviços de engenharia prestigiam o princípio da eficiência administrativa porque servem de estradas para pavimentação da oferta de direitos fundamentais, caso da saúde e educação, por exemplo.

A construção de escolas e hospitais são atividades meio que criam condições à implementação de estratégias institucionais, corporificam, e principalmente, concretizam as diretrizes daquelas políticas públicas setoriais.

Nesse sentido, a escolha política do gasto em seu processo de elaboração do planejamento orçamentário deve, necessariamente, levar em consideração a um primeiro momento a autorização alocativa com despesas de infraestrutura.

É oportuno informar que não se quer dizer que todo o orçamento seja pautado com obras e serviços de engenharia, mas é preciso fazer um alerta no sentido de que a disponibilidade financeira com aquele tipo de gasto deve ser levada em consideração, sob o risco de se ter um problema de inocuidade orçamentária, caso das obras paralisadas e inacabadas.

O estudo do direito da infraestrutura brasileira deságua no entendimento de que há um problema estruturante de governança orçamentária em contratos de infraestrutura, o que ocasiona uma automática perda de eficiência àquelas despesas.

O Congresso já teve a oportunidade de debruçar sobre o tema na CPI das obras inacabadas que, muito embora o relatório final seja do ano de 2001, o contexto é bastante atual, o que implica dizer que a administração pública repete os erros estratégicos de maneira perene.

Em sua conclusão, aquele relatório [2] aponta como um problema grave na condução dos projetos de obras públicas "o descompasso entre o cronograma físico e as liberações financeiras. Constantes atrasos e protelações geram a paralisação da obra e servem de pretexto a procedimentos ilegais como a supervalorização. A observação dos cronogramas financeiros é obrigação da administração e seu descumprimento pode desobrigar o contratado de seus deveres, nos termos e condições definidos em lei. O atraso dos pagamentos é sem dúvida causa de descaso e má prestação de serviços, além de induzir ao superfaturamento".

Aponta aquele documento que um problema crônico encontrado naquela investigação foi a inobservância do que era pactuado no cronograma financeiro, o que resultava em constantes atrasos e protelações que ocasionavam a paralisação de uma obra.

E qual a estratégia que o direito financeiro propõe a esse problema correlato ao direito da infraestrutura e ao direito administrativo?

Uma solução propositiva para esse assunto deve ser a ampliação do controle do gasto em relação à execução orçamentária porque se a lei de licitações proíbe a colocação de um edital na praça sem a adequada previsão orçamentária para o adimplemento do futuro contrato, qual a justificativa para a paralisação de uma obra por falta de pagamento?

Como a execução orçamentária depende da real concretização da projeção da receita, pode ser que por uma intempérie durante o exercício financeiro determinado ente político não realize a arrecadação prevista, o que demanda uma readequação orçamentária para suportar aquela perda.

Esse panorama remete a pesquisa em direito financeiro ao artigo 9º da LRF, o qual estabelece como obrigação legal a limitação de empenho e movimentação financeira, de acordo com os critérios fixados na lei de diretrizes orçamentárias, se, ao final de cada bimestre, for verificado que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado.

É o que se chama de contingenciamento orçamentário, que deve ter uma justifica plausível que denote a causa de eventual corte orçamentário e a causa daquele tipo de ato administrativo deve ser examinada pelos órgãos de controle.

Sobre a causa do ato administrativo, Vladimir da Rocha França pontua que é um pressuposto lógico que deve haver entre o motivo e o conteúdo, em vista da finalidade legal e que também é base para o controle: "Mediante a causa torna-se possível o controle da razoabilidade e da proporcionalidade dos atos administrativos decorrentes do exercício de competência discricionária" [3].

Dessa maneira, ao contingenciar o orçamento, deve o ordenador de despesas justificar aquela limitação à luz das justificativas prescritas pela lei de responsabilidade fiscal, o que o obriga a expor procedimentos de escrituração contábil, atos eminentemente formais.

Estabelecida a necessidade de se contingenciar o orçamento, em seu processo de escolha alocativa, o gestor público indica quais despesas serão objeto daquela asfixia e é naquele momento em que o gasto com infraestrutura merece ser priorizado.

Em outras palavras: imposta a necessidade de contingenciar o orçamento, vem a trágica decisão do administrador público: o que repensar em relação ao modelo autorizativo de gasto previamente estabelecido, cuja permissibilidade conduz o juízo de discricionariedade alocativa?

Um reflexão bem-vinda é a respeito da sustentabilidade orçamentária do gasto público, ideia que leva em consideração as despesas em execução, cuja inação coloca em risco o princípio da eficiência administrativa e permeia a inocuidade do gasto público.

Sustentabilidade orçamentária diz respeito ao fato de que o custeio de despesas públicas em andamento deve prevalecer sobre a criação de novas, sob pena de se aumentar a autorização de gasto sem necessariamente garantir o lastro financeiro para a sua efetiva concretização.

Nesse contexto, no processo de contingenciamento orçamentário, as verbas previamente alocadas para cobrir despesas com infraestrutura devem permanecer incólumes e é sobre isso que os órgãos de controle devem se debruçar porque conforme ensina Flávio Garcia Cabral "Qualquer órgão de controle que se proponha a fiscalizar o cumprimento ou não da eficiência administrativa somente poderá fazê-lo por intermédio da avaliação probatória de cada caso concreto" [4].

Dessa forma, a política de governança orçamentária em obras de infraestrutura deve levar em consideração a prioridade alocativa com ênfase no princípio da eficiência administrativa de modo a evitar que a autorização prévia do gasto sucumba em decorrência de eventual frustração de receita.

Caso contrário, a inação orçamentária em contratos de infraestrutura, além de trazer transtornos em relação às obras paralisadas e inacabadas, também pode ser fruto de demanda judicial em que sejam cobradas multas e atualizações monetárias em relação ao pagamento para os fornecedores.

Para evitar isso o direito financeiro, pela ideia de sustentabilidade orçamentária, surge como proposta hermenêutica a justificar a prioridade alocativa no gasto de infraestrutura de forma a garantir continuidade de políticas públicas de obras e serviços de engenharia em andamento.

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Referências bibliográficas
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADO 2. Órgão Julgador: Pleno do Supremo Tribunal Federal. Relatoria do ministro Luiz Fux

BRASIL, relatório da CPI das obras inacabadas. Brasília/DF, 2001. Disponível em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/51-legislatura/cpiobras/relatoriofinal.pdf

CABRAL, Flávio Garcia. O conteúdo jurídico da eficiência administrativa. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2019

FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Malheiros editores. São Paulo/SP: 2007

 


[1] ADO 2. Órgão Julgador: Pleno do Supremo Tribunal Federal. Relatoria do ministro Luiz Fux. Data do Julgamento: 15/04/2020. Data da Publicação: 30/04/2020.

[3] FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Malheiros editores. São Paulo/SP: 2007, pp 84/85

[4] CABRAL, Flávio Garcia. O conteúdo jurídico da eficiência administrativa. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2019, p.231.

Autores

  • é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos e especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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