Seguros Contemporâneos

Aprovação do PL de Seguros n° 29/2017 seria um erro (parte 2)

Autor

  • Thiago Junqueira

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

1 de junho de 2023, 8h00

Continuação da parte 1
Dando continuidade à primeira parte deste artigo, na sequência serão analisados mais oito aspectos que merecem atenção na versão atual do PL (projeto de lei) da Câmara n° 29, de 2017, que pretende instituir uma Lei Geral de Seguros no Brasil, revogando parcialmente o Código Civil.

2.7. Ausência de definição do dever de informação do estipulante aos segurados
O artigo 31 do PL atesta: "Cabe ao estipulante, além de outras atribuições que decorram de lei ou de convenção, assistir ao segurado e ao beneficiário durante a execução do contrato". Nenhuma palavra é dada sobre a assistência ao segurado na fase anterior à execução do contrato. Questiona-se, nesse sentido, se a Lei de Seguros deveria desrespeitar a jurisprudência pátria em relação ao dever de informação do estipulante nos seguros coletivos, bem como a regulação da Susep, que impõe ao estipulante deveres de boa-fé e transparência desde a fase pré-contratual.

Conforme pronunciamentos recentes do STJ, inclusive da 2ª seção,[1] no seguro coletivo cabe ao segurador informar as condições contratuais ao estipulante, que, por sua vez, será o responsável por repassar tais informações ao segurado, no momento de adesão ao plano.

2.8. Dever de informação do candidato a segurado restrito ao questionamento que lhe submeta a seguradora?
Incoerência entre os artigo 47 e 48 do PL

Dispõe o artigo 47 do PL: "O proponente é obrigado a fornecer as informações necessárias para a aceitação do contrato e fixação da taxa para cálculo do valor do prêmio, de acordo com o questionamento que lhe submeta a seguradora. (…)".

Em primeira instância, releva destacar que o uso do termo "proponente" neste artigo parece inadequado, já que o artigo 44 do PL prevê que a "proposta de seguro pode ser efetuada pelo segurado, pelo estipulante ou pela seguradora" e, em sendo a seguradora a proponente, ou seja, quem efetua a proposta, torna-se complexo entender como ela forneceria as informações para aceitação e cálculo do prêmio de acordo com o questionamento feito por ela mesma.

Ademais, aparentemente houve o estabelecimento, ao segurado proponente, de um dever de informação restrito à resposta ao questionário de avaliação do risco. Diz-se "aparentemente" pois, de forma paradoxal, o artigo 48 do PL estatui: "As partes e os terceiros intervenientes no contrato devem informar tudo que souberem de relevante, bem como aquilo que deveriam saber, a respeito do interesse e do risco a serem garantidos, de acordo com as regras ordinárias de conhecimento".

É nítida a falta de coerência entre o artigo 48 e o artigo 47 do PL, visto que o primeiro limita o dever de resposta ao questionário apresentado pelo segurador, enquanto o segundo estabelece a necessidade de declaração pelas partes — especialmente, segurado e seguradora — de tudo que souber de relevante, bem como aquilo que deveria saber, sem ressalvar a mera resposta às perguntas. A interpretação conjunta desses dois dispositivos levanta sérias dúvidas.

Spacca
Além disso, não são abordados aspectos relevantes sobre a declaração inicial do risco, como o destino do prêmio caso haja a perda da garantia e a necessidade (ou não) de comprovação de nexo de causalidade entre o descumprimento do dever de informação e a ocorrência do sinistro, para as consequências previstas no artigo 47 do PL.[2]

2.9. Abrandamento do regime do agravamento do risco inerente ao segurado
O tratamento do agravamento do risco no PL (arts. 18 e 19) irá prejudicar a tutela do equilíbrio contratual nas relações contratuais. Além de exigir que haja um "relevante agravamento do risco" "dolosamente" não comunicado para eventuais efeitos negativos para os segurados (como a perda do direito à garantia), o PL diz que "[s]erá relevante o agravamento que conduza ao aumento significativo e continuado da probabilidade de realização do risco ou da severidade de seus efeitos" (artigo 18, § 1º).

Além da menção ao "relevante", há a introdução do problemático requisito da "continuidade" para a qualificação do agravamento do risco, em dissonância com a lei atual, a doutrina e a jurisprudência.[3] O § 5º do artigo 18 diz ainda: "A seguradora não responderá pelas consequências do ato praticado com a intenção de aumentar a probabilidade ou de tornar mais severos os efeitos do sinistro".  

No clássico exemplo do seguro de automóvel, é de se questionar: o segurado teria que dirigir o seu veículo continuamente embriagado, com a deliberada intenção de aumentar a probabilidade ou de tornar mais severos os efeitos do sinistro, para que ocorresse a perda da garantia em caso de uma colisão? Os incentivos e os impactos sociais dessa alteração legislativa proposta foram devidamente considerados?[4]

2.10. Seguro de vida e agravamento do risco: necessidade de cobertura do sinistro pela seguradora
Segundo o § 6º do artigo 18 do PL: "Nos seguros sobre a vida ou integridade física a seguradora poderá cobrar a diferença de prêmio, em caso de agravamento voluntário do risco".

Interpretando esse dispositivo, parece que, nas referidas modalidades securitárias, haverá apenas a possibilidade de cobrança da diferença de prêmio, mesmo que o segurado tenha agravado voluntariamente — leia-se dolosamente — o risco de maneira "relevante". Essa conclusão, embora não esteja expressamente estipulada na norma citada, é extraída de sua comparação com o parágrafo anterior, o já transcrito § 5º do artigo 18 do PL

Na prática, não haverá mais a perda de cobertura pelo agravamento do risco nos seguros sobre a vida ou integridade física. Casos semelhantes aos quais o STJ decidiu pela perda da cobertura terão desfechos distintos. Por exemplo: i) quando o segurado dirige um veículo na contramão e sem habilitação;[5] ii) quando o segurado se envolve em uma briga que resulta em sua morte devido ao uso de uma arma de fogo que ele mesmo portava;[6] e iii) quando o segurado dirige o seu automóvel embriagado e sem cinto de segurança.[7]

No limite, é de se indagar: a seguradora terá que pagar para o beneficiário o capital segurado de um segurado que venha a falecer enquanto assaltava um banco ou participava de uma disputa de racha? Repita-se: quais as implicações sociais dessa nova postura do legislador? Vale a pena agravar o risco social para não agravar o risco do segurado? É importante observar que em muitos casos a seguradora simplesmente opta por não dar cobertura a certos riscos, sendo deveras questionável essa solução de cobrança da diferença do prêmio.

2.11. Impossibilidade de defesa da seguradora nos seguros em que o risco coberto seja a vida ou a integridade física
Dispõe o artigo 35 do PL: "Além das defesas e exceções próprias ao segurado e ao beneficiário, a seguradora poderá opor-lhes todas as fundadas no contrato anteriores ao sinistro e, salvo no caso dos seguros em que o risco coberto seja a vida ou a integridade física, também as posteriores ao sinistro".

Se bem compreendido o confuso dispositivo, na prática, as seguradoras não poderão opor exceções e defesas aos segurados e beneficiários nos seguros que garantam a vida e a integridade física dos segurados. Excetuando a violação ao dever de declaração inicial do risco, que também é afastada em caso de estipulação de prazo de carência, conforme será visto no item 2.14, e o suicídio do segurado (artigo 118 do PL), tudo mais aparentemente estaria coberto caso o PL seja aprovado em sua versão atual, mesmo que o segurado/beneficiário tendo atuado com manifesta má-fé e inadimplido suas obrigações durante o programa contratual.

2.12. Critérios genéricos e não técnicos para a ausência de discriminação nos seguros
Segundo o artigo 52 do PL: "Recebida a proposta, a seguradora terá o prazo máximo de quinze dias para cientificar sua recusa ao proponente, ao final do qual será considerada aceita. (…) § 5º Os critérios comerciais e técnicos de subscrição ou aceitação de riscos devem promover a solidariedade e o desenvolvimento econômico e social, sendo vedadas políticas técnicas e comerciais conducentes à discriminação social ou prejudiciais à livre iniciativa empresarial. (…)".

Conforme se nota, foram estabelecidos critérios antidiscriminatórios genéricos e tecnicamente imprecisos, o que pode gerar interpretações duvidosas e insegurança jurídica.[8]

2.13. Inversão da lógica da interpretação restritiva nos contratos de seguro
Segundo o artigo 61 do PL: "As cláusulas referentes à exclusão de riscos e prejuízos ou que impliquem restrição ou perda de direitos e garantias são de interpretação restritiva quanto à sua incidência e abrangência, cabendo à seguradora a prova do seu suporte fático".

O artigo em questão parece inverter a lógica reconhecida pelos tribunais.[9] Em vez de as garantias terem interpretação restritiva, levando em consideração os riscos predeterminados (artigo 757 do CC), as cláusulas de exclusão de riscos e perdas de direito passam a ter incidência e abrangência restritivas.

2.14. Impossibilidade de alegação de doença preexistente não declarada em caso de estipulação de um prazo de carência pela seguradora
Segundo dispõe o § 4º do artigo 116 do PL, "[c]onvencionada a carência, a seguradora não poderá negar o pagamento do capital sob a alegação de pré-existência de estado patológico". Essa impossibilidade de perda de direito oriunda do inadimplemento do dever de informar doenças preexistentes nos seguros sobre a vida e a integridade física é reforçada no parágrafo único do artigo 117 do PL: "A exclusão só poderá ser alegada quando não convencionado prazo de carência e desde que o segurado, questionado claramente, omita voluntariamente a informação da preexistência".

O PL parece confundir carência e dever pré-contratual de declaração dos riscos em relação a doenças preexistentes. Na prática, caso a seguradora estabeleça um prazo de carência de noventa dias para o início da cobertura dos riscos predeterminados, não poderá mais negar a cobertura devido a uma doença preexistente não declarada, mesmo que o segurado tenha fornecido informações falsas no questionário de avaliação do risco sobre ser portador de um câncer terminal ou outra doença grave.

Isso significa que, ao contrário do que acontece atualmente, no exemplo mencionado, se o segurado falecer noventa e um dias após a contratação em decorrência da doença preexistente dolosamente não declarada, a seguradora será obrigada a pagar o capital segurado, o que vai de encontro à boa-fé objetiva, ao equilíbrio contratual e ao combate à seleção adversa do risco.

3. Conclusão
Tal qual reiterado pelo STF em julgamento recente, "É com o objetivo de garantir a higidez econômico-financeira do segurador, a livre concorrência, a proteção do consumidor, e a cooperação entre os seguradores no mercado, que há indispensável preocupação de se regular e fiscalizar o mercado de seguros".[10]

Tendo isso em mente e com o intuito de contribuir para o debate sobre a conveniência da aprovação do PL de Seguros n° 29/2017, abordaram-se quatorze aspectos problemáticos nesta coluna, dividida em duas partes. Por opção metodológica, considerando o limite de espaço disponível, não foram examinados, entre outros, os dispositivos do PL que tratam dos temas da arbitragem e do resseguro.

Com o devido respeito, chega-se à conclusão de que o PL de Seguros, em sua versão atual, é excessivamente intervencionista e desequilibrado, além de estar obsoleto e carente de diversos reparos.[11] Portanto, é recomendável que ele seja debatido e aprimorado antes de qualquer avanço.

Uma abordagem oportuna seria o Senado criar uma comissão plural de especialistas para discutir e aprimorar o PL em um ambiente neutro e impessoal. Essa comissão poderia elaborar um substitutivo que levasse em consideração as experiências estrangeiras na matéria, as particularidades brasileiras e as significativas mudanças sociais, regulatórias, tecnológicas e jurisprudenciais ocorridas nos últimos anos.

 


[1] Teses para os fins do art. 1.040 do CPC/2015: (i) na modalidade de contrato de seguro de vida coletivo, cabe exclusivamente ao estipulante, mandatário legal e único sujeito que tem vínculo anterior com os membros do grupo segurável (estipulação própria), a obrigação de prestar informações prévias aos potenciais segurados acerca das condições contratuais quando da formalização da adesão, incluídas as cláusulas limitativas e restritivas de direito previstas na apólice mestre, e (ii) não se incluem, no âmbito da matéria afetada, as causas originadas de estipulação imprópria e de falsos estipulantes, visto que as apólices coletivas nessas figuras devem ser consideradas apólices individuais, no que tange ao relacionamento dos segurados com a sociedade seguradora”. (STJ, 2ª Seção, REsp n. 1.874.811/SC, Min. Rel. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 02 mar. 2023).

[2] Para uma crítica de alguns aspectos relativos ao tratamento do dever pré-contratual de informação do candidato a segurado, disposto na versão anterior do PL brasileiro, mas igualmente aplicável ao PL n° 29/2017, confira-se, na doutrina portuguesa: POÇAS, Luís. O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro. Lisboa: Almedina, 2013. pp. 279-281.

[3] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos Seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 238, onde pode-se ler: “Em casos de agravamento intencional (art. 768), o caráter duradouro aparece como elemento de reforço da circunstância agravante, mas não essencial”.

[4] Sobre o tema, consulte-se: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. Agravamento do risco no seguro de vida em virtude de direção alcoolizada. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-25/seguros-contemporaneos-agravamento-risco-seguro-vida-virtude-direcao-alcoolizada

[5] STJ, 4ª Turma, AgInt no AREsp 1918874/SC, Min. Rel. Luis Felipe Salomão, j. 21 fev. 2022.  

[6] STJ, 3ª Turma, AgRg no AREsp 613000/RJ, Ministro Relator Marco Aurélio Bellizze, j. 26 maio. 2015.  

[7] STJ, 4ª Turma, EDcl no REsp 1243077/SP, Min. Rel. Raul Araújo, j. 13 ago. 2013.

[8] Para um exame da matéria, JUNQUEIRA, Thiago. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.

[9] Por todos, STJ, 4ª Turma, AgInt in AREsp n. 1.096.881/SP, Rel: Min. Luis Felipe Salomao, j. 15 mar. 2018, em que se pode ler: “Ademais, ressalte-se que, no caso de exclusão ou limitação expressa de cobertura, é legítima a negativa de cobertura pela seguradora, porquanto as cláusulas do contrato de seguro devem ter interpretação restritiva”.

[10] STF, Tribunal Pleno, ADI nº 7.151-RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 02.05.2023.

[11] “A regulação dos seguros existe tanto para corrigir falhas do mercado quanto para proteger os mercados de seguros à luz do importante papel que desempenham na sociedade. Para realizar tal trabalho, os reguladores – incluindo os comissários estaduais de seguros, legisladores e tribunais – estabeleceram uma série de estruturas projetadas para evitar o oportunismo, corrigir as peculiaridades comportamentais dos consumidores de seguros e socializar os riscos de forma mais ampla. Para continuar desempenhado esse trabalho, os reguladores devem garantir que tenham capacidade, conhecimento técnico e as informações das seguradoras necessárias para avaliar o que a IA está fazendo e por quê”. SWEDLOFF, Rick. The New Regulatory Imperative for Insurance. Boston College Law Review, Vol. 61, Issue 6, 2020. p. 2084. (Tradução livre).

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