Opinião

A Justiça do Trabalho precisa falar. Antes que seja tarde demais

Autor

  • Marcel da Costa Roman Bispo

    é juiz titular da 80ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro atualmente convocado para atuar no segundo grau do TRT-RJ e associado da Amatra1 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 1ª Região).

1 de junho de 2023, 6h03

Há dias foi noticiada a derrubada de um acórdão do TRT-3 (Tribunal Regional da 3ª Região) pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal). O julgado reconhecera o vínculo de emprego entre um motorista e a plataforma digital (Rcl 59.795/MG).

Para quem acompanha a Justiça do Trabalho de perto, a notícia não causou surpresa. Decisões como essa começam a ser reproduzidas em defesas e recursos. O STF, em decisões liminares proferidas em reclamações constitucionais, bloqueou pedidos iguais de advogados diante de escritórios de advocacia (por exemplo Rcl 57.918/RJ), médicos (Rcl 47.843 AgR/BA), corretores de seguros (Rcl 58.333), dentre outros.

O instrumento jurídico utilizado é a reclamação constitucional prevista no artigo 102, 1, da CF/88 para a "preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões".

O artigo 988 do CPC autoriza a reclamação constitucional para; I – preservar a competência do tribunal; II – garantir a autoridade das decisões do tribunal; III – garantir a observância de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; IV – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência. IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência.

A rigor, nenhum dos dispositivos acima foi frontalmente atacado pela declaração de emprego de médicos, advogados, corretores e motoristas de aplicativo.

As decisões constitucionais supostamente afrontadas pela Justiça do Trabalho seriam o Tema 725 da Repercussão Geral, a ADC nº 48, a ADPF nº 324 e a ADI nº 5.625/DF.

Na Ação Direta de Constitucionalidade nº 48 declarou-se a constitucionalidade da Lei do Transporte Rodoviário de Carga (L.11.442/2007). Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 323 concluiu-se pela licitude da terceirização ou qualquer outra forma de divisão de trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independente do objeto social das empresas envolvidas, tal como o Tema 725 que firmou a tese da licitude da terceirização em atividade-meio ou fim ("É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante") e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 324 validou-se a terceirização "em todas as etapas do processo produtivo".

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.625/DF afirmou a constitucionalidade da contratação de profissionais individuais do setor de estética e beleza, sob a forma de parceria.

Por mais empoderada que a terceirização tenha sido, bem ou mal, a relação se dá entre pessoas jurídicas. Os empregados das empresas terceirizadas continuaram sendo empregados após todas essas decisões. Apenas com menos direitos.

O STF interpretou e estendeu sua própria competência para alcançar não só a conclusão (dispositivo), mas a fundamentação das decisões que nem precisariam ter efeitos vinculantes. Dentre várias dificuldades, é preciso lembrar que as decisões da Suprema Corte são por soma de votos. O fundamento de um ministro pode não ser determinante para outro, ainda que o resultado final seja o mesmo. Aliás, uma opinião proferida num voto pode não ser determinante nem para o próprio voto. E, para o processo civil, os fundamentos não integram a coisa julgada, só o resultado. Ademais, a fórmula desconsidera os votos minoritários.

Chamamos a atenção para os termos literais da decisão proferida na ADI nº 5.625/DF: O tribunal, por maioria, julgou improcedente o pedido formulado na ação direta, nos termos do voto do ministro Nunes Marques, redator para o acórdão, vencidos os ministros Edson Fachin (relator) e Rosa Weber. Foi fixada a seguinte tese de julgamento: "1) É constitucional a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, nos termos da Lei 13.352, de 27 de outubro de 2016; 2) É nulo o contrato civil de parceria referido, quando utilizado para dissimular relação de emprego de fato existente, a ser reconhecida sempre que se fizerem presentes seus elementos caracterizadores".

Sendo assim, quais os fundamentos constitucionais foram violados pela Justiça do Trabalho?

Na Reclamação nº 56.285/SP, o ministro Luís Roberto Barroso concluiu que "a 1ª Turma desta Corte, por maioria, decidiu ser lícita a terceirização por pejotização não havendo falar em irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por profissionais liberais para prestar serviços terceirizados na atividade-fim do contratante".

Pejotização é um neologismo forjado para descrever a contratação de pessoas físicas sob o manto de uma pessoa jurídica. Não diz respeito ao conteúdo, mas a roupagem jurídica dada à relação. Ao tomar a forma pelo conteúdo, constrói-se a presunção absoluta que o trabalhador pejotizado corresponde, de fato, a uma pessoa jurídica em pleno funcionamento e daí enquadra-se o caso na hipótese geral da terceirização entre duas pessoas jurídicas autorizada pelo Tema 725.

A presunção acaba sendo absoluta porque se sobrepõe a conclusão de um julgado submetido ao duplo grau de jurisdição e a ampla produção de prova sobre o crivo do contraditório.

As reclamações convergem para a mesma conclusão: "Verifica-se, assim, a posição reiterada da Corte no sentido da permissão constitucional de formas alternativas da relação de emprego".

A possibilidade de formas alternativas da relação de emprego não é incompatível com a existência do vínculo no caso concreto, pela presença dos elementos definidores do contrato de trabalho previstos no artigo 3º da CLT.

Ao fim e ao cabo, o que está sendo afirmado é a autonomia de vontade das contratantes de definir a natureza jurídica do contrato. Com isso, derrubam os fundamentos do Direito de Trabalho, o princípio tutelar que reconhece a existência de uma desigualdade estrutural entre a posição do empregado contratado e do empregador contratante e o princípio da irrenunciabilidade das leis trabalhistas, formada por normas de ordem pública.

O contrato de trabalho corresponde a determinada forma de execução dos serviços que, uma vez identificada no caso concreto, não pode ser afastada pela vontade das partes.

O Direito do Trabalho está fortemente ancorado em valores, princípios e direitos escritos em tratados internacionais (artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos) e no texto da Constituição Federal, cujo preâmbulo aponta para a criação de um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais que tem como princípios fundamentais a cidadania (artigo 1º, inciso II), a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, inciso III). Os direitos trabalhistas relacionados no artigo 7º correspondem ao patamar básico de proteção "além de outros, que visem à melhoria de sua condição social". O artigo 170 assenta a ordem econômica na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa com o objetivo de assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social.

A jurisdição é inerte e precisa ser acionada pela iniciativa autônoma de uma pessoa que deseja questionar os termos do contrato celebrado. O argumento da autonomia, no caso, é como dizer para o autor (a) em quase toda demanda (trabalhista ou não) que ele/ela é responsável pelo infortúnio que lhe acometeu porque, em algum momento da sua vida, aceitou entrar numa relação qualquer.

Levando o raciocínio as últimas consequências, empregado seria apenas aquele que o empregador diz que é. 

Esse uso das reclamações constitucionais nega à Justiça do Trabalho a sua competência de declarar a existência do vínculo de emprego prevista no artigo 114 da CF e torna o percurso processual do(s) autor(es) ainda mais incerto e difícil, influindo nas expectativas e comportamento de partes e operadores do Direito.

Não tenho a pretensão de ensinar Direito Constitucional aos ministros do STF. Eles sabem de cor todas essas objeções e seriam capazes de refutá-las com montanhas de argumentos técnicos. Essas e outras decisões do STF em matéria trabalhista deixam transparecer a sincera crença na superação do contrato de trabalho. E de que a sociedade salarial é algo que está morrendo mesmo, daí porque não há motivo para se apegar a velhos preceitos, ainda que amparados em textos literais e vigentes de lei e/ou da Constituição.

Aqui é que se coloca a imensa responsabilidade dos operadores do Direito do Trabalho (juízes e servidores, advogados e membros do Ministério Público) e de todos aqueles que ainda têm fé e esperança num futuro com direitos sociais e trabalhistas. Precisamos questionar respeitosa, mas abertamente, as premissas e expor as consequências destas decisões, que podem ser graves, profundas e permanentes. Antes que seja tarde demais.

Autores

  • é juiz titular da 80ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, atualmente convocado para atuar no segundo grau do TRT-RJ, e associado da Amatra1 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 1ª Região).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!