Opinião

O mundo dos disfarces

Autor

  • Fernando A. G. C. Saraiva

    é professor de Direito Tributário especialista em Direito Constitucional auditor fiscal da Receita Federal do Brasil aposentado diretor do escritório Saraiva Advogados Associados em Ponta Grossa e do escritório SFBG Advogados em São Paulo.

1 de junho de 2023, 9h22

Muito se estuda na filosofia o que é o ser, o dever ser, o real, o ideal, o natural, o psíquico e como o conhecimento se opera, razão, intuição, juízos a priori, analíticos e até sintéticos, mas as relações sociais contemporâneas, que, com a evolução histórico-cultural, e com atributo valor carreiam de fundamento os preceitos normativos, deveriam se mostrar autênticas, despidas de qualquer disfarce, o que, em muitos casos, não ocorre.

Após essa construção, da análise feita por um ou mais seres cognoscentes, com todo arcabouço cultural, valores individuais e coletivos, constituem a norma jurídica, vinculante individual ou coletivamente, a depender da origem do ser cognoscente e do recurso que a ele chegou o objeto. Nesse mar de valores e elementos, espera-se a conquista da mansidão na crença que não teremos ondas de desajustes frequentes, a saber, que o ser cognoscente não navegue em águas turvas por interesses casuísticos, balançando de um lado para outro, como se impulsionado por ventos multidirecionais.

Essa tradução exegética do preceito normativo deve ser estável, claro que não perpétua, mas com um mínimo de coerência e constância, para que os súditos estejam certos do que é ou não justiça extraída da consciência coletiva e possam traçar seu futuro com alicerce firmado em segurança jurídica.

O ser que deve ser já está zonzo, porque o dever baila de um ponto ao outro ao bel-prazer dos ditos intelectuais jurídicos, que, com sua argumentação fecunda, produzem frutos das mais diversas cores e sabores, que sabem doces ou ácidos a depender de quem os experimenta. Esses frutos, que ora são doces ora são ácidos, embalam todo um mundo jurídico de disfarces.

Sim, disfarce do que é valor, disfarce do que é construção jurídica, que balança, mas, disfarçadamente, não cai, disfarce do que legítimo, disfarce do que é justo, em síntese, a hipocrisia transvestida de valor.

Passemos, em face da restrição de extensão do texto, e da paciência dos leitores, a um campo de análise, as relações tributárias.

Há uma enorme diferença de potência entre os polos dessa relação, vigorando de uma forma bem mais expressiva o polo estatal, força essa justificada pelo, muitas vezes, disfarçado interesse público.

Há sem dúvida um interesse público na harmonia federativa, na segurança jurídica, que deveria estar, em todo seu esplendor, baseada no respeito aos precedentes, de preferência, não disfarçados de advindos da consciência coletiva, do respeito entre os poderes estabelecidos por nossa sagrada Constituição Federal.

Vejamos uma norma jurídica construída da necessidade de se distinguir faturamento de receita total, com uma argumentação que levava a crer ser intransponível por exegeses futuras, pois nos parecia óbvio que um imposto cobrado em favor da máquina de arrecadação estatal não poderia ocupar uma cadeira na base de cálculo de outro tributo, pois seria o mesmo que castigar o agente de fato (empresário) por um ônus que arcou em prol do Fisco.

Mas não demorou muito para o disfarce vir em forma de julgamento, alegando que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, ao considerar que uma decisão contrária a esse precedente da Corte Suprema não poderia abalar a confiança da sociedade em decisões duradouras e constantes, e essa decisão julgou cabível a inserção do ICMS na base de cálculo da contribuição sobre a receita bruta [1], assim como uma próxima que julgou cabível que a base presumida do Imposto de renda abarcasse o ICMS [2].

Vejamos também o mundo dos disfarces aparecer quando da utilização do recurso da modulação dos efeitos, importante instrumento para limpar o direito positiva de máculas constitucionais, mas utilizado de forma que confunde o ser que quer ser dever ser, como quando do julgamento da constitucionalidade do Funrural [3], no qual a modulação dos efeitos não funcionou, disfarçada de interesse público e preservação das contas públicas.

A jurisprudência era remansosa no sentido da inconstitucionalidade da dita contribuição, fazendo com que o ser no seu dever ser, e crendo na força e estabilidade jurídica, deixasse de recolher, aliás se diferente fizesse, morreria à míngua, face à concorrência.

Esse era um exemplo claro da necessidade de declaração de constitucionalidade com efeito ex nunc, porém, o efeito, por não se utilizar o instrumento da modulação, foi o retroativo, provocando repercussão financeira expressiva em todos os seres que só quiseram ser o dever ser.

Os estados podem, a seu critério e pelos mais variados motivos, conceder benefícios fiscais de várias formas, sendo a que atine ao nosso artigo é a redução tributária por meio da concessão de créditos presumidos, redução da base de cálculo, isenção, parcelamentos especiais, entre outros. Pasme-se, os Estados concedem essa redução, mas uma parte desse benefício é disfarçadamente absorvida pela União, por meio da tributação desses benefícios utilizando a incidência do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas (IRPJ) e da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) sobre os mesmos, dessa forma gerando, no mínimo, um mal-estar entre entidades federativas.

A mudança no poder com a alteração radical da ideologia política, extrema direita para esquerda, disfarçada de moderada, atinge frontalmente a necessidade de uma arrecadação mais expressiva, claro, a satisfazer os objetivos sociais idealizados por essa linha de governo, por meio da intervenção estatal nas ordens sociais e econômicas.

Só que o discurso também se funda num disfarce de melhor gestão da coisa pública, inclusive com um novo arcabouço fiscal, demovendo outro recém-criado (insegurança jurídica clara aos olhos do investidor estrangeiro).

Aqui não estou fazendo juízo de valor sobre um ou outro controle, apenas sinalizando que essas alterações só promovem desconfiança internacional a respeito de nossas intenções (ou disfarces).

Outro pacote envelopado por um título que ganha sempre apoio popular, reforma tributária, porque, por meio de disfarces, faz crer a esses ingênuos o oásis da redução tributária, da redução da complexidade do sistema, da, enfim, justiça fiscal. Ledo engano, uma verdadeira reforma tributária deve passar em primeiro lugar pela Constituição, respeitar a autonomia financeira das entidades federativas, levar em conta, de fato, a capacidade contributiva, para, com base nesses princípios enfrentar os preceitos infraconstitucionais.

Antecedente lógico e necessário a uma reforma tributária é uma contenção de gastos públicos, que pode advir de uma expressiva reforma administrativa, visando a redução a níveis bem baixos dos cargos em comissão, cujos ocupantes, não raras vezes, estão disfarçados de especialistas, mas não passam de vendedores de políticos.

Neste paraíso de ilusões, só nos resta sermos adeptos do estoicismo, eliminando paixões, aceitando resignadamente nosso destino, para sermos verdadeiramente felizes.

 


[1] Tema de repercussão geral nº 1.048 (leading case Recurso Extraordinário nº 1.187.264).

[2] Tema de recursos repetitivos nº 1.008 (leading cases Recursos Especiais nº’s 1.767.631/SC e 1.772.470/RS).

[3] Tema de repercussão geral nº 669 (leading case Recurso Extraordinário nº 718.874).

Autores

  • é professor de Direito Tributário, especialista em Direito Constitucional, auditor fiscal da Receita Federal do Brasil aposentado, diretor do escritório Saraiva Advogados Associados em Ponta Grossa e do escritório SFBG Advogados em São Paulo.

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