Público & Pragmático

A especialização da 2ª instância do TJ-RJ: modificações, desafios e expectativas

Autores

  • Luis Cláudio Furtado Faria

    é sócio do escritório do Pinheiro Neto Advogados (na equipe de contencioso cível e arbitragem em disputas contratuais e comerciais) mestre em Direito Civil pela Uerj L.L.M. em Direito Comercial Internacional pela Queen Mary University de Londres (Reino Unido) ex-estagiário na Câmara de Comércio Internacional (CCI) em Paris (França) e ex-associado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith em Londres.

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  • Amanda Silva Araujo

    é associada do escritório Pinheiro Neto Advogados (na equipe de contencioso cível e arbitragem em disputas contratuais e comerciais) formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil.

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30 de julho de 2023, 8h00

A especialização da justiça já é uma realidade há muitos anos em diversos tribunais estaduais, no Superior Tribunal de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais, e tem se tornado cada vez mais comum no Brasil. De acordo com uma consulta realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2020, essa tendência crescente agrada a grande maioria dos magistrados e servidores e conta, respectivamente, com 93,2% e 83,7% de aprovação em razão das melhorias percebidas por eles ao longo dos anos.

Nada mais natural, portanto, que a segunda instância do TJ-RJ também siga esse caminho da especialização de suas Câmaras com o objetivo de promover a sua modernização e alcançar metas de eficiência, celeridade e racionalização de recursos materiais e humanos nos julgamentos das causas submetidas à sua apreciação. É, na verdade, um passo não apenas importante, mas necessário em sua organização, especialmente quando se considera que a especialização em primeira instância já é realizada em diversas comarcas do Rio de Janeiro.

Seguindo essa crescente tendência, a especialização na segunda instância do TJ-RJ foi deliberada e aprovada em sessão do Tribunal Pleno realizada no dia 12 de setembro de 2022 e consolidada com a edição da Resolução OE nº 01/2023, que entrou em vigor em 7 de fevereiro de 2023. Desde então, as 28 Câmaras Cíveis do TJ-RJ, que possuíam uma competência generalista para decidir as demandas submetidas à sua apreciação, foram transformadas em seis Câmaras de Direito Público e 22 Câmaras de Direito Privado, com a correspondência transcrita abaixo:

1 – Câmaras de Direito Público:
1ª Câmara de Direito Público (antiga 28ª Câmara Cível);
2ª Câmara de Direito Público (antiga10ª Câmara Cível);

3ª Câmara de Direito Público (antiga 6ª Câmara Cível);
4ª Câmara de Direito Público (antiga 7ª Câmara Cível);
5ª Câmara de Direito Público (antiga 16ª Câmara Cível);
6ª Câmara de Direito Público (antiga 21ª Câmara Cível).

2 – Câmaras de Direito Privado:
1ª Câmara de Direito Privado (antiga 8ª Câmara Cível);

2ª Câmara de Direito Privado (antiga 3ª Câmara Cível);
3ª Câmara de Direito Privado (antiga 18ª Câmara Cível);
4ª Câmara de Direito Privado (antiga 5ª Câmara Cível);
5ª Câmara de Direito Privado (antiga 24ª Câmara Cível);
6ª Câmara de Direito Privado (antiga 13ª Câmara Cível);
7ª Câmara de Direito Privado (antiga 12ª Câmara Cível);
8ª Câmara de Direito Privado (antiga 17ª Câmara Cível);
9ª Câmara de Direito Privado (antiga 2ª Câmara Cível);
10ª Câmara de Direito Privado (antiga 1ª Câmara Cível);
11ª Câmara de Direito Privado (antiga 27ª Câmara Cível);
12ª Câmara de Direito Privado (antiga 14ª Câmara Cível);
13ª Câmara de Direito Privado (antiga 22ª Câmara Cível);
14ª Câmara de Direito Privado (antiga 9ª Câmara Cível);
15ª Câmara de Direito Privado (antiga 20ª Câmara Cível);
16ª Câmara de Direito Privado (antiga 4ª Câmara Cível);
17ª Câmara de Direito Privado (antiga 26ª Câmara Cível);
18ª Câmara de Direito Privado (antiga 15ª Câmara Cível);
19ª Câmara de Direito Privado (antiga 25ª Câmara Cível);
20ª Câmara de Direito Privado (antiga 11ª Câmara Cível);
21ª Câmara de Direito Privado (antiga 19ª Câmara Cível);
22ª Câmara de Direito Privado (antiga 23ª Câmara Cível).

Seguindo a recomendação exarada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Resolução nº 56/2019 — criação de câmaras ou turmas especializadas em falência, recuperação empresarial e em outras matérias de Direito Empresarial, sempre que houver especialização de varas na primeira instância (como é o caso do Rio de Janeiro) — a Resolução OE nº 01/2023 também previu a criação de duas Câmaras de Direito Empresarial, com competência para apreciação das matérias indicadas no artigo 50 da Lei de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro (Lei estadual nº 6.956/2015). As referidas Câmaras de Direito Empresarial, no entanto, não foram implementadas até o momento.

Apesar da especialização promovida pela Resolução OE nº 01/2023 ter sido amplamente celebrada pelos operadores do direito que atuam perante o TJ-RJ, é inegável que desafios e divergências serão inevitáveis, principalmente nos primeiros anos de especialização, sendo essencial que as discussões decorrentes sejam acompanhadas de perto.

A título de exemplo, em evento realizado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), o desembargador Caetano Ernesto da Fonseca Costa apresentou o interessante dado de que, em fevereiro de 2023, primeiro mês em que a especialização das Câmaras estava em vigor, houve uma acentuada distribuição para as Câmaras de Direito Público, que teria recebido aproximadamente o dobro de ações do que as Câmaras de Direito Privado. O número impressiona, ainda mais se considerando que, nesse período, foram distribuídos cerca de 11.630 processos, sendo necessário avaliar esse eventual desequilíbrio na distribuição de processos entre as Câmaras com diferentes especializações.

É certo que, com apenas seis meses de especialização da segunda instância do TJ-RJ e com um acervo residual das antigas Câmaras Cíveis que ainda precisará ser decidido pelos desembargadores, ainda não é possível determinar se a esperada eficiência e celeridade das Câmaras de Direito Público serão ou não comprometidas em razão do volume de demandas de sua competência. Dependendo do volume de distribuições verificados nos meses seguintes, pode ser recomendável a revisão do número de Câmaras de Direito Público (principalmente considerando a proposta original de que fossem criadas oito Câmaras, e não seis, como foi aprovado) para solução desse desequilíbrio.

Um segundo ponto de atenção que certamente será relevante para os operadores que atuam perante o TJ-RJ nos próximos meses (e quem sabe anos) consiste nos possíveis conflitos de competência entre as Câmaras de Direito Público e de Direito Privado. O caput do artigo 6º-C do Regimento Interno parece não deixar dúvidas sobre a competência das Câmaras de Direito Público quando estado ou município, assim como uma de suas autarquias, empresas públicas e fundações públicas forem partes ou interessados no processo.

Não obstante, a partir de uma simples consulta de jurisprudência no âmbito do TJ-RJ é possível verificar que conflitos de competência têm sido suscitados mesmo quando há a expressa atuação do ente público no processo, sendo necessária a intervenção do Órgão Especial do Tribunal para garantir que as novas competências sejam observadas, especialmente em processos em que havia prevenção que foi expressamente superada Resolução OE nº 01/2023. Por exemplo:

"PROCESSO CIVIL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO. CÂMARA DE DIREITO PRIVADO. Conflito negativo de competência em apelação cível na qual o Estado do Rio de Janeiro figura como parte, suscitado por Câmara de Direito Público por haver distribuição pretérita de recurso para Câmara Cível transformada em Câmara de Direito Privado. O artigo 21, III, da LOMAN atribui competência aos Tribunais para definirem em suas normas internas a competência de suas Câmaras. A partir de decisão do C. Tribunal Pleno em vigor desde 3.2.23, foram extintas as Câmaras Cíveis, transformadas em Câmaras de Direito Privado e de Direito Público. Com a nova sistemática, a competência das Câmaras de Direito Público se define pela presença de ente público como parte ou interessado. Sendo o Estado do Rio de Janeiro parte na lide onde suscitado este conflito negativo, a competência será da Câmara de Direito Público. Inviável a redistribuição, porque deixou de existir a E. 11ª Câmara Cível, e porque o artigo 2º da Resolução nº 01/2023 do E. Órgão Especial de forma expressa definiu que a transformação das antigas Câmaras Cíveis faz cessar a prevenção relativa aos feitos anteriormente distribuídos às Câmaras Cíveis extintas quando houver a alteração da competência em razão da matéria. A hipótese em exame não envolve redistribuição, mas nova distribuição com lastro no novo sistema de organização das Câmaras julgadoras desta Alta Corte. Conflito improcedente. (0028115-26.2023.8.19.0000 – CONFLITO DE COMPETÊNCIA. Des(a). HENRIQUE CARLOS DE ANDRADE FIGUEIRA – Julgamento: 17/07/2023 – OE – SECRETARIA DO TRIBUNAL PLENO E ORGAO ESPECIAL)"

Além disso, há considerável potencial para divergência entre as Câmaras quando a competência é definida em razão da matéria. A redação do inciso XVII do artigo 6º-C do Regimento Interno, ao definir genericamente que seriam competência das Câmaras de Direito Público "outras matérias de Direito Público", tornou possível a tentativa de caracterização de uma matéria específica como de "direito público", desde que não esteja expressamente incluída na competência das demais câmaras.

Nesses casos, o conflito não seria facilmente decidido com a aplicação do artigo 930 do CPC ("far-se-á a distribuição de acordo com o regimento interno do tribunal, observando-se a alternatividade, o sorteio eletrônico e a publicidade") e estaria sujeito à subjetividade dos indivíduos envolvidos na disputa. Confira-se:

"Art. 6º-C. Além das causas em que figurar como parte ou interessado o Estado ou Município, assim como uma de suas autarquias, empresas públicas e fundações públicas, serão distribuídos às Câmaras de Direito Público os feitos atinentes à matéria de sua especialização, assim especificada:

I. concursos públicos, servidores públicos em geral e questões previdenciárias, inclusive as decorrentes de acidentes do trabalho;
II. nulidade, anulabilidade, controle e cumprimento de atos administrativos;
III. licitações e contratos administrativos;
IV. desapropriação, exceto as ações mencionadas no parágrafo único do art. 34 do Decreto-Lei nº 3.365/1941;
V. ensino em geral, ressalvado o disposto no inciso LIX do art. 6º-B deste Regimento Interno;
VI. responsabilidade civil do Estado;
VII. tributos em geral e execuções de natureza fiscal ou parafiscal, tributárias ou não;
VIII. ações populares;
IX. ações de improbidade administrativa e ações fundadas na Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção);
X. ações coletivas e ações civis públicas fundadas em matéria de Direito Público;
XI. ações de apossamento administrativo, de desistência de desapropriação e de uso e ocupação e de reivindicação de bem público;
XII. ações que digam respeito a controle e cumprimento de atos administrativos em aprovação ou entrega de obras de infraestrutura de loteamentos e a regularização de parcelamento do solo urbano que interfira no sistema viário público ou na infraestrutura urbana básica;
XIII. avaliações judiciais disciplinadas pelo Código de Mineração e seu Regulamento (Decretos-lei 227/1967 e 318/1967, e Decreto nº 62.934/1968);
XIV. ações que envolvam a aplicação da legislação ambiental e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos diretamente ligados ao meio ambiente natural, independentemente de a pretensão ser meramente declaratória, constitutiva ou de condenação a pagamento de quantia certa ou a cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer;
XV. ações em que houver imposição de penalidades administrativas pelo Poder Público e aquelas relativas a cumprimento de medidas tidas como necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos provocados pela degradação da qualidade ambiental (Lei nº 6.938/1981, art. 14, caput e §§ 1º a 3º);
XVI. direito à prestação dos serviços de saúde pelo poder público a crianças, adolescentes e idosos;
XVII. outras matérias de Direito Público."

Nesse cenário, a atuação do Órgão Especial do TJ-RJ será essencial para balizar as competências atribuídas a cada Câmara e garantir que a especialização seja observada no julgamento dos processos. Vale acompanhar as sessões de julgamento do Órgão Especial e a evolução das discussões nesse sentido, pelo menos até os entendimentos e orientações serem consolidados pelos atores envolvidos nas disputas.

A especialização da segunda instância do Rio de Janeiro está apenas em seu estágio inicial de implantação e, mesmo nesse curto período de tempo, já apresentou diversas questões a serem solucionadas e que merecem ser acompanhadas de perto. Apesar disso, a expectativa é bastante positiva e espera-se que, ultrapassadas as primeiras dificuldades, a nova divisão de competências contribua para uma justiça mais célere, especializada e eficiente.

Autores

  • é sócio do escritório do Pinheiro Neto Advogados (na equipe de contencioso cível e arbitragem, em disputas contratuais e comerciais), mestre em Direito Civil pela Uerj, L.L.M. em Direito Comercial Internacional pela Queen Mary University de Londres (Reino Unido), ex-estagiário na Câmara de Comércio Internacional (CCI) em Paris (França) e ex-associado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, em Londres.

  • é associada do escritório Pinheiro Neto Advogados (na equipe de contencioso cível e arbitragem, em disputas contratuais e comerciais), formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil.

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