Opinião

Crime de estupro no ambiente virtual

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30 de julho de 2023, 11h17

O crime de estupro é penalmente tutelado no artigo 213 do Código Penal brasileiro, encontrando localização no Capítulo I, dos crimes contra a liberdade sexual, Título VI, dos crimes contra a dignidade sexual, da Parte Especial do supracitado código. Desde os tempos mais primórdios o estupro era punido severamente, com destaque à conceituação histórica de Cezar Roberto Bittencourt:

Os povos antigos já puniam com grande severidade os crimes sexuais, principalmente os violentos, dentre os quais se destacava o de estupro. Após a Lex Julia de adulteris (18 d.C.), no antigo direito romano, procurou-se distinguir adulterius e stuprum, significando o primeiro a união sexual com mulher casada, e o segundo, a união sexual ilícita com viúva. Em sentido estrito, no entanto, considerava-se estupro toda união sexual ilícita com mulher não casada. Contudo, a conjunção carnal violenta, que ora se denomina estupro, estava para os romanos no conceito amplo do crimen vis, com a pena de morte (BITTENCORUT, 2019, p. 60).

Somente em 2009 é que os legisladores brasileiros alteraram o Código Penal para que vigorasse com a devida austeridade os preceitos jurídicos fundados na proteção sexual e garantia da liberdade individual. Através da Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, alteraram o Título VI, suprimindo a nomenclatura de "dos crimes contra os costumes", passando a tutelar "crimes contra a liberdade sexual".

Para além dessa honrável alteração, também reformaram os tipos penais do estupro e do atentado violento ao pudor, de modo a fundir os dois crimes incrementando condutas e estendendo os limites punitivos quanto ao agente e salvaguardando o homem como possível figura passiva da conduta criminosa, isto é, alterando a classificação do crime de bipróprio, para bicomum.

A redação contemporânea do crime de estupro expressa a conduta de "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso". Analisando o tipo penal, Fernando Capez (2022, p. 80) ensina que "os meios executórios do crime em tela são a violência, obrigatoriamente física, e a grave ameaça, podendo ser justa ou injusta". 

Regendo todo e qualquer ato libidinoso (incluindo tácita e expressamente a conjunção carnal que é, nas palavras do exímio penalista Nelson Hungria (1981, p. 121), "ato libidinoso por excelência") e, afastando possíveis interpretações desfavoráveis à vítima, a conjunção carnal (penetração penisvaginal), o crime prevê um ofensivo ataque ao pudor privado, liberdade sexual e corpo do sujeito passivo.

Repare que o corpo figura como parte imprescindível da conduta em tela, uma vez que sem a participação do corpo da vítima não cabe tipificar o crime de estupro, apenas outros tipos penais como constrangimento ilegal (artigo 146), importunação sexual (artigo 215-A) ou satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (artigo 218-A), a depender da vítima e das circunstâncias da conduta.

Apresenta-se pacífico nos textos mais densos dos modernos e admirados doutrinadores todas as definições, explicações e conceituações até agora apresentadas. Todavia, espinhoso fica um polêmico ponto que envolve a modernidade, os avanços tecnológicos e o escopo penal ante às novas formas de delitos já contemplados. Há problemas legais, constitucionais ou penais em enquadrar o estupro cometido por meio virtual no crime de estupro do artigo 213?

Compreender esse tema requer um olhar técnico e debruçado sobre o tipo penal, suas variantes e interpretações dos mais conceituados autores penalistas. De antemão, a primeira noção a ser tomada é acerca da possibilidade da prática do estupro restando ausente o contato físico entre autor e vítima. Defendendo a opinião majoritária da doutrina brasileira, explica o novel professor e delegado Luís Gonzaga da Silva Neto (2021, p. 579) que "[…] ainda, há o questionamento se é imprescindível o contato físico entre a vítima e o autor do delito para a configuração do crime em tela, prevalecendo na doutrina majoritária que o contato físico é prescindível", prossegue, parafraseando Cléber Masson (2018, p. 13) "é dispensável o contato físico de natureza erótica entre o estuprador e a vítima. Exige-se, contudo, o envolvimento corporal do ofendido no ato de cunho sexual".

Compartilha dessa mesma tese Victor Eduardo Rios Gonçalves (2018, p. 584), quando diz "para que haja o crime, é desnecessário contato físico entre o autor do crime e a vítima. Assim, se ele usar de grave ameaça para forçar a vítima a se automasturabar ou a introduzir um vibrador na própria vagina, estará configurado o estupro". Também exemplifica e defende a posição da prescindibilidade, sob os olhos técnicos da autoria mediata, Fernando Capez:

"A hipótese em comento (explicando sobre a vítima presenciar atos libidinosos praticados pelo agente sem participar) não se confunde com aquela em que a vítima é obrigada a praticar atos libidinosos em si própria, como a masturbação, para que o agente a contemple lascivamente. Embora nesse caso não haja contato físico entre ela e o agente, a vítima foi constrangida a praticar o ato libidinoso em si mesma. Surge aí a chamada autoria mediata ou indireta, pois o ofendido, mediante coação moral irresistível, é obrigado a realizar o ato executório como longa manus do agente". (CAPEZ, 2022, p. 81)

Restando petrificada a posição ampla dos doutrinadores, assevera Rogério Sanches Cunha:

"De acordo com a maioria da doutrina, não há necessidade de contato físico entre o autor e a vítima, cometendo o crime o agente que, para satisfazer a sua lascívia, ordena que a vítima explore seu próprio corpo (masturbando-se), somente para contemplação (tampouco há que se imaginar a vítima desnuda para a caracterização do crime – RT 4291380". (CUNHA, 2017, p. 483).

Também entende no mesmo sentindo Damásio de Jesus (2020, p. 344), quando comenta que "não há necessidade de que a vítima pratique o ato libidinoso com o autor do crime. Pode ser levada a praticá-lo com terceiro (ou a permitir que este o pratique) ou ainda em si mesma, como na hipótese de automasturbação".

Assegurando todo o entendimento findando a discussão, Eduardo Seribeli (2018, p. 57) expõe que o Supremo Tribunal Federal, em 17/08/2017, julgou o Recurso Extraordinário com Agravo n° 1.066.864- RS, com relatoria do ministro Dias Toffoli, decidindo pela completa plausibilidade da tipificação do estupro com a prescindibilidade do contato físico entre vítima e autor:

"(…) a maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do Código Penal – CP, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido. (…) Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena, na hipótese de eventual procedência da ação penal".

Superada a discussão primária sobre a necessidade do toque físico entre o delinquente e a vítima, brota outra questão contempladora dos quesitos modernos da legislação. Buscam os mais estudiosos penalistas concatenar os acertos sobre a prática do crime em terreno virtual. Há poucos escritos, comentários e julgados sobre o tema, tal fato se deve ao recente progresso fulminante da internet como meio de comunicação generalizada em todas as sociedades.

Destarte, Cléber Masson (2018, p. 92) anota positivamente sobre a possibilidade de o estupro ser cometido por meio virtual, dando o seguinte exemplo: "[…] pensemos na situação em que o sujeito, apontando uma arma de fogo para a cabeça do filho de uma mulher, exige que esta, em outra cidade, se automasturbe à frente da câmera do celular".

Analisando o exemplo dado pelo doutrinador, extrai-se todas as elementares necessárias para a tipificação do crime. Um sujeito qualquer, usando-se da grave ameaça (ameaça de violência contra terceiro para coagir a vítima), coage irresistivelmente a vítima a realizar atos libidinosos em si mesma, contra a sua vontade. Postula-se que o agente constrangeu, mediante grave ameaça, alguém a praticar (em si mesma) ato libidinoso.

Contudo, deve-se tomar especial atenção à conduta da vítima, isto é, se esta enviar ao agente um vídeo gravado anteriormente ao crime e não realizar atos libidinosos em si mesma após ou durante a ordem do agente, ao meu ver, não há que se falar em estupro virtual consumado, mas sim em modalidade tentada. Os olhares têm que estar focados em ter a ciência que o agente inicia a execução da conduta de constranger mediante grave ameaça ou violência, mas a vítima não realiza os atos pretendidos pelo agente.

A execução do crime é iniciada, a violência ou ameaça foram proferidas, mas não se consuma o crime por vontades alheias ao querer do agente. Tal questão requer análises jurídicas e legislativas judiciosas para impedir que criminosos vis acabem por se aproveitar deste vão deixado pelo tipo penal de 2009.

A jurisprudência brasileira segue decidindo em favor do posicionamento doutrinário, conforme julgado em 2018 no Superior Tribunal de Justiça (STJ) do Recurso em Habeas Corpus n° 91.792-DF, onde o ministro Antônio Saldanha Palheiro foi relator do julgamento citado envolvendo vários crimes, dentre eles o crime de estupro na modalidade virtual.

Um sujeito, usando-se de perfis falsos, entrava em aplicativos de redes sociais para convencer as vítimas a fazer troca de vídeos íntimos, quando conseguia esses materiais pornográficos, ameaçava divulgá-los na grande mídia se as vítimas não produzissem mais material pornográfico. O STJ decidiu acertadamente que a conduta era típica e negou o provimento, confirmando as teses doutrinárias majoritárias sobre o tema.

Não somente adstrito aos tribunais brasileiros, há também julgados internacionais sobre o tema. À exemplo a decisão, em 2017, do Tribunal da Cidade de Uppsala, na Suécia, que condenou um homem de 41 anos a dez anos de prisão por estupro cometido em ambiente virtual (especificamente a conduta de realização de atos sexuais diante de câmeras) contra 27 adolescentes em três países. Sobre a legislação Sueca, comenta o jornalista Tom Blackwell, do jornal canadense National Post:

"Rape in Swedish law can include intercourse, or a violation of sexual integrity considered equally severe. Samstrom met his victims through online social networks, then made them take off their clothes and penetrate themselves with fingers or objects, threatening either to kill them and their families, or post their profile photos on pornography websites."

Após definir minuciosamente cada palmo da possibilidade de o estupro ser cometido em ambiente virtual, há quem pergunte se a caracterização desse crime afronta o princípio da legalidade. Questionar a tipificação do crime de estupro virtual apenas devido ao fato da sua ocorrência ser em ambientes cibernéticos certamente é uma noção deveras anacrônica para opor em épocas tão tecnológicas.

A lei penal máxima que rege o ordenamento jurídico brasileiro não explicita em nenhum lugar que os crimes que envolvam o espaço virtual devem ser apenas relacionados com dados ou informações automatizadas. Há, além, classificações doutrinárias que inserem os crimes cibernéticos em categorias específicas de acordo com seu meio-fim.

Conforme explica Roberto Chacon de Albuquerque (2006, p. 40), os crimes cibernéticos próprios correspondem aos crimes em que dados e sistemas informáticos constituem o objeto do crime, por sua vez, os impróprios são aqueles em que o ambiente virtual é apenas o meio para a execução do crime. Após essa classificação tão densa e ampla, o escólio que se obtém é sobre a plena aplicabilidade do tipo penal do estupro em âmbito virtual.

Em escorço, restar atestar categoricamente que o delinquente que constranger alguém, sob ameaça grave ou violência, a praticar ato libidinoso contra si mesmo através de meio virtual, pode ser penalmente admoestado na figura típica do artigo 213 do Código Penal. Observe-se que a ocorrência do crime em terreno virtual não figura conduta atípica, mas sim figura típica em modalidade virtual.

Conforme posição intelectual muito bem findada por uma análise técnica, o delegado Luís Gonzaga da Silva Neto (2021, p. 587-588) expõe que:

"[…] o sujeito que mediante grave ameaça constrange a vítima a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal, utilizando-se para isso do meio virtual, terá sua conduta enquadrada no crime de 'estupro virtual', algo já aceito pela doutrina e jurisprudência, não ocorrendo nenhuma violação ao princípio da legalidade, pois os tipos penais dos artigod 213 e 217-A do Código Penal são plenamente aplicáveis". (SILVA NETO, 2021, p. 587-588)

Não há que se falar em violação ou afronta ao princípio da legalidade, uma vez que, assegurados os princípios da reserva legal e da anterioridade da lei penal, a adequação da conduta ao crime está ligada ao verbo e as elementares, e não a modalidade do crime. Por exemplo, se o sujeito ameaçar bloquear uma pessoa caso esta não realize uma ligação de vídeo se masturbando, não cabe o crime de estupro, uma vez que a ameaça não é grave. Note que o que deixa de tipificar o crime não é a modalidade virtual, mas sim a falta de uma elementar do crime.

Em verdade, o que tem de ser feito requer pressa, não se pode esperar mais. O campo não cultivado enche-se de ervas daninhas. Esse tema é irredutível e não pode ser malbaratado pelos doutrinadores, juristas e legisladores, pelo contrário, deve ser esquadrinhado intrepidamente como forma de afastar definitivamente quaisquer arrepsias que possam atravancar o Direito Penal moderno e sua tutela sobre a integridade do ciberespaço.

 

 

Referências
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A Criminalidade Informática. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2006.

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. 13ª. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

BLACKWELL, Tom. Swedish man gets 10 years in prison for raping Canadian girls — over the internet. National Post, Canadá. 30 nov. 2017. World. News.

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 07 set. 2022.

BRASIL. Lei N° 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e o artigo 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do artigo 5º da Constituição Federal e revoga a Lei nº 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L12015.htm#art3. Acesso em 07 set. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Penal. Recurso em Habeas Corpus N° 91.792-DF. Relator: ministro Antônio Saldanha Palheiro. Brasília. 19 mar. 2018.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Recurso Extraordinário com Agravo N° 1.066.864-RS. Relator: ministro Dias Toffoli. Brasília, 29 out. 2018.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial. Volume 3. 20ª Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 361). 9ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2017

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado: Parte Especial, 8ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume VIII. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

JESUS, Damásio de. Direito Penal: Parte especial. Vol. 3. 24ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

MASSON, Cléber. Direito Penal: Parte Especial. Vol. 3 8ª Ed. São Paulo: Forense, 2018.

SERIBELI, Eduardo. Crime Cibernético: Estupro Virtual e Embasamento à infiltração virtual com o advento da Lei 13.441/2017. 2018. 78 f. Monografia (Bacharelado em Direito) – Toledo Prudente Centro Universitário, Presidente Prudente-SP, 2018.

SILVA NETO, Luís Gonzaga da. Investigação Criminial Tecnológica do Estupro Virtual. In: JORGE, Higor Vinicius Nogueira. Direito Penal Sob a Perspectiva da Investigação Criminal Tecnológica. Tomo 3. 1ª Ed. JusPodivm, 2021. p. 573 – 589c

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