Opinião

Vereador pode legislar gerando despesas ao Executivo? Derrubando velhos mitos

Autor

  • Lougan Henrique Cardoso

    é advogado criminalista professor de Direito Penal na graduação especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial idealizador do grupo de estudos do Tribunal do Júri na Faculdades Unificadas de Foz do Iguaçu (Unifoz) e membro da Comissão de Advocacia Criminal e Estudos do Tribunal do Júri da OAB – Foz do Iguaçu/PR.

28 de julho de 2023, 19h45

Os mitos sempre ocuparam lugar no imaginário humano, agindo como contexto explicativo para situações sem respostas lógicas ou técnicas.  Entretanto, quando se trata de democracia e processo legislativo, é preciso que a maturidade e o conhecimento afastem as histórias fantasiosas, deixando-as para literatura e outras artes.

Qual vereador já não esbarrou no parecer do jurídico a dizer "o projeto é inconstitucional, pois viola a iniciativa privativa do Executivo", ou "que gera despesa ao Executivo e isso viola a competência constitucional". Enfim, são diversos argumentos cheios de vazios, para tentar dissuadir os projetos dos legisladores.

Essa tese, até 2016, foi defendida vorazmente nos municípios, até que a Câmara de Vereadores do município do Rio de Janeiro se insurgiu e fez a discórdia chegar ao Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário, numa verdadeira queda de braço entre Executivo e Legislativo municipais. Quem levou a melhor?

A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou a Lei n° 5.616/13, que dispunha sobre a instalação de câmeras de monitoramento de segurança nas escolas públicas municipais e cercanias, tratando como prioridade as áreas onde fora constatado maior índice de violência, contribuindo assim para a segurança das crianças daquela cidade.

Por sua vez, o prefeito do Rio de Janeiro ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade, requerendo ao TJ-RJ ser a Lei 5.616/13 declarada inconstitucional e em primeiro momento teve êxito, pois o tribunal entendeu ser competência privativa do chefe do Poder Executivo.

A Câmera, não satisfeita com o resultado, bateu às portas do Supremo Tribunal Federal e seu recurso extraordinário, escudado no artigo 102, inciso III, A, da Constituição, passou na admissibilidade, após agravo, e foi à discussão, com relatoria do ministro Gilmar Mendes e o ARE87911 teve reconhecida a repercussão geral da questão constitucional, a fim de conceder maior segurança jurídica aos processos com a mesma discussão.

Em síntese a tese da Câmara foi apontar violação aos artigos 24, XV; 30, I e II; 74, XV; e 227 da Constituição, sustentando que a Lei 5.616/2013, do município do Rio de Janeiro, dispondo sobre a instalação de câmeras de monitoramento de segurança nas escolas públicas municipais e cercanias, tratou de matéria de interesse local e, portanto, de competência legislativa municipal.

O acórdão foi ementado com a seguinte redação "Recurso extraordinário com agravo. Repercussão geral. 2. Ação Direta de Inconstitucionalidade estadual. Lei 5.616/2013, do Município do Rio de Janeiro. Instalação de câmeras de monitoramento em escolas e cercanias. 3. Inconstitucionalidade formal. Vício de iniciativa. Competência privativa do Poder Executivo municipal. Não ocorrência. Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos. 4. Repercussão geral reconhecida com reafirmação da jurisprudência desta Corte. 5. Recurso extraordinário provido".

Eis a forma jurídica de se derrubar mitos e a partir de agora quando se tiver algum parecer genérico com a mera menção à geração de despesas ao Executivo, pode-se usar essa decisão, em que por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada. No mérito, por maioria, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria, vencido o ministro Marco Aurélio. Não se manifestaram os ministros Celso de Mello e Rosa Weber.

Nesse ponto, é importante destacar ser admissível o recurso extraordinário, contra acórdão que declarou a inconstitucionalidade de lei municipal em relação à Constituição estadual sempre que a matéria discutida se relacionar com normas da Constituição federal de reprodução obrigatória pelos estados, é o chamado princípio da simetria federativa, ou correspondência. Conforme RE 590.829, relator ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe30.3.2015; o RE-AgR 246.903, relator ministro Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, DJe 19/12/2013.

O princípio da simetria no direito constitucional refere-se à necessidade de conformidade entre as Constituições estaduais e as Leis Orgânicas com a Constituição federal. Em virtude desse princípio, as normas e estruturas dos estados e municípios devem guardar similitude ou refletir aquelas estabelecidas na Constituição federal, especialmente quando esta última estabelecer diretrizes aplicáveis aos entes subnacionais. Em outras palavras, o princípio da simetria visa garantir que as unidades federativas observem e respeitem as determinações e preceitos constitucionais estabelecidos no âmbito nacional.

Entretanto, nem tudo são flores, isso não significa carta branca aos vereadores, pois existem alguns limites e eles são expressos, não podendo tratar da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (artigo 61, §1º, II, "a", "c" e "e", da Constituição federal).

Ou seja, caso o vereador resolva criar lei concedendo aumento de 30% aos servidores da secretaria da fazenda, criar gratificações, bonificações, ou aumentar despesas de quaisquer outros órgãos municipais, isso está vedado, pois realmente invade a competência do prefeito, devendo por óbvio sofrer o veto jurídico. E caso o veto seja levantado, a discussão deve ir ao judiciário.

Não existe fórmula mágica, mas se pode fazer um exercício mental ao editar a lei que gerará despesas ao executivo: isso irá mexer na estrutura do executivo? Criará cargos ou funções na administração? Se a resposta for positiva aí é importante ligar o alerta, pois provavelmente estar-se-á enveredando à invasão de competência privativa do Executivo.

Aliás, outro ponto relevante é o fato de o rol do art. 61 da Constituição Federal, que estabelece as matérias de iniciativa privativa do Chefe do Executivo, são interpretadas como numerus clausus, ou seja, é taxativo, não cabe interpretação analógica, sendo proibido aos estados e municípios ampliar o disposto na CF, para abarcar matérias além daquelas relativas ao funcionamento e estruturação da administração pública. Conforme ADI 2.672, relatora ministra Ellen Gracie, redator para acórdão ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJ 10/11/2006; da ADI 2.072, relator ministro Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe 2/3/2015.

A partir disso, o vício formal de inconstitucionalidade, que viola a iniciativa privativa ou reservada, será constatado apenas nas matérias previstas no artigo 61, §1º da Constituição federal, devendo o vereador se abster de legislar gerando despesas ou não ao Executivo, quando o assunto for essas matérias. Caso não esbarre nessa limitação, provavelmente o projeto de lei será constitucional.

Essa discussão se tornou relevante no atual cenário político, a partir do maior protagonismo dado ao Poder Legislativo, juntamente com as emendas impositivas, a fim de efetivamente atuar para além da criação de nomes de ruas, promover moções de aplausos e ou conceder títulos de cidadão honorário. Pois se bem direcionados e intencionados, os vereadores poderão de fato melhorar a vida dos cidadãos, sem deixar que os mitos impeçam a concretização da vontade democrática.

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  • é advogado criminalista, professor de Direito Penal na graduação, especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial, idealizador do grupo de estudos do Tribunal do Júri na Faculdades Unificadas de Foz do Iguaçu (Unifoz) e membro da Comissão de Advocacia Criminal e Estudos do Tribunal do Júri da OAB – Foz do Iguaçu/PR.

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