Opinião

Democracia e prisão perpétua à brasileira

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28 de julho de 2023, 16h19

O Estado democrático de Direito precisa ser garantido e o respeito máximo à Constituição é incontestável. E, por isso mesmo, é indispensável o debate público e responsável a respeito do  paradoxalmente  denominado "Pacote da Democracia", ou seja, uma proposta de emenda à Constituição e dois projetos de lei criados pelo MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública), no âmbito da Senajus (Secretaria Nacional de Justiça), que constituem um conjunto de medidas em resposta aos atos golpistas e antidemocráticos que culminaram na invasão e depredação dos prédios da Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.

Segundo a imprensa, os textos já foram assinados pela Presidência da República e serão encaminhados ao Congresso Nacional. Nas palavras do Sr. Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, "Em nome do princípio da proporcionalidade, considero que os autores de crimes contra a ordem democrática e seus guardiões devem ser punidos com firmeza, em face da lesividade das condutas ilícitas e da relevância do bem jurídico tutelado: a defesa da Constituição. Por isso, sustento projetos de lei, decisões judiciais ou investigações da Polícia Federal que sejam coerentes com essa atitude de combate ao perigosíssimo nazifascismo do século 21, que mata crianças em escolas, destrói o prédio do Supremo e se acha autorizado a agredir pessoas por questões políticas".

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Lula e ministro Flávio Dino (Justiça)
Marcelo Camargo/Agência Brasil

A pretensão é assegurar "o livre exercício dos Poderes e das instituições democráticas, o funcionamento regular dos serviços públicos essenciais e a própria soberania nacional". Em outro momento, nas suas redes sociais, o senhor ministro afirmou: "Respeito as críticas, mas manterei a mesma linha de atuação. Quem minimizou os riscos antidemocráticos, há 100 anos, na Alemanha ou na Itália, alimentou um monstro. Busco não pecar por omissão". Até a última segunda-feira (24), estavam sendo feitos os últimos ajustes nos projetos de lei.

Caso sejam aprovados pelo parlamento nacional, os projetos de lei promoverão mudanças na legislação penal e processual penal, sendo possível identificar dois eixos centrais nas propostas apresentadas. O primeiro eixo, constitui um inequívoco recrudescimento penal com: a) a criação de tipos penais para a criminalização da incitação à violência contra instituições de Estado e pessoas via internet; b) a cominação de penas mais elevadas a delitos (já existentes); e, c) a criação de novas causas especiais de aumento de penas em crimes contra o Estado Democrático de Direito, visando principalmente os organizadores, líderes e financiadores de movimentos antidemocráticos.

Ainda, segundo os projetos de lei, se os crimes forem praticados por funcionário público (CP, artigo 327), deverá ocorrer a perda automática do cargo, função ou mandato eletivo. O segundo eixo, promove a criação de mecanismos processuais capazes de facilitar, durante a investigação preliminar ou a instrução processual, a apreensão de bens e o bloqueio de contas bancárias e ativos financeiros em casos envolvendo crimes contra o Estado democrático de Direito.

Curiosamente, além da legitimidade ativa da União (nos casos de seu interesse), do Ministério Público e da Polícia Judiciária para requerer a apreensão de bens e o bloqueio de contas bancárias e ativos financeiros, na contramão daquilo que determina a Constituição da República, a proposta prevê a possibilidade de decretação de tais medidas ex officio.

Cabe lembrar que, muito embora seja  na atual cena política do país  compreensível a preocupação com a eventual inércia de órgãos do Ministério Público (dominus litis), não há dúvidas de que tal ponto da proposta, por si só, já se mostra refratário aos princípios formadores do processo penal acusatório, ou seja, isso já seria o bastante para apontar uma grave inconstitucionalidade no "Pacote da Democracia": o seu viés inquisitorial. Eis um dos paradoxos da iniciativa governamental que se autoapresenta como "democrática".

Entretanto, de todas as medidas punitivas inseridas no referido "pacote", aquela que mais causa preocupação é a cominação de pena privativa de liberdade de 20 a 40 anos para quem atentar contra a vida do presidente da República, do vice-presidente da República, do presidente do Senado, do presidente da Câmara dos Deputados, dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do procurador-geral da República, com fim de alterar a ordem constitucional democrática (que é o elemento subjetivo diverso de dolo). Aonde vamos parar em termos de punitivismo?

Com todo o respeito devido àqueles que estão preocupados em garantir o Estado democrático de Direito em nosso país, tal proposta afronta diretamente a própria Constituição, na medida em que configura o estabelecimento de uma prisão perpétua à brasileira, ou seja, obliquamente imposta, carecendo também de legitimidade desde a teoria do bem jurídico, a teoria da pena e as atuais teorias criminológicas a respeito do crime e do controle social.

Desde 1988, todos sabem que na República Federativa do Brasil não poderá haver penas de caráter perpétuo (CR, artigo 5º, XLVII, "b"). Trata-se de uma cláusula pétrea e, por isso, eventual proposta de emenda constitucional que tenda a abolir essa vedação sequer poderá ser objeto de deliberação nas Casas do Congresso (CR, artigo 60, §4º, IV). No entanto, a proposta inserida no "Pacote da Democracia", oriunda de mero projeto de lei ordinária, parece ser caudatária do seu "primo" mais velho: o "Pacote Anticrime" (Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019), ironicamente idealizado no governo anterior, por gente de duvidoso compromisso democrático, que, alterando o artigo 75, do Código Penal, aumentou de 30 para 40 anos o tempo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade, sem que tenha havido qualquer protesto ou resistência  em relação a esse ponto da mudança legislativa  por parte de partidos políticos ou associações de magistrados e membros do Ministério Público, que se opuseram  apenas  à criação do "juiz das garantias" (vide ADI nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, todas sob a relatoria do ministro Luiz Fux).

Essa constatação, por si só, já é indicativa de que a fragilidade democrática brasileira é um fenômeno muito mais complexo, cujas raízes são muito mais profundas do que parece, de modo que essa fragilidade não será afastada "por decreto", como pretende o atual governo, valendo-se de medidas simplistas no âmbito legislativo.

Os paradoxos do "Pacote da Democracia" pululam quando ele é analisado mais de perto: em primeiro lugar, almejando preservar o Estado Democrático de Direito, afronta a própria Constituição da República ao cominar uma pena privativa de liberdade de até 40 anos, que, na prática, a depender da idade do agente delituoso, representará uma prisão perpétua; depois, visando refrear ímpetos criminosos de gente simpatizante do "perigosíssimo nazifascismo do século 21", adota as mesmas técnicas — antidemocráticas  de controle social implementadas pelo governo anterior, evidenciando que o "populismo punitivo" é um vírus inoculado à direita e à (pseudo)esquerda.

Se analisados os atos normativos que ao longo da conturbada história política brasileira definiram crimes contra o "Estado", a "ordem política e social" e a "segurança nacional" (Lei nº 38/1935, Lei nº 136/1935, Decreto-Lei nº 431/1938, Lei nº 1.802/1953, Decreto-Lei nº 314/1967, Decreto-Lei nº 898/1969, Lei nº 6.620/1978 e Lei nº 7.170/1983), é possível perceber que, nem mesmo em momentos de sangrentas ditaduras foi cominada pena privativa de liberdade superior a 30 anos. E antes que se alegue que já houve em alguns momentos a cominação de prisão perpétua e morte em decorrência da prática desse tipo de crime, justamente por estarmos em um Estado democrático de Direito, tais espécies de penas estão constitucionalmente proscritas.

E não se olvide: em nossa tradição legislativa, pena privativa de liberdade superior a 30 (trinta) anos sempre significou pena de caráter perpétuo. Portanto, desde a Constituição da República não é admissível pena privativa de liberdade em patamar tão acentuado.

Quando a referida pena máxima de 40 é analisada sob o prisma da teoria do bem jurídico, percebe-se outra inconsistência jurídica: a vida do presidente da República, do vice-Presidente da República, do presidente do Senado, do presidente da Câmara dos Deputados, dos ministros do STF e do procurador-geral da República possui o mesmo valor jurídico do que a vida de qualquer outra pessoa, não havendo justificativa para uma punição acima do teto já previsto, por exemplo, para o crime de homicídio doloso qualificado (CP, artigo 121, §2º).

Ainda que o atentado contra a vida das referidas autoridades públicas (com o especial fim de alterar a ordem constitucional democrática) seja — inegavelmente  um crime complexo, envolvendo mais de um bem jurídico, não é possível cominar a tal conduta típica uma pena privativa de liberdade acima do teto de 30 anos. Vale frisar que há na legislação penal brasileira outros crimes complexos, igualmente graves, como o roubo qualificado pelo resultado morte (CP, artigo 157, §3º, II) e a extorsão mediante sequestro qualificada pelo resultado morte (CP, artigo 159, §3º), cujas penas máximas não ultrapassam o referido teto.

Aceitar essa distorção punitiva significa dar um sentido meramente simbólico à lei penal, o que é inaceitável para a melhor doutrina: "… para que as incriminações possam ser tratadas em consonância com a ordem constitucional, será preciso que superem seu sentido meramente simbólico e se integrem em um sistema real de proteção da pessoa" [1].

Enfim, deve ser tomado mais cuidado ao invocar a proporcionalidade (Verhältnismäßigkeitsprinzip) como fundamento para tal cominação de pena tão elevada, a fim de que esse importante princípio jurídico não vulgarizado no ensejo da retórica "pan-principiologista". Como adverte Albrecht, "o Estado de Direito precisa defender-se contra agressões massivas à autonomia e aos bens jurídicos de suas cidadãs e seus cidadãos, com toda a força e todos os instrumentos e possibilidade policiais e judiciais penais, que estão à disposição do Estado de Direito. Em sua defesa, contudo, permanece inabdicável o critério da proporcionalidade. De outro modo, é destruído aquilo que se pretende proteger. Ameaça o autoabandono dos fundamentos daquilo que é digno de proteção. Neste sentido, manifestam-se, também Juízos, no Jornal dos Juízes alemães: 'A luta contra o crime e o terror não justifica o abandono de princípios jurídicos fundamentais, pois integra também o núcleo do Estado de Direito, que este proteja aquele [núcleo], tenazmente, com seus métodos, e não com os de seus adversários' (Voss, 2004, 19; compare também Hummrich, 2005, 196). Isto também é uma resposta ao terrorismo" [2].

Em sendo admitido tempo tão amplo de aprisionamento, haverá  em termos práticos  a negação completa da teoria da prevenção especial positiva (correcionalista), tão em declínio na contemporaneidade neoliberal [3]. Não se desconhece as críticas bem formuladas às ideologias "re" (ressocialização, reeducação, reinserção, etc.) por importante setor da doutrina penal, no sentido de elas constituírem uma intervenção ético-idealista [4].

No entanto, essas críticas não implicam a negação de qualquer compromisso ético do Estado frente aos sujeitos humanos atingidos pelos processos seletivos de criminalização, podendo a teoria da prevenção especial positiva funcionar como fator democrático de delimitação ou orientação das políticas criminais e do poder punitivo, na linha daquilo que está previsto na legislação específica (LEP, artigo 1º).

Encerrando essas singelas considerações a respeito do "Pacote da Democracia", é importante destacar que as intenções  como sempre  são "boas": foi assim na crucificação de Jesus de Nazaré, na atuação do Santo Ofício da Inquisição contra "hereges" e "bruxas", no III Reich contra os "inimigos da comunidade do povo" (Volksgemeinschaft feind), na política de "segurança nacional" em tempos de ditadura militaresca contra os "comunistas" e "subversivos", e, porque não, nas ações policiais efetuadas nas zonas urbanas de pobreza, cuja letalidade é justificada por discursos emanados de um Estado racista no âmbito da criminosa necropolítica de drogas.

Ocorre que não é possível afastar o "perigosíssimo nazifascismo do século 21" com incremento do "estado de polícia". Muitos estudiosos do assunto já ensinaram que as raízes do nazifascismo devem ser buscadas em outras searas [5]. Democracia não se faz com punitivismo.

 


[1] TAVARES, Juarez. Fundamentos de Teoria do Delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. p. 91.

[2] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro: Lumen Juris/ICPC, 2010. p. 578.

[3] PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Trad. Juarez Cirino dos Santos e Aliana Cirino Simon. Curitiba: LedZe-ICPC, 2012. p. 91: "O crescimento da multidão dos excluídos  tanto do mercado de trabalho garantido quanto do festim assistencial oferecido por um sempre mais pobre capital social  torna, politicamente, sempre mais irrealístico o projeto de uma ordem social através da inclusão. É a época do declínio miserável da ideologia reeducativa e da emergência e subsequente triunfo das políticas de controle social que se fundam sobre a fé nas práxis de neutralização seletiva, em tudo coerentes com a linguagem de guerra".

[4] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. v. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 125-127; SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 9. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. 454-457.

[5] GRAMSCI, A. Sobre el Fascismo. Trad. Ana María Palos. México: Era, 1979; KONDER, L. Introdução ao Fascismo. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009; MARIÁTEGUI, J.C. As origens do fascismo. Trad. Luiz B. Pericás. São Paulo: Alameda, 2010; PACHUKANIS, E.B. Fascismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2020; POULANTZAS, N. Fascismo e Ditadura: a III Internacional face ao fascismo. V. 1. Trad. João G. P. Quintela e Maria S. Granado. Porto: Portucalense, 1972. REICH, W. Psicologia de Massas do Fascismo. Trad. Maria da Graça M. Macedo. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

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