Opinião

A política penal que transcende o cárcere

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27 de julho de 2023, 9h17

No terceiro dia de uma semana de intensas atividades, chegamos à Bahia para celebrar os novos Mutirões Processuais Penais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que colocam os tribunais do país em regime especial de atuação até agosto para revisar mais de 100 mil processos de conhecimento e de execução penal.

Inspirados pela terra do saudoso jurista Ruy Barbosa, que nos lembra que "a força do direito deve superar o direito da força", compreendemos os novos mutirões carcerários enquanto um movimento essencial para conferir rosto e voz aos que estão privados de liberdade e que, por vezes esquecidos, clamam por uma justiça mais próxima e mais efetiva, em todos os seus sentidos e expressões.

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Ministra Rosa Weber esteve ontem na Bahia
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É dever do Poder Público trabalhar para restabelecer o correto e adequado funcionamento dos estabelecimentos penais, garantindo alimentação, saúde, educação e trabalho. Por um lado, o Poder Executivo precisa corresponder a essas demandas com um sentido pragmático e realizador. Ao Poder Judiciário, cabe garantir a regularidade da situação processual de cada uma dessas pessoas, assim como regras claras e mínimas para que as políticas públicas cheguem a todas e todos os internos e a pessoas que trabalham nesses espaços.

Durante nossa passagem pela Bahia, visitamos o Complexo Prisional da Mata Escura, onde participamos de uma roda de leitura do clássico Capitães da Areia, de Jorge Amado, e do lançamento de livro escrito por apenados. Assistimos, também, a um casamento coletivo (exatamente seis casais) de privados de liberdade. A vontade de formar uma família forte e bem constituída, ou ao menos o desejo de mantê-la por perto e presente, recobra a esperança de todos os que vivem o cárcere em seu sentido mais excludente.

Percebemos que há vida, há sentimentos, há corações que pulsam a partir de pessoas que precisam ser compreendidas em suas necessidades mais elementares e consideradas em suas individualidades mais exclusivas. Há um homem ou uma mulher, por detrás de cada jurisdicionado em situação de privação de liberdade, que têm desejos, vontades e que deseja ativar a integralidade de suas espontaneidades.

Compreender as unidades de privação de liberdade enquanto parte integrante de nossa sociedade, locais onde todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei devem ser assegurados pelo Estado, é a chave para um necessário reposicionamento do tratamento penal. É preciso ultrapassar o sentido (simplista e estéril) da contenção e do controle (por meio dos quais se devolve só opressão), para viabilizar a restauração pessoal daqueles que estão em processo de retomada do convívio social.

Nesse sentido, o CNJ vem trabalhando diversas políticas que promovem cidadania no cumprimento da pena, contando com a parceria do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e diversos apoiadores no programa Fazendo Justiça.

De forma alinhada à Resolução CNJ 391/2021, que trata da remição de pena por meio de práticas sociais educativas, atuamos para qualificar acervos literários, fomentar bibliotecas em unidades prisionais, disseminar e aprimorar projetos de acesso e fomento à leitura, à arte, à literatura e a toda forma de expressão cultural apreciável.

Já promovemos três edições das Jornadas de Leitura no Cárcere em parceria com o Observatório do Livro e da Leitura, com a participação de mais de 30 mil internos. Concluiremos em breve censo com informações detalhadas para o avanço dessa política, enquanto dados do Executivo Federal já apontam que o percentual de pessoas presas em atividades de remição por leitura passou de 0,6% em 2015 para 22,1% em 2022.

No campo do esporte e do lazer, também com censo a ser lançado em breve, o percentual de pessoas em remição cresceu de 0,1% para 1,2% no mesmo período. Em um contexto de tantas carências, como os que são inerentes às instituições totais, todos os avanços devem ser festejados enquanto almejamos novas metas.

Iniciamos, em maio, a primeira edição do curso "Protocolos de atuação do Judiciário para a execução de políticas públicas em prisões", mobilizando magistradas e magistrados em formação, que se tornará permanente no calendário da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Lançamos, na última semana, versão atualizada da Cartilha de Direitos das Pessoas Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional, que afirma o direito à informação como potente ferramenta para o exercício da cidadania.

Durante a passagem pela Bahia, estivemos — ainda — na Comunidade Quilombola Quingoma, no município de Lauro de Freitas, para escuta qualificada de lideranças de diversas comunidades da Bahia e de outras unidades federativas sobre as principais pautas e demandas desta população. A visita foi uma resposta à manifestação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, recebida por meio do Observatório de Direitos Humanos do CNJ.

Para além das trocas e aprendizados sobre uma cultura e um modo próprio da organização secular dessas comunidades, reforçamos nosso compromisso para combater e corrigir desigualdades raciais por meio de medidas afirmativas, compensatórias e reparatórias, tal como as estabelecidas no Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, recentemente editado no CNJ e que vamos levando a todo o país.

É nosso dever, enquanto agentes públicos, compreendermos a raça enquanto elemento central para o desenho de políticas públicas capazes de superar violências estruturais e institucionais vividas por essa população.

A Bahia sempre foi um lugar de onde nasceram e onde se enraizaram boas práticas no campo penal. Cito como exemplo a política de alternativas penais, uma das pioneiras do país que inspirou especialistas e gestores em diversas unidades da federação, e também os Escritórios Sociais. Essa posição de vanguarda, vale destacar, vem acompanhada de grande responsabilidade para a manutenção de políticas de excelência livres de influências que não se relacionem com o contínuo aprimoramento de serviços prestados à sociedade.

Seguimos em agendas em Minas Gerais nesta quinta-feira (27/7), e em São Paulo, na sexta-feira (28/5), lembrando que o bom êxito do mutirão processual não se esgota na revisão dos processos. Sabemos que grande parte dos desarranjos em nossas prisões, que alimentam ciclos de violência e o próprio crime organizado, se originam das ausências do Estado, da carência de nossas atuações nesses espaços e fora dele.

Devemos nos fazer presentes, sermos percebidos por esses brasileiros enquanto um Estado visível e prestativo, compreendendo o potencial de vida que transcende as condições do cárcere.

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