Opinião

Domínio da organização criminosa e a responsabilidade de seus líderes

Autor

  • Orlando Faccini Neto

    é doutor em Ciências Jurídico Criminais pela Universidade de Lisboa; professor de Direito Penal na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e no curso de mestrado do IDP/Brasília; juiz de Direito no Rio Grande do Sul.

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27 de julho de 2023, 19h43

É inerente ao conceito de organização criminosa a sua destinação para a prática de crimes, conforme se extrai da definição encampada pela Lei 12.850/13. Cabe, então, a discussão sobre de que modo, no concernente às infrações realizadas por conta da organização, dar-se-á a responsabilidade penal de seus integrantes, mormente daqueles que ocupam posições de mando, direcionando a atividade dos demais integrantes.

O assunto se relaciona com a designada teoria do domínio da organização, ou, mais exatamente, com a autoria mediata por meio do domínio da organização (Mittelbare Täterschaft kraft Organisationsherrschaft).

A autoria mediata ocorre quando os elementos do tipo penal são concretizados por uma pessoa, e, apesar disso, outro ou outros agentes estão por de trás, determinando a sua atuação. De modo que, não obstante o verbo nuclear do tipo seja conjugado por um terceiro, o homem de trás é responsabilizado pelo crime na condição de autor.

Desde a sua obra fundamental acerca da autoria em Direito Penal, publicada no início da década de 60  citada, aqui, em edição posterior , Roxin (1984, p. 242-251) assentava como manifestação do domínio acerca do fato criminoso a hipótese concernente às estruturas organizadas de poder.

Nos primórdios de sua elaboração, dizia que, nos casos de estruturas vocacionadas ao cometimento de crimes e ao descumprimento da ordem jurídica, seu funcionamento dá-se, a rigor, automaticamente, sem que importe a pessoa individual do executor, ou seja, daquele que diretamente realiza a conduta típica.

O exemplo que fornecia se mostra bastante eloquente: o sujeito de trás (Hintermann), que ostenta poder de mando no grupo criminoso, aperta o botão dando a ordem de matar, e pode confiar que a ordem será cumprida, ainda que sequer conheça a pessoa do executor.

Aliás, em relação ao executor, uma das características presentes no âmbito da estrutura criminosa é a fungibilidade, vale dizer, a ordem será executada por um ou outro dos componentes da hierarquia inferior do grupo.

Claro que não falta nem a liberdade de escolha e nem a responsabilidade do executor direto; todavia, é, ele, uma engrenagem ou peça, substituível a qualquer momento, da maquinaria de poder, e é essa perspectiva que impulsiona o homem de trás à condição de responsável pela prática criminosa.

Deve-se ressaltar que o âmbito de aplicação da teoria circunscreve-se aos casos em que a estrutura, em seu conjunto, encontra-se à margem do ordenamento jurídico, ou seja, as finalidades inerentes ao aparato de poder hão de estar em contradição com os preceitos do Direito.

É o caso das estruturas mafiosas, dos cartéis de drogas, das milícias e das facções, uma vez que, apesar de suas especificidades, consistem em estruturas hierarquizadas de poder, com atuação primacialmente voltada à frequente violação do Direito, nomeadamente no comércio de entorpecentes, na corrupção, nos homicídios e, eventualmente, com o fim de capitalizarem-se, no cometimento de crimes patrimoniais.

Essa asserção, impõe-se salientar, desde logo afasta a aplicação do domínio da organização aos ajuntamentos de pessoas que, tendo destinação primitiva à atividade econômica lícita (uma empresa, uma corporação), ou mesmo a um agrupamento político (um partido, por exemplo), descambem para práticas criminosas, que serão, nestes casos, eventuais e transitórias, e não o destino original a que se direcionaram desde o nascedouro.

Assim, é preciso demarcar que a teoria em comento não há de ser estendida para hipóteses que não compuseram a constelação de casos de que pretendeu tratar, sendo certo que a sua banalização arriscaria deslegitimar o seu manejo aos casos em que realmente se justifica.

Numa facção, milícia, num cartel ou em máfias, todavia, o pressuposto é a ínsita contradição com a própria ideia de Direito, o confronto radical com a ordem jurídica e o desenvolvimento de atividades à margem da lei.

Fixemos um exemplo: X, líder de um grupo criminoso que atua no comércio de drogas, lança uma ordem geral a seus subordinados imediatos, determinando que quem ingressar no território em que exercem o tráfico deve ser morto; ou então estabelece que os integrantes da organização concorrente devem ser assassinados. Tal comando configura uma ordem ou mandamento, que transita pelos diversos escalões e chega na base do grupo, no nível mais baixo, composto de figuras substituíveis ou fungíveis, as quais desempenham a função de matadores. Cometido os homicídios, estaria afastada a responsabilidade do ordenador, que sequer conhece quem cumpriu a sua ordem? A resposta é, segundo a dicção do domínio da organização, negativa.

Vale avançar mais no exame da teoria, porque as lições até agora trazidas pertencem ao estudo inicial de Roxin, e há outros elementos incorporados ao longo dos anos.

O domínio da organização depende de três pressupostos: 1) a existência de um poder de mando no marco da organização, somado ao fato de que 2) a organização deve ter se desvinculado do Direito no âmbito de sua atividade penalmente relevante, sendo, por fim, 3) o executor individual caracterizado pela fungibilidade, de tal modo que, se não se puder contar com aquele executor, outro ocupa o seu lugar e dá cumprimento ao comando.

A situação é diversa da mera instigação, presente nas concepções tradicionais do concurso de agentes, porque, como assinala Roxin (2012, p. 395-415), a utilização de um aparato de poder para cometer crimes representa uma agressão muito mais perigosa para o bem jurídico do que uma simples exortação não vinculante para a realização de um delito, que é o que caracteriza a instigação.

No domínio da organização, a autoria mediata não se fundamenta na pressão que se exerce sobre o executor direto, cuja autoria responsável não se discute, senão que, antes, se apoia na sua fungibilidade, por sua inserção em aparatos de poder desvinculados do Direito. Assim, aquele que ocupa um poder de mando em um aparato de poder erigido com fins delitivos há de ser considerado autor do crime, e não mero partícipe.

Num outro estudo, Roxin (2012, p. 395-415) aponta que no domínio da organização não há coação ou engano relacionado ao âmbito cognitivo do executor, sendo certo que é o pertencimento ao aparato de poder, enquanto tal, que assegura a execução do fato; é que o aparato dispõe, suficientemente, de outros indivíduos para assumir a função de executor. Por isso, é característico dessa forma de atuação que o homem de trás frequentemente nem sequer conheça pessoalmente o executor imediato.

Com efeito, é exatamente a fungibilidade (substitutibilidade ilimitada do autor imediato) que garante ao homem de trás a execução do fato e lhe permite dominar os acontecimentos. Destarte, a conduta daquele que dá a ordem ou comando ressai relevante e assume gravidade, sendo de referir-se que, apesar de ser o executor também responsável, ele é apenas uma roldana substituível dentro das engrenagens do aparato de poder.

Há um número relevante de casos em que se pode depreender, nos territórios dominados por máfias, milícias, cartéis ou facções, não ser possível a prática de homicídios ou crimes patrimoniais se não for obtida a anuência ou concordância daqueles que estão posicionados nas hierarquias principais; ou seja, os estratos inferiores não poderiam deflagrar certos crimes sem a concordância daqueles que ostentam poder de mando, arriscando serem punidos se o fizessem, o que faz sobressair o exercício do direcionamento da organização, fulcrado na avaliação sobre se a prática de tal ou qual infração penal pode vir a comprometer o desenvolvimento dos seus negócios.

Roxin (2016, p. 259-275) destaca, num outro artigo, que o domínio de um aparato de poder a serviço da comissão de delitos garante a execução dos crimes, sem que o executante possa impedi-lo mediante a sua negativa de cometê-lo, e isso porque, se o fizer, será simplesmente substituído. De maneira que a centralidade está naquele que exerce o poder de mando, sem cuja ordem ou anuência o fato não seria realizado.

Segundo as lições em exame — e as palavras são do autor alemão , não se vê razão normativa para exonerar o sujeito de trás de sua responsabilidade por uma realização típica quando este, no marco de uma organização dirigida por ele, empregar figuras anônimas para cometer assassinatos. Será irrelevante desvendar se quem dá a ordem conhece o executor e tampouco sabe algo certo acerca do lugar, hora e forma de comissão dos delitos.

De notar-se que a cobertura dada pelo domínio da organização não se restringe exclusivamente ao líder maior do grupo criminoso, sendo possível, em alguns casos, depreender-se a situação consistente em um domínio parcial da organização. Trata-se, aqui, da situação concernente àqueles que proferem ordens ou comandos num nível intermediário do grupo, o que nada muda nos termos teóricos em que Roxin delineou sua concepção, se aquele situado numa hierarquia mediana acaba por exercer o domínio da organização, ainda que desde a sua posição para baixo, como se líder fosse.

Quer dizer, naqueles casos em que determinado indivíduo, dentro da autonomia inerente às suas funções, possui estratos inferiores que atuam sob seu comando, mesmo sem ostentar a mais expressiva liderança, ou, noutros termos, mesmo que esse indivíduo tenha superiores a quem se reportar, a sua determinação de prática de crimes para aqueles que são seus subordinados indica um parcial domínio da organização criminosa e, assim, leva à sua responsabilização, frente a tais delitos, na condição de autor.

Sempre, no contexto de uma facção, máfia ou cartel, para que desabroche a imputação ao modo do domínio da organização, deverão ser demonstradas a própria existência da organização criminosa, cuja atuação se dê à margem do ordenamento jurídico, a execução do crime por um elemento que se considere fungível, no sentido de substituível e, portanto, sem que tenha sido revelada a sua capacidade ou atribuição de resolver pela realização típica por si só; ademais, necessário desvelar a posição de comando na estrutura da organização, ainda que este seja parcial, desde que capaz de abarcar um nível relevante da hierarquia mais baixa, dentro da qual tenha sido o crime cometido.

Finalmente, impõe-se evidenciar a ordem, o mandamento ou comando, que se relacione com o crime cometido, sendo de ressaltar que a exigência de um nível de prova ou standard para a demonstração deste elemento não pode ser tal que cobre dos órgãos estatais um documento escrito, um contrato formal ou uma mensagem expressa inequívoca.

Ora, se a organização criminosa é, por natureza, desviante do Direito, não possuirá registros formais ou documentação que explicite o direcionamento de suas atividades; ao contrário, pois, muitas vezes, são utilizados códigos próprios, conversas cifradas, mensageiros ou mesmo modos ilícitos de transmissão de comunicações, razão pela qual as regras de experiência e um bem-acabado conjunto de indícios terão, em tais casos, expressiva relevância.

 

 

Referências
ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft. 4 Auflage. Berlin: De Gruyter Recht, 1984.

ROXIN, Claus. Zur neuesten Diskussion über die Organisationsherrschaft. In: Goltdammer's Archiv für Strafrecht, vol. 159, nº 7, 2012.

ROXIN, Claus. Mittelbare Täterschaft kraft Organisationsherrschaft. In: Sonderheft für Gerhard Schäfer zum 65. Geburtstag am 18. Oktober 2002. Axel Boetticher; Martin Huff; Herbert Landau; Gunther Widmaier (eds.). München – Frankfurt am Main: C.H.Beck, 2002.

ROXIN, Claus. El dominio del hecho mediante aparatos organizados de poder. In: La teoría del delito en la discusión actual. Tomo II. Tradução de Manuel Vásques. Lima: Grijley, 2016.

Autores

  • é doutor em Ciências Jurídico Criminais pela Universidade de Lisboa; professor de Direito Penal na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e no curso de mestrado do IDP/Brasília; juiz de Direito no Rio Grande do Sul.

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