Garantias do Consumo

Teoria finalista mitigada e comprovação da vulnerabilidade do consumidor

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26 de julho de 2023, 8h00

O artigo 4º, inciso I, do CDC (Código de Defesa do Consumidor), dispõe sobre o princípio da vulnerabilidade, o qual orienta a relação jurídica entre fornecedores e consumidores visando alcançar uma igualdade substancial, reequilibrando as forças e protegendo o sujeito mais fraco desta relação.

Sobre o tema, de acordo com Cláudia Lima Marques, a vulnerabilidade do consumidor pode ser técnica, quando este não possui conhecimento específico sobre o serviço ou produto adquirido; pode ser jurídica, quando o consumidor não tem conhecimento sobre os efeitos jurídicos da contratação realizada ou algum conhecimento inerente às áreas de contabilidade e economia; ou pode ser fática, a qual abrange a vulnerabilidade econômica e intelectual do consumidor [1].

Partindo dessa premissa, cabe expor que a doutrina, tradicionalmente, tem interpretado o conceito jurídico de consumidor estabelecido no artigo 2º do CDC [2] com base em duas posições fincadas nas teorias maximalista (concepção objetiva) e finalista (concepção subjetiva). Para teoria maximalista, o consumidor é o destinatário final fático do produto ou serviço, ou seja, a interpretação, como a própria denominação demonstra, alarga o conceito de consumidor.

Nessa hipótese, basta que o sujeito retire o produto ou serviço do mercado de consumo para ser considerado consumidor, independente daquele ter sido adquirido para obtenção de lucro com determinada atividade econômica. Já para a teoria finalista, a interpretação do conceito de consumidor é restrita, considerando como consumidor apenas o destinatário final fático e econômico do produto ou serviço ou, em outras palavras, aquele que efetivamente adquire ou utiliza o produto ou serviço para satisfazer o próprio interesse [3].

Não obstante o exposto, impende salientar que, além das duas teorias mencionadas, a jurisprudência tem desenvolvido uma terceira visão sobre o assunto, denominada de teoria finalista mitigada ou aprofundada [4], a qual sublinha a vulnerabilidade como elemento principal para configuração do conceito de consumidor.

De fato, com base numa interpretação teleológica do artigo 2º do CDC, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) tem defendido a aplicação da teoria do finalismo aprofundado sob o fundamento de que "em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no artigo 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor" [5].

Nesse sentido, chamou a atenção um caso julgado pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) que tratava de uma ação de cobrança proposta por uma empresa que atua no ramo de venda de ingressos para eventos artísticos e de entretenimento, utilizando-se da prestação de serviços da empresa ré para promover a referida venda por intermédio de uma plataforma digital (e-commerce) e de pontos físicos fornecidos por esta.

Em suma, a autora reclamava que o contrato de gestão de pagamento realizado entre as partes previa a obrigação da ré realizar a análise da segurança das transações, havendo cláusula expressa que dispunha que a ré deveria arcar com eventual prejuízo causado por fraudador, caso a autora comprovasse que o produto foi entregue ao usuário. No caso, a autora pleiteava uma indenização por danos materiais em razão de 407 (quatrocentos e sete) chargebacks (reversão de pagamento em decorrência da contestação de uma compra) ocorridos por diversos fatores.

Na sentença, o magistrado entendeu pela existência das figuras do fornecedor (artigo 3º, CDC) e do consumidor (artigo 2º, CDC) na relação jurídica estabelecida entre as partes, sem, contudo, se aprofundar nas teorias relacionadas ao tema. Igualmente, o magistrado considerou a aplicação da responsabilidade objetiva da ré, com base nos artigos 18 e 20 do CDC, expondo sobre o risco da atividade desenvolvida, e pela existência de uma cláusula abusiva (artigo 51, CDC) que permitia o bloqueio do saldo no caso de reclamação dos compradores. Por conseguinte, o pedido foi julgado procedente, sendo determinada a devolução integral dos valores retidos em razão dos chargebacks.

Diante da condenação, a ré interpôs recurso de apelação contra a sentença, de maneira que o tribunal paulista, ao avaliar as nuances relativas à incidência do CDC no caso, destacou que ambas as empresas eram consolidadas no mercado e atuantes no meio virtual, sendo que a autora utilizava os serviços de intermediação de pagamento oferecidos pela ré como meio para realizar as suas atividades comerciais, não se tratando de destinatária final do serviço prestado e, por consequência, não sendo aplicável o conceito de consumidor instituído no artigo 2º do CDC nessa relação jurídica.

Dessa forma, considerada a existência de uma relação empresarial e a consequente aplicação dos ditames do Código Civil no caso, o tribunal entendeu pela validade da cláusula contratual ressaltando que o contrato firmado deixava suficientemente claro que os chargebacks de produtos seriam devolvidos imediatamente se a compra fosse reclamada, sendo certo que cabia à autora comprovar a existência de fraude na aprovação das transações para demonstrar a falha na prestação de serviços da parte ré, o que não ocorreu. Assim, com base no artigo 373, inciso I, do CPC [6], diante da ausência de prova capaz de revelar a responsabilidade civil da ré, o recurso de apelação foi provido, reformando-se a sentença para julgar improcedente o pedido.

Em consequência, a autora interpôs Recurso Especial [7] em face do acórdão do tribunal paulista alegando a violação dos artigos 2º, 6º, inciso VIII e 51, incisos I e IV, do CDC, sustentando a existência de uma relação de consumo, sob o argumento de que incidiria a teoria finalista aprofundada na hipótese, haja vista a "hipossuficiência fática" existente entre as partes [8].

Argumenta, ainda, que "a recorrida é empresa
global que atua no ambiente virtual em mais de 50 países, enquanto a recorrente é local e somente 15% da empresa atua no ramo virtual e, nos últimos anos, teve a sua atividade afetada pela pandemia de Covid-19. Defende, ademais, a vulnerabilidade contratual da recorrente, por se tratar de contrato de adesão. Reconhecida a incidência do CDC, argumenta que deve ser declarada a inversão do ônus da prova e reconhecida a abusividade da cláusula contratual que transfere à recorrente a responsabilidade pelos chargebacks (cláusula 5.4.10)".

Antes, porém, de adentrar no julgamento do recurso em referência, cumpre salientar que o STJ já se manifestou no sentido de que a imposição de limites à presunção da vulnerabilidade implicaria numa restrição excessiva, motivo pelo qual a vulnerabilidade da pessoa jurídica consumidora também poderia ser presumida, cabendo à outra parte comprovar a inexistência da vulnerabilidade [9]. Assim, a exigência da destinação final do produto ou serviço termina por ceder espaço para a análise da vulnerabilidade da parte, ampliando a aplicação do CDC nas relações jurídicas [10].

Todavia, em outras situações, percebe-se que o STJ tem restringido o emprego do finalismo aprofundado. Por exemplo, verifica-se que, nos casos que envolvem a discussão sobre a aquisição de software por pessoa jurídica para aplicação em sua atividade empresarial, o STJ não tem reconhecido a mitigação da teoria finalista [11]. Do mesmo modo, ao analisar um recurso especial que tratava de uma ação de regresso proposta por uma transportadora em face de uma seguradora visando o recebimento de uma indenização, o STJ entendeu pela inaplicabilidade do CDC, afirmando que a transportadora contratou o seguro visando à proteção da carga pertencente a terceiro, utilizando-se do serviço securitário como instrumento (insumo) do processo de prestação de serviços e com o objetivo de obter lucro, não se tratando de destinatária final do serviço [12].

Portanto, percebe-se que o STJ tem considerado que o produto ou serviço adquirido para incremento da atividade desenvolvida afasta a caracterização da figura do consumidor, de maneira que "não haja a utilização de um produto ou serviço para a produção de outro produto ou serviço, ou seja, que cesse toda a circulação do bem" [13]. Nessa linha de raciocínio, pode-se chegar ao entendimento de que a teoria do finalismo aprofundado (ou mitigado) tem sido admitida em situações excepcionais, de modo que o STJ tem avaliado a situação jurídica de cada caso concreto a fim de balancear a aplicação da referida teoria e evitar o alargamento do seu uso.

Seguindo essa evolução e retornando à análise do Recurso Especial nº 2.020.811/SP, cabe recordar que a recorrente defendeu a existência de uma relação de consumo com base na teoria finalista mitigada porque, apesar de não ser a destinatária final do serviço, haveria uma vulnerabilidade fática diante do seu baixo poder econômico frente à recorrida.

Ao tratar do tema, a relatora ministra Nancy Andrighi reforçou que a jurisprudência do STJ tem aplicado a teoria finalista como a regra, considerando como consumidor aquele que exclui o bem ou serviço, de forma definitiva, do mercado de consumo. Porém, destacou que o finalismo tem sido mitigado nas situações de vulnerabilidade que se apresentarem conforme o caso concreto.

Nesse sentido, a ministra ressaltou que a presunção de vulnerabilidade se aplica apenas ao consumidor não profissional, dispondo que, no caso de pessoa jurídica, "incumbe ao sujeito que pretende a incidência do diploma consumerista comprovar a sua situação peculiar de vulnerabilidade".

Dessa forma, ficou claro no voto proferido que a configuração de uma relação de consumo pode ocorrer mesmo que o sujeito (pessoa jurídica) não seja o destinatário final fático e econômico do produto ou serviço, desde que haja prova da sua vulnerabilidade perante o fornecedor. Com isso, conclui-se que a análise da relação contratual entre pessoas jurídicas deve partir de um olhar voltado às regras de uma relação empresarial, regida pelo Código Civil, para, tão-somente após a comprovação da vulnerabilidade, fazer incidir o diploma consumerista.

Na hipótese do recurso sob exame, tendo em vista que o juízo a quo, com base nas provas produzidas no processo, entendeu pela ausência de vulnerabilidade, a relatora negou provimento ao recurso especial, visto que seria necessário o revolvimento do conjunto fático-probatório, o que não é permitido em razão da Súmula 7 do STJ [14].

Em conclusão, a decisão do REsp nº 2.020.811/SP busca fortalecer a teoria finalista como a diretriz a ser observada para o conceito de consumidor, e, em um segundo momento, busca afastar qualquer presunção de vulnerabilidade quando o sujeito que pleiteia a incidência do CDC for uma pessoa jurídica.

 


[1] MARQUES. Claudia Lima. BENJAMIN, Antônio Herman V. MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 3ª edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 198.

[2] "Artigo 2°. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final".

[3] MARQUES. Claudia Lima. BENJAMIN, Antônio Herman V. MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, cit., p. 106.

[4] "Direito civil. Consumidor. Agravo no recurso Especial. Conceito de consumidor. Pessoa jurídica. Excepcionalidade. Não constatação.  A jurisprudência do STJ tem evoluído no sentido de somente admitir a aplicação do CDC à pessoa jurídica empresária excepcionalmente, quando evidenciada a sua vulnerabilidade no caso concreto; ou por equiparação, nas situações previstas pelos artigos 17 e 29 do CDC. Negado provimento ao agravo". (AgRg no REsp nº 687.239/RJ, Terceira Turma, relatora ministra Nancy Andrighi, julgado em 6/4/2006).

[5] REsp 1.195.642/RJ, Terceira Turma, relatora ministra Nancy Andrighi, julgado em 13/11/2012.

[6] "Artigo 373. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito".

[7] REsp nº 2.020.811/SP, Terceira Turma, relatora ministra Nancy Andrighi, julgado em 29/11/2022.

[8] Acerca do tema, cabe mencionar a distinção entre vulnerabilidade e hipossuficiência trazida pela doutrina. Enquanto a vulnerabilidade pertine a todos os consumidores, "no caso da hipossuficiência, presente no artigo 6º, VIII, do CDC, a noção aparece como critério de avaliação judicial para a decisão sobre a possibilidade ou não de inversão do ônus da prova em favor do consumidor: 'Artigo 6º São direitos básicos do consumidor: 'A facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências'. Ou seja, nem todo consumidor será hipossuficiente, devendo esta condição ser identificada pelo juízo no caso concreto" (MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor, 6ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016. p. 128).

[9] "(…) Ressalto, por oportuno, que a presunção de vulnerabilidade do consumidor pessoa jurídica não é inconciliável com a teoria finalista; ao contrário, harmoniza-se com a sua mitigação, na forma que vem sendo reiteradamente aplicada por este STJ: prevalece a regra geral de que a caracterização da condição de consumidor exige destinação final fática e econômica do bem ou serviço, conforme doutrina finalista, mas a presunção de vulnerabilidade do consumidor dá margem à incidência excepcional do CDC às atividades empresariais, que só serão privadas da proteção da lei consumerista quando comprovada, pelo fornecedor, a não vulnerabilidade do consumidor pessoa jurídica" (Recurso em Mandado de Segurança 27512/ BA, Terceira Turma, relatora ministra Nancy Andrighi, julgado em 20/08/2009).

[10] Nessa linha de compreensão, Marcelo Junqueira Calixto esclarece que "de fato, embora chamado de finalismo aprofundado, o que se busca é mitigar a exigência legal da destinação final, delegando ao julgador a palavra final acerca da incidência do CDC" ("Novos contornos da vulnerabilidade no direito do consumidor" in Vulnerabilidades e suas Dimensões Jurídicas, Indaiatuba, Foco, 2023, p. 245).

[11] AgInt no AREsp nº 2.132.923/SP, relator ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 12/12/2022.

[12] REsp 1.176.019/RS, relator ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 20/10/2015.

[13] CALIXTO, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelos riscos do desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 37.

[14] Súmula 7, STJ: "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial".

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