Justiça Tributária

A PEC 46 do "Simplifica já" é a fuga do maniqueísmo na reforma tributária

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

24 de julho de 2023, 8h00

"Maniqueísmo" corresponde a uma visão dual de mundo, algo como considerar que existam apenas bons ou maus, preto ou branco, Flamengo ou Fluminense e por aí vai. A visão maniqueísta impede que consideremos existir outras possibilidades, como, no futebol do Rio de Janeiro, o vitorioso Botafogo e até mesmo o Vasco. Nem tudo é bom ou mau, ou ainda, preto ou branco. Não é que isso nos tenha sido imposto, mas é uma visão de mundo que muitas vezes adotamos, sabe-se lá o motivo.

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Temo que isso esteja acontecendo com o debate sobre a reforma tributária, no qual passamos muito tempo discutindo a PEC 45 ou a PEC 110, e tenhamos esquecido outras possibilidades, como a PEC 46, de 22 de dezembro de 2022, que tramita no Senado Federal, conhecida como "Simplifica já".

Tal como as outras, a PEC 46 traz ideias bastantes interessantes e merece atenção, em especial porque vai se iniciar no Senado o debate sobre a PEC 45-A (decorrente da fusão entre a PEC 45 e a PEC 110), já aprovada na Câmara.

A PEC 46 decorre de uma iniciativa de 37 senadores, tendo à frente o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), e recebeu a alcunha de "Simplifica já" por ser realmente uma proposta que visa manter o sistema atualmente existente, simplificando-o fortemente, sem causar um terremoto fiscal e federativo em nosso país, como se vislumbra venha a ocorrer com a PEC 45-A.

Quais as principais semelhanças e diferenças entre as duas propostas em debate no Senado?

A primeira delas é que a PEC 46 não trata do âmbito federal da tributação do consumo, concentrando-se no âmbito estadual e municipal. Logo, nada trata acerca da unificação do Pis e da Cofins e do IPI. A única disposição sobre o âmbito federal no texto da PEC 46 é a possibilidade de que as contribuições sociais poderão passar a ter alíquotas diferenciadas em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão de obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho (artigo 195, parágrafo 9º).

A PEC 46 mantém os atuais tributos estaduais e municipais sobre o consumo, transformando o ICMS em uma espécie de IVA estadual e mantendo a atual sistemática cumulativa para o ISS, em face da pequena quantidade de créditos a serem tomados no setor de serviços. Os dois tributos teriam legislação única nacional, cadastro único para todos os entes tributantes, nota fiscal eletrônica com padrão único e guia de pagamento unificada, o que, inegavelmente, simplificará o sistema. Já a PEC 45-A cria um IVA dual, ao unificar a tributação de estados e municípios no IBS (ICMS+ISS), e a federal na CBS (PIS+COFINS) , além do Imposto Seletivo (IPI), e permite que os Estados cobrem contribuições sobre o consumo e a exportação (PEC 45-A: artigo 20).

A PEC 46 propõe cinco alíquotas para o ICMS, estabelecidas pelo Senado (artigo 155, IV-A) , sendo vedado conceder unilateralmente incentivos ou benefícios fiscais (artigo 155, IV-C), mas admitindo que lei complementar regule a forma pela qual o Senado venha a concedê-los, em caráter nacional (artigo 155, XII, "g"). A PEC 45-A estabelece a criação de uma alíquota uniforme de IBS para todo o país, sendo permitido aos estados e municípios “calibrá-la” para baixo, em intervalos pré-determinados. Ambas preveem alíquotas reduzidas para a tributação dos serviços de saúde e educação (PEC 46: artigo 156, V, parágrafo 5º), tendo a PEC 45-A ampliado as exceções.

A PEC 46 propõe a criação de um comitê gestor para o ICMS, que será uma autarquia nacional (artigo 155, XIII), regulado por lei complementar, formado por integrantes de todos os estados e DF. Existe também a proposta de criação de um comitê gestor para o ISS (artigo 156, parágrafo 8º), sem detalhar sua forma de composição. A PEC 45-A propõe a criação de um conselho federativo para regular o IBS, composto por representantes de estados e municípios, com voto duplo ao DF, conforme expus anteriormente.

As duas PECs permitem que o imposto seja cobrado no destino, o que é positivo, sendo que a proposta da PEC 46 cria uma espécie de câmara de compensação para distribuir a arrecadação ao estado de destino (artigo 155, XIII, "c").

Ambas também preveem direito ao crédito, o que tornaria o imposto efetivamente não-cumulativo, porém a redação desse dispositivo na PEC 46 é muito melhor descrito, pois garante para o ICMS “o crédito financeiro, entendido este como o aproveitamento integral do crédito do imposto cobrado em todas as operações ou prestações anteriores, independentemente da forma de utilização dos bens ou serviços adquiridos”, estabelecendo que eventuais exceções só poderiam ocorrer na forma de lei complementar e “apenas quando as operações ou prestações não forem direta ou indiretamente utilizadas nas atividades do contribuinte” (artigo 155, parágrafo 2º, I). Vê-se que este texto garante a amplitude do uso do crédito, sendo estipulada apenas uma hipótese de exceção, a qual será regulada por lei complementar.

É patente que a PEC 46, em seis páginas de texto normativo, trata de modo distinto diversas matérias que a PEC 45-A trata em suas mais de 36 páginas de alteração constitucional. É verdade que, nas duas, muito ficará a ser normatizado através de leis complementares, porém seus alcances são completamente diferentes, em especial pelos aspectos federativos, pois na PEC 45-A existe a previsão de um IVA dual, isto é, um para a União e outro para estados e municípios, enquanto a PEC 46 ataca menos o pacto federativo, ao prever a transformação do ICMS em um IVA e simplificar fortemente sua legislação e a do ISS, silenciando quanto ao âmbito federal.

Não há nada na PEC 46 que se assemelhe ao artigo 20 da PEC 45-A, que permite aos estados criarem contribuições sobre o consumo, incluindo a exportação. E nem existem fundos de ressarcimento a estados na PEC 46, conforme previsto na PEC 45-A.

Ambas também silenciam quanto às multas – por que não estabelecer um limite à sua exigibilidade já na Constituição, algo como um teto de 30%?

A despeito de sempre preferir analisar o texto da norma que se pretende aprovar, pois a propaganda pode ser enganosa, registro que existe um site que congrega diversas informações bastante didáticas sobre a PEC 46.

Seguramente o Senado saberá analisar as duas PECs, aproveitando o que há de bom em cada qual, criando novo substitutivo, que possa ser encaminhado à Câmara para nova rodada de debates – sem maniqueísmos.

Por fim, reitero que os assuntos referentes à reforma tributária não devem ser tratados com urgência, mas com serenidade, uma vez que sua implementação será diluída no tempo, como previsto nas duas PECs ora analisadas.

PS: Cumprimento os colegas Marcus Livio e Sergio André, que recentemente assumiram esta coluna junto comigo e nosso decano, “sheik” Raul Haidar. Estou seguro de que reforçarão os debates que vimos travando em prol de um sistema tributário mais justo para a sociedade brasileira.

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  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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