Opinião

Desafios jurídicos e inovações legislativas à luz do constitucionalismo digital

Autor

  • Paulo Rená da Silva Santarém

    é doutorando na UnB (Universidade de Brasília) em Direito Estado e Constituição e foi gestor no Ministério da Justiça do processo coletivo de elaboração do Marco Civil da Internet no Brasil.

23 de julho de 2023, 6h07

O constitucionalismo digital pode ser entendido como sendo uma ideologia que visa lidar com os desafios da sociedade da informação pautado por duas missões centrais para o mundo jurídico no ambiente digital: reafirmar direitos humanos fundamentais e promover o equilíbrio entre poderes. Essa é a perspectiva sistematizada por Edoardo Celeste [1], e que pode auxiliar a compreender adequadamente e pautar tomadas de decisão que sejam coerentes com a realidade das tecnologias digitais de informação e comunicação.

No Brasil, ao lado de controvérsias judiciais e iniciativas administrativas, os debates no curso das diversas frentes de possíveis criações normativas em temas de direito digital têm despertado interesse da opinião pública, mas também levantado questionamentos sobre quem deve ser responsável por essa complexa tarefa.

Assim, governança digital e inovações legislativas têm sido amplamente discutidas no país, não só tendo em vista certas garantias como liberdade de expressão [2], proteção de dados pessoais, democracia, pleno emprego [3], segurança pública, presunção de inocência [4] e devido processo legal, mas especialmente o equilíbrio entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, bem como em relação ao poderio social das grandes empresas privadas de tecnologia digital [5], que na prática têm ignorado as previsões do Marco Civil da Internet e operado sem limites efetivos na moderação de conteúdos e contas [6].

A sociedade da informação trouxe consigo inúmeras provocações ao que o tradicional mundo jurídico considerava estabilizado [7]. O conceito de direito digital pode ser definido exatamente como o conjunto de enfrentamentos necessários por força desse cenário que não é só tecnológico, mas filosófico, cultural, geopolítico [8], militar, científico e econômico. Desde questões como a tributação de Bitcoin até o famigerado direito ao esquecimento, passando por comércio eletrônico, desordem informacional [9] e sistema eleitoral [10]: há um mosaico incessante de novas perguntas que recolocam velhos problemas e exigem novas abordagens para a adequação das regras jurídicas ao contexto digital [11].

A cultura digital, estruturada a partir da combinação das capacidades tecnológicas de armazenamento, processamento e comunicação de dados — todas as três em velocidade e volumes que ultrapassam as potencialidades de qualquer ser humano — impõe dificuldades e promessas. Há tecnosolucionistas [12] ou, como denomina Evgeny Morozov [13], tecnoutopistas, para quem essa conjuntura tecnológica, por si só, poderia resolver toda e qualquer sorte de problemas, combinando as disrupções da vez (blockchain, inteligência artificial [14] ou metaverso, por exemplo). Mas há ainda um contingente enorme e persistente de pessoas que — negligenciadas por políticas públicas (que não geram a devida universalização do acesso [15] a infraestruturas necessárias) e privadas (que priorizam os ganhos financeiros em todas as esferas) [16] — ficam à margem desse universo e sequer estão conectadas.

Esse cenário desigual amplia e aprofunda as graves dimensões de exclusão (classe [17], raça [18], gênero [19], sexualidade, idade, etc.), que seguem ignoradas pelas novidades tecnológicas da moda, normalmente pautadas pela ânsia do mercado em obter não só lucros, mas lucros sempre crescentes.

A chave do constitucionalismo digital, repita-se, defende um quadro normativo que, diante dos desafios, se oriente a levar a sério e reforçar direitos fundamentais e equilibrar os poderes públicos e privados no ambiente digital. Em vez de perseguir cegamente os avanços imprevisíveis da tecnologia, essa linha permite adotar uma abordagem jurídica de princípios a serem respeitados como parâmetros de certo e errado para as soluções dos problemas, as quais por sua vez podem ser apreciadas tanto em seu atendimento aos princípios, quanto em sua adequação aos parâmetros da realidade tecnológica. Assim, sem perder a adesão ao olhar do direito, permitem eventuais adequações que se façam pertinentes diante das inevitáveis futuras mudanças, ou mesmo de novas considerações de aspectos relevantes não considerados.

O Poder Judiciário desempenha o papel essencial de afirmar direitos ao fixar soluções para as controvérsias submetidas a seu julgamento. À luz do Constitucionalismo Digital, deve primar pela efetivação das garantias e distribuir as responsabilidades tendo em vista os contornos que puder analisar, sempre registrando na fundamentação das decisões tudo o quanto tiver levado em conta, tanto como parâmetros de realidade, quando como fontes de juridicidade. Mas também cabe ao Judiciário normatizar pela liderança, tendo como exemplo as iniciativas de inteligência artificial desenvolvidas para auxiliar o trabalho da jurisdição em suas diversas fases, agilizando as condições que viabilizam as decisões. Merecem destaque os robôs Victor, VictorIA e RAFA2030, do Supremo Tribunal Federal, mas sem ignorar as dezenas de iniciativas semelhantes de muitas Cortes brasileiras.

O Poder Legislativo, com sua atribuição de inovar na ordem legislativa, deve promover debates democráticos, buscar conhecer as frentes encampadas por outras nações e, ao fim, institucionalizar as propostas. Sua função primordial é aprovar a criação de normas que não só orientem soluções imediatas, exercendo a regulação legal dos setores sociais, mas que possam indicar novos caminho e espaços de regulação adequados à dinâmica da cultura digital (inclusive mediante a autorregulação de interesses do mercado privado), mas sempre tendo como eixo uma regulação prévia que assegure os interesses públicos.

Em paralelo, cabe ainda à academia valorizar a transparência, cobrar responsabilização coerente, fornecer subsídios e apresentar outras vias possíveis para serem enfrentados os desafios da cultura digital. A ciência, pelo primado das análises empíricas metódicas, em toda sua amplitude de disciplinas, oferece uma base sólida para a avaliação de riscos, mensuração de sucessos e detecção de urgências de adaptação. O compromisso com a ciência fortalece o caráter democrático do Estado de Direito no desempenho de políticas públicas, na prolação de decisões judiciais e na tomada de opções políticas. Isso também é verdade para o poder público diante das exigências do Constitucionalismo Digital, que se vê às voltas com arroubos autoritários de donos de redes sociais, ordens judiciais que não são exequíveis e propostas normativas descoladas do mínimo conhecimento seja sobre a realidade social do Brasil [20], seja sobre os atributos estruturantes da Internet [21] e outras muitas tecnologias digitais.

Faz-se, portanto, crucial haver ainda uma cooperação entre os três poderes públicos e a academia, a fim de que se possa arquitetar uma governança digital justa, equilibrada e adequada. Assim, em realização dos fundamentos, princípios e objetivos preconizados pela Constituição Federal de 1988, não obstante as inesgotáveis atualizações da cultura digital, o Brasil poderá sempre respeitar, proteger e promover efetivamente o arcabouço de direitos humanos fundamentais no cenário da sociedade da informação.

*Este artigo é uma adaptação da palestra proferida pelo autor em 27 de junho de 2023, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, durante a mesa "Governança Digital e as Inovações Legislativas", por ocasião do XI Fórum Jurídico de Lisboa, registrada em vídeo no canal da ConJur no YouTube (asssita aqui), com apoio de apresentação de telas disponível online.

 

[1] CELESTE, Edoardo. Constitucionalismo digital: mapeando a resposta constitucional aos desafios da tecnologia digital. Tradução de Paulo Rená da Silva Santarém. Revisão de Graziela Azevedo. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, ano 15, nº 45, p. 63-91, jul./dez. 2021. https://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/1219.

[2] Jessica Guedes Santos, Amanda Cristina Alves Silva, Barbara Fernanda Ferreira Yandra. O Comportamento Virtual De Parlamentares: Existem Limites Para A Expressão Nas Redes Sociais? Anais da X Jornada de Pesquisa e Extensão. 2019. https://soac.camara.gov.br/index.php/Jornada/X/paper/view/317/147.

[3] CAMELO, Ana Paula, et al. Position paper: Gig economy e trabalho em plataformas no Brasil: do conceito às plataformas. Cepo Direito SP, 2021.

[4] GOMES, Mariana. A Naturalização de Sistemas e Tecnologias de Vigilância Na Pandemia. Le Monde Diplomatique (blog). 26 abr. 2021. https://diplomatique.org.br/a-naturalizacao-de-sistemas-e-tecnologias-de-vigilancia-na-pandemia/

[5] COALIZÃO DIREITOS NA REDE. Batalhas Digitais #23 Responsabilidade dos Provedores de Aplicações (Podcast). 2022. https://direitosnarede.org.br/podcast/23-responsabilidade-dos-provedores-de-aplicacoes/.

[6] CALDEIRA, Júlia; SAMUEL, Lucas. "A questão do Telegram sob a perspectiva da moderação de conteúdo". IRIS-BH, 14 de março de 2022. https://irisbh.com.br/a-questao-do-telegram-sob-a-perspectiva-da-moderacao-de-conteudo/.

[7] PEKARI, Catrin. The Information Society and its Policy Agenda: Towards a Human Rights-Based Approach. In: Revue Québécoise de droit international, volume 18, nº 1, 2005. pp. 57-74. http://www.persee.fr/doc/rqdi_0828-9999_2005_num_18_1_977.

[8] CALDEIRA, Júlia; SAMUEL, Lucas. A Exclusão Digital Na Perspectiva Do Sul Global: Consequências e Vulnerabilidades Sociais. IRIS-BH. IRIS-BH, September 26, 2022. https://irisbh.com.br/a-exclusao-digital-na-perspectiva-do-sul-global-consequencias-e-vulnerabilidades-sociais/.

[9] OLIVEIRA, Taís. Educação Midiática contra a desinformação e o discurso de ódio. In FRAGA, Eduardo; LEMOS, Monique (Orgs). Guia prático para capacitar cidadãos a aplicar com autonomia métodos de mensuração de impacto a projetos de educação midiática. Redes Cordiais: Rio de Janeiro, 2021. https://drive.google.com/file/d/1yQfyRb7vzJeArjVvCrFaDg_R1nF2plUS/view.

[10] CRUZ, F. B.; OLIVA, T. ; MASSARO, H. M. M.; SANTOS, E. B. Internet e eleições no Brasil: diagnósticos e recomendações. 2019. https://internetlab.org.br/pt/noticias/internet-e-eleicoes-no-brasil-diagnosticos-e-recomendacoes/.

[11] SANTARÉM, Paulo Rená da Silva. A Internet expõe a necessidade geral de um amadurecimento do regime jurídico brasileiro de responsabilidade civil. In DA SILVA, Alexandre Pacheco; CAMELO, Ana Paula; CANABARRO, Diego Rafael; WAGNER, Flávio Rech (orgs.). Estrutura e funcionamento da internet: aspectos técnicos, políticos e regulatórios. São Paulo (SP), Brasil: CEPI FGV Direito; ISOC Brasil, 2021. pp. 58-65. https://www.academia.edu/48266173/Curso_livre_Estrutura_e_funcionamento_da_Internet_aspectos_t%C3%A9cnicos_pol%C3%ADticos_e_regulat%C3%B3rios_2020_.

[12] FERREIRA, Rafaela. "Controle Do Trabalho e Tecnosolucionismo: Controvérsias Sobre o Uso de Dados de Geolocalização Como Prova Na Justiça Do Trabalho". IRIS-BH – Instituto de Referência em Internet e Sociedade, 9 dez. 2022. https://irisbh.com.br/controle-do-trabalho-e-tecnosolucionismo-controversias-sobre-o-uso-de-dados-de-geolocalizacao-como-prova-na-justica-do-trabalho/.

[13] MOROZOV, Evgeny. Why social movements should ignore social media. New Republic, v. 5, 05 fev. 2013. Disponível em https://newrepublic.com/article/112189/social-media-doesnt-always-help-social-movements.

[14] COSTANZA-CHOCK, Sasha; RAJI, Inioluwa Deborah; BUOLAMWINI, Joy. 2022. Who Audits the Auditors? Recommendations from a field scan of the algorithmic auditing ecosystem. In Proceedings of the 2022 ACM Conference on Fairness, Accountability, and Transparency (FAccT '22). Association for Computing Machinery, New York, NY, USA, 1571–1583. https://doi.org/10.1145/3531146.3533213.

[15] DE LIMA, Marcos Francisco Urupá Moraes; SILVA, Sivaldo Pereira da; BIONDI, Antonio. Programa Nacional de Banda Larga no Brasil: características e desafios. SILVA, Sivaldo Pereira da; BIONDI, Antonio. Caminhos para a universalização da internet banda larga: experiências internacionais e desafios brasileiros. São Paulo: Intervozes, p. 239-260, 2012.

[16] Anita Ramasastry (2015) Corporate Social Responsibility Versus Business and Human Rights: Bridging the Gap Between Responsibility and Accountability, Journal of Human Rights, 14:2, 237-259, DOI: 10.1080/14754835.2015.1037953. https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/14754835.2015.1037953.

[17] MILNER, Yeshimabeit; TRAUB, Amy. Data Capitalism + Algorithmic Racism. Data for Black Lives and Demos, 2021. https://www.demos.org/research/data-capitalism-and-algorithmic-racism.

[18] LIMA, Stephanie; MARTINS, Fernanda Kalianny. Transformações, desafios e estratégias: o que mudou após 10 anos da Lei de Cotas? InternetLab. 2022. https://internetlab.org.br/pt/noticias/transformacoes-desafios-e-estrategias-o-que-mudou-apos-10-anos-da-lei-de-cotas/.

[19] MARTINS, Fernanda Kalianny; VALENTE, Mariana; BORGES, Ester; TAVARES, Clarice; GOMES, Alessandra. Violência contra mulheres online e os tribunais: observações preliminares. 2020. https://internetlab.org.br/pt/noticias/violencia-contra-mulheres-online-e-os-tribunais-observacoes-preliminares/.

[20] BAHIA, Silvana. Um pé no mundo e outro na tecnologia. BARBOSA, Bia; TRESCA, Laura; LASUCHNER, Tanara. 3ª Coletânea de Artigos: TIC, Governança da Internet, Gênero, Raça e Diversidade – Tendências e Desafios. 1ª ed. São Paulo: Comitê Gestor da Internet do Brasil, 2023. Pp. 12-22. https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/20230522143330/3-coletanea-artigos-tic-governanca-genero-raca-diversidade.pdf.

[21] DA SILVA, Alexandre Pacheco; CAMELO, Ana Paula; CANABARRO, Diego Rafael; WAGNER, Flávio Rech (orgs.). Estrutura e funcionamento da internet: aspectos técnicos, políticos e regulatórios. São Paulo (SP), Brasil: CEPI FGV Direito; ISOC Brasil, 2021. https://www.academia.edu/48266173/Curso_livre_Estrutura_e_funcionamento_da_Internet_aspectos_t%C3%A9cnicos_pol%C3%ADticos_e_regulat%C3%B3rios_2020_.

Autores

  • é pesquisador e professor no Centro de Ensino Unificado de Brasília (UniCEUB), mestre em Direito, Estado e Constituição (UnB), co-fundador do Instituto Beta: Internet & Democracia (organização integrante da Coalizão Direitos na Rede) e foi gestor do projeto de elaboração do Marco Civil da Internet no Ministério da Justiça.

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