Diário de Classe

Constrangimento epistemológico e a tipicidade da lavagem de dinheiro

Autor

  • Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos

    é advogado criminalista doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor.

22 de julho de 2023, 15h45

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal, no âmbito da Ação Penal n.º 470/MG – o caso “Mensalão” –, houve por reconhecer que ações que tem por propósito dissimular ou ocultar a origem ilícita de recursos advindos de corrupção passiva (art. 317, CP) estão inseridos em seu iter criminis e, por isso, não constituem atos autônomos de lavagem de dinheiro (art. 1.º, Lei n.º 9.613/1998)[1]. Veja-se que é algo elementar, inclusive porque na hipótese de uma corrupção passiva no verbo receber importaria admitir uma antitética consumação simultânea do crime contra a Administração Pública e da lavagem de capitais, uma vez que o primeiro, por ser delito material, somente se consuma quando se opera o resultado naturalístico da ação, é dizer, no recebimento da vantagem indevida.

Nada obstante, no curso da Operação Lava Jato, precisou o Superior Tribunal de Justiça, em decisão em embargos de declaração (!)[2], no ano de 2023, reafirmar a jurisprudência do Pretório Excelso assentada há mais de uma década. No leading case, o acusado teria recebido vantagem indevida por meio de transações financeiras em contas de empresas. Compreendeu-se, pelo voto divergente do Min. João Otávio de Noronha, que é elemento inerente – e até esperado – a prática de conduta que busque dissimular ou ocultar a origem dos recursos provenientes da prática delitiva, sendo, portanto, ação que conforma um exaurimento do crime antecedente, no caso, a corrupção passiva.

Por certo, dentre todas as ilegalidades cometidas no âmbito da operação sediada em Curitiba/PR, essa, vamos dizer assim, é quase que modesta, constituindo um excesso punitivo oriundo da discricionariedade do magistrado prolator da sentença e do tribunal que rediscutiu o mérito. Em alguma medida, esse excesso punitivo decorre, ao tempo, da ausência de um constrangimento epistemológico[3] e de uma técnica legislativa questionável, muito porque insere no caput do art. 1.º da Lei de Lavagem de Dinheiro a ocultação ou dissimulação dos ativos oriundos de infração penal como elementos que, por si só, tipificariam o delito; ao passo que, doutro lado, insere no parágrafo 1.º, inc. I, que também tipifica o delito aquele que converte o recurso ilícito em lícito. Isso, para a República de Curitiba, seria suficiente para interpretar o tipo penal em prejuízo do réu.

Tivesse sido operado, pela comunidade jurídica, um constrangimento epistemológico da decisão do então magistrado da 13. Vara Federal de Curitiba/PR, não teria sido necessário movimentar a máquina judiciária para reafirmar o que é óbvio: nem tudo é lavagem de dinheiro. A inadequada concepção de que a mera ocultação ou dissimulação do capital ilícito é suficiente para repressão penal conduz à compreensão de que toda denúncia por qualquer infração penal concretamente realizada deverá vir acompanhada com a imputação por lavagem de ativos, conquanto a ação desencadeada gere um resultado com algum tipo de proveito ao agente. Ou seja, nessa intelecção, o sujeito que, ocasionalmente, explora jogo de azar, obtém modesta rentabilidade e, após, adquire, com esse dinheiro, uma bicicleta, comete a lavagem de ativos. O agente praticou uma conduta vedada pelo ordenamento jurídico, cuja pena foi cominada pelo legislador em prisão simples de 03 meses a 01 ano. Muito distante dos 03 a 10 anos de reclusão estabelecidos pelo art. 1.º da Lei n.º 9.613/98. Além de antitético, é autoexplicativo.

Esse entendimento também dá azo à imputação de lavagem de dinheiro oriunda de sonegação fiscal (art. 1.º da Lei 8.137/90), que, aliás, é assente no Tribunal Regional Federal da 4. Região[4]. Do resultado do crime contra a ordem tributária, compreende-se que, se dele deriva um resultado, logo pode configurar o crime de branqueamento de capitais. Quer dizer, ignora-se que no âmbito normativo da sonegação fiscal, o elemento fraudulento configura requisito indissociável para a sua tipificação. Mais que isso: a Súmula Vinculante n.º 24, firmada a partir do HC n.º 81.611 do Supremo Tribunal Federal, perfilha que não há condição objetiva de punibilidade do crime contra a ordem tributária antes do lançamento definitivo do tributo, i.e. quando ocorre a sua exigibilidade e a confirmação da existência do crédito. Nessa linha, a compreensão conferida pelo Tribunal Regional Federal da 4. Região revela como admissível a imputação de lavagem de dinheiro por crime ainda não consumado e, logo, inexistente no plano jurídico.

Daí a importância da boa dogmática e da realização de constrangimentos epistemológicos. Em rigor técnico, a aludida expressão – cunhada por Lenio Streck – em verdade encampa uma relevante crítica: a doutrina possui a função de, evidentemente, doutrinar e constranger – republicanamente – o Poder Judiciário. Em essência, a doutrina vem antes e as decisões judiciais vêm depois. A compreensão doutrinária, em que pese a contradição semântica realizada pelo legislador, aduz que para a tipificação da lavagem de dinheiro é preciso que a conduta se amolde aos requisitos objetivos e subjetivos do tipo. E é no ponto do dolo a principal questão: o agente poderá ser responsabilizado criminalmente se somente ocultar ou dissimular o ativo ilícito, desde que existam elementos seguros que levem à conclusão de que, por meio dessa ação, visava a reintegrar o ativo ilícito na economia formal. Essa intepretação foi dada no AgR. No AREsp n.º 328.229/SP da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça[5] Perceba-se que essa interpretação, principalmente no que diz respeito à reintegração do capital ilícito, é o que caracteriza historicamente a lavagem de dinheiro desde quando a máfia italiana usava de uma rede de lavanderias para ocultar e dissimular a origem dos recursos criminosos provenientes da comercialização de bebidas alcóolicas nas primeiras décadas do Século XX durante a vigência da Lei Seca nos Estados Unidos.

A questão fática tratada no julgado da Corte da Cidadania destaca muito do que abordamos nos parágrafos antecedentes: a acusada havia recebido R$ 45,00 (quarenta e cinco reais) em sua conta bancária de dinheiro advindo do tráfico de entorpecentes. Com isso, o Ministério Público entendeu por bem denunciá-la pela ocultação, descurando dos aspectos típicos necessários à consumação do crime e excedendo, em muito, o seu poder-dever de acusar.

Por certo, esse tipo de decisão judicial que pune excessivamente e que ignora a história institucional do fenômeno jurídico, tal qual a proferida pela 13. Vara Federal de Curitiba/PR, é caudatária da Modernidade e da anacrônica concepção de que o juiz pode decidir com base em sua discricionariedade e com livre convencimento, como se não houvesse limite em seu poder de decidir. Dworkin, de há muito, asseverou que os juízes possuem responsabilidade política, negando, com isso, a ideia de discricionariedade judicial. O juiz, quando diante do caso concreto, deve buscar nos princípios a resposta correta para o caso que se lhe é apresentado. Não se ancora em juízos morais, em perspectivas pré-moldadas ou em decisões que precedem o fundamento[6]. Muito menos ainda em uma concepção de que é o Poder Judiciário o responsável por combater o crime, mesmo que com isso exceda a função que lhe é designada.

[1] “Embargos infringentes na AP 470. Lavagem de dinheiro. 1. Lavagem de valores oriundos de corrupção passiva praticada pelo próprio agente: 1.1. O recebimento de propina constitui o marco consumativo do delito de corrupção passiva, na forma objetiva "receber", sendo indiferente que seja praticada com elemento de dissimulação. 1.2. A autolavagem pressupõe a prática de atos de ocultação autônomos do produto do crime antecedente (já consumado), não verificados na hipótese. 1.3. Absolvição por atipicidade da conduta. 2. Lavagem de dinheiro oriundo de crimes contra a Administração Pública e o Sistema Financeiro Nacional. 2.1. A condenação pelo delito de lavagem de dinheiro depende da comprovação de que o acusado tinha ciência da origem ilícita dos valores. 2.2. Absolvição por falta de provas 3. Perda do objeto quanto à impugnação da perda automática do mandato parlamentar, tendo em vista a renúncia do embargante. 4. Embargos parcialmente conhecidos e, nessa extensão, acolhidos para absolver o embargante da imputação de lavagem de dinheiro”. APn n. 470/MG, relator Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 13/3/2014, DJe de 21/8/2014.

[2] EDcl no AgRg no REsp 1856938(2020/0004691-6 de 17/03/2023), relator para acórdão João Otávio Noronha, Quinta Turma, publicado 17/03/2023.

[3] Veja-se: “Observemos a relevância do estabelecimento de constrangimentos epistemológicos quando levamos em conta que, no âmbito do Direito, o Supremo Tribunal Federal tem a “última palavra” sobre as controvérsias sociais e a interpretação das leis e da Constituição. Por isso, elaborar constrangimentos epistemológicos equivale a realizar “censuras significativas”, no sentido de se poder distinguir, através da construção de uma crítica fundamentada, boas e más decisões (ou melhor: decisões constitucionalmente corretas das incorretas). Na verdade, para um jurista, tudo isso reforça a tese de que as “decisões de última instância” também podem — e devem — ser objeto de críticas, e não meramente acatadas a partir de um discurso de autoridade, exatamente porque, sob a perspectiva hermenêutica, há um comprometimento com a verdade. Trata-se de uma forma de se colocar em xeque decisões que se mostram equivocadas — no fundo, é um modo de dizermos que a doutrina deve (voltar a) doutrinar e não se colocar, simplesmente, na condição de caudatária e meramente reprodutora das decisões dos tribunais. Por isso, quando o então ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça, disse, em um acórdão, não se importar com “o que pensam os doutrinadores”, mas apenas o que dizem os Tribunais, afirmei, de forma peremptória, que o papel da doutrina é constranger esse tipo de pensamento solipsista, na medida em que importa, sim, o que a doutrina pensa”. STRECK, Lenio Luiz. O direito e o constrangimento epistemológico. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/direito-constrangimento-epistemologico-streck/ .

[4] “Até mesmo os crimes contra a ordem tributária, como apontados na inicial da persecução, podem constituir crime antecedente. Isso porque, por certo, gera um produto, qual seja, o montante que, por força da sonegação, deixou de ser recolhido aos cofres públicos. Aliás, essa a motivação e esse o fim pretendido pelo seu agente. Como qualquer outro crime que visa a um resultado econômico, a sonegação faz com que o seu agente disponha de um produto, de um resultado da atividade criminosa”. TRF4 5059843-80.2015.4.04.7000, OITAVA TURMA, Relator LEANDRO PAULSEN, juntado aos autos em 10/04/2017).

[5] “Ainda que a mera ocultação, identificada como a primeira fase do ciclo de lavagem de dinheiro, caracterize o crime descrito no art. 1° da Lei n. 9.613/1998, porquanto o tipo penal não exige, para a sua consumação, as demais etapas para dissimular e reinserir os ativos na economia formal, a conduta, para ser reconhecida como típica, deve estar acompanhada de um elemento subjetivo específico, qual seja, a finalidade de emprestar aparência de licitude aos valores ocultados, em preparação para as fases seguintes, denominadas dissimulação e reintegração”. AgRg no AREsp n. 328.229/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 15/12/2015, DJe de 2/2/2016.

[6] Veja-se: “Notem: ao invés de liberdade, de discricionariedade judicial, princípios. Essa seria a responsabilidade política do juiz: procurar, nos princípios que compõem o Direito como um todo, a melhor solução para o caso. Quer dizer, os princípios passam a ter força normativa — o Direito é um sistema de regras e princípios — e o juiz, portanto, o dever de aplicá-los corretamente. Assim, segundo Dworkin, haveria uma resposta correta para cada caso (the one right answer), e caberia ao juiz, interpretando princípios, o dever de encontrá-la”. MOTTA, Francisco José Borges. Ronald Dworkin e o sentido da vida. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-fev-16/diario-classe-ronald-dworkin-sentido-vida .

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