Opinião

O que é (e o que não é) a teoria do juízo aparentemente competente

Autores

21 de julho de 2023, 9h18

A jurisprudência é cada vez mais resistente em reconhecer nulidades em processos penais. Entretanto, por vezes, as coerentes teses fixadas pelos tribunais superiores são utilizadas como um "passe livre" para imacular vícios processuais. A teoria da aparência, ou teoria do juízo aparentemente competente, é um bom exemplo disso. Por isso o objetivo desse texto: sustentar o que deve e o que não deve ser contemplado por essa teoria.

O que ocorre se, no âmbito de um inquérito, após a realização de buscas ou de interceptações telefônicas (medidas que demandam autorização judicial específica), são descobertos elementos que alteram o objeto da investigação de forma a deslocar a competência? Por exemplo, descobre-se que os crimes causaram prejuízo à União, o que atrai a competência da Justiça Federal, ou que há participação de pessoa com prerrogativa de foro especial. Nesses casos, os elementos colhidos até então são nulos ou podem ser aproveitados?

Sobre o tema, a jurisprudência entende que as provas podem ser convalidadas quando os elementos que atestam a incompetência são fatos novos [1]. Aqui não se tem nada mais do que o bom senso: se à época da medida que demanda autorização especial os elementos existentes naquele momento indicavam que o juízo tinha atribuição para decidir, a superveniência de elementos que deslocam a competência não ensejará a nulidade dos atos praticados. Isso porque, o primeiro juízo era aparentemente competente quando da sua atuação. Daí se tem o nome da teoria.

Sobre o tema, indispensável a análise do inteiro teor do acórdão do HC 81.260 [2], em que o STF analisou a questão. O saudoso Ministro Sepúlveda Pertence apontou didaticamente que, antes de existir uma denúncia com a delimitação fática, a competência é definida pelo fato suspeitado, ou seja, pelo objeto do inquérito. Se o juiz competente a partir deste entendimento defere uma cautelar investigativa e, posteriormente, a suspeita inicial se desfaz, dando lugar a outra, que altera a competência, trata-se de uma incompetência superveniente. Assim, não há nulidade, pois o primeiro juízo era competente à época.

O ministro Néri da Silveira também merece menção, pois em seu voto pensa em outra possibilidade: quando os elementos dos quais se extrai a incompetência existem desde o princípio das investigações. Nesse caso, não há um deslocamento da competência, mas uma "incompetência ab initio", razão pela qual não é possível convalidar as provas produzidas [3].

Tal entendimento, fixado pelo STF há mais de vinte anos, ainda prevalece. Pode-se mencionar o HC 108.496, no qual a 2ª Turma do STF reforçou que a competência pré-processual é definida pelo fato suspeitado à época, fazendo citação à mesma doutrina de Luiz Flávio Gomes que é citada pelo ministro Sepúlveda Pertence no HC 81.260, doze anos antes [4].

A 6ª Turma do STJ, no HC 532.838, também expressou o mesmo entendimento, afastando a teoria porque "no momento da decretação da quebra de sigilo […] já se poderia atrair a competência da Justiça Militar" [5]. Por fim, a 5ª Turma do STJ, em habeas corpus impetrado pelos autores deste texto, também rejeitou a teoria, argumentando que "não há se falar […] em descoberta superveniente de elementos que atraem a competência da Justiça Federal" [6].

A partir disso, podemos refletir sobre quando a teoria da aparência não deve ser aplicada. Se o juiz, ao analisar os autos, não percebe a existência de elementos que denotam a sua incompetência, aplica-se a teoria? Não. Se há um entendimento jurídico equivocado que depois é corrigido, com o deslocamento da incompetência, é possível falar em aparência de competência? Não.

A despeito do que o nome da teoria possa denotar, ela não se aplica à circunstância de o juízo agir acreditando ser competente por descuido ou por erro, porque à primeira vista, sem uma análise acurada, ele "parecia" ser competente. Até porque imacular erros seria inaceitável e não há como avaliar a convicção do juiz ao proferir a decisão.

Como já exposto, a teoria não serve para aproveitar decisões decorrentes de erro. Ao contrário, preserva justamente as decisões que, naquele momento, a partir das premissas fáticas existentes à época, eram acertadas. O ponto fulcral é: a incompetência podia ser vislumbrada desde o início das investigações ou é decorrente de elementos supervenientes? A pergunta não se relaciona, de maneira nenhuma, com a qualidade da análise dos autos ou a razoabilidade do entendimento jurídicos do juízo incompetente.

Agora, reflitamos sobre um exemplo recorrente em que teoria é indevidamente aplicada: realiza-se buscas e, no dia seguinte, a defesa tem acesso aos autos, identifica a incompetência e impetra Habeas Corpus. Na sequência, o Habeas Corpus é concedido, todavia, apenas para reconhecer a incompetência, aplicando-se a teoria da aparência para afastar a nulidade. Por fim, o juízo competente recebe os autos e convalida as provas.

Todavia, até então, nem mesmo os autos de apreensão foram juntados ao processo, inexistindo qualquer elemento posterior às buscas. Ou seja, o que o Tribunal analisou para constatar a incompetência se limitou àquilo que o juízo incompetente analisou quando deferiu as buscas. Assim, o que justifica a aplicação da teoria da aparência, que somente se aplica quando a incompetência é decorrente de fatos novos, supervenientes? Não sabemos, mas não faltam exemplos reais disso.

Assim, é importante se atentar para o que é e o que não é a teoria da aparência, para que ela não seja indevidamente utilizada para convalidar investigações indistintamente, em hipóteses em que não deveria ser aplicada.

 


[1] "Quando o magistrado de 1º grau autorizou a quebra do sigilo bancário e fiscal das pessoas físicas e jurídicas investigadas, ainda não havia qualquer indício da participação ativa e concreta de agente político ou autoridade detentora de prerrogativa de foro nos fatos sob investigação. Fatos novos, posteriores àquela primeira decisão, levaram o magistrado a declinar de sua competência e remeter os autos ao Supremo Tribunal Federal. Recebidos os autos, no Supremo Tribunal Federal, o então Presidente da Corte, no período de férias, reconheceu a competência do Supremo Tribunal Federal e ratificou as decisões judiciais prolatadas pelo magistrado de primeiro grau nas medidas cautelares de busca e apreensão e afastamento do sigilo bancário distribuídas por dependência ao inquérito. Rejeitada a preliminar de nulidade das decisões proferidas pelo juiz de 1ª. Instância" (Inq nº 2.245, rel min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJe 09/11/2007).

[2] HC 81.260, relator ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 19/04/2002, inteiro teor, p. 19-20.

[3] Nas palavras do ministro Néri da Silveira: "Assim, numa situação como essa, temos que distinguir: a autorização para escuta telefônica há de resultar de um Juiz competente para a ação principal; agora, se a incompetência para essa ação era ab initio, não há dúvida de que a autorização é inválida e há de ser declarada nula; mas, se ela somente se definiu posteriormente, não poderíamos deixar de reconhecer uma aparente competência do Juiz quando houve o pedido de autorização telefônica" (HC 81.260, relator ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 19/04/2002, inteiro teor, p. 30-31).

[4] "Nessa linha, ensina, dentre outros, Luiz Flávio Gomes que, se a autorização tiver sido deferida por juiz aparentemente competente e despois se verificar não ser, '[d]eve-se aplicar, desde logo, a regra rebus sic standibus' (GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl. Interceptação telefônica: lei 9.296, de 24.07.96. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 158)". (HC 108.496, relatora ministra Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 10/03/2014).

[5] HC nº 532.838/RJ, relator ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe 26/02/2021.

[6] RHC nº 130.197/DF, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, REPDJe 12/11/2020, DJe 03/11/2020.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!