Opinião

Proposta de solução para óbice processual em audiências preliminares do Jecrim

Autor

  • Paulo Roberto Santos Romero

    é promotor de Justiça titular do Jecrim de Belo Horizonte (MG) mestre e doutorando em Direito Penal Contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais ex-conselheiro do Conselho de Criminologia e de Política Criminal da Secretaria de Estado de Defesa Social do Estado de Minas Gerais.

20 de julho de 2023, 7h01

Situação comum nas audiências preliminares dos Juizados Especiais Criminais (Jecrim) diz respeito à ausência do ofendido (e/ou de seu representante legal) para elas intimado e que, anteriormente, houvera representado contra o autor do fato, na delegacia de polícia, quando da lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). A doutrina e a jurisprudência vacilam sobre a solução dessa circunstância processual, dado gerador de insegurança jurídica feita de contínuo casuísmo e de irresolvidas divergências práticas entre os operadores do Direito.

Havendo apenas o compromisso de comparecimento à audiência preliminar, tomado nos termos do artigo 69, parágrafo único, da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, a intimação de qualquer dos envolvidos ausentes ao referido ato será obrigatória, nos termos do artigo 71 da mesma lei. No entanto, o problema enunciado é outro e decorre da ausência da vítima regularmente intimada à audiência preliminar concernente aos crimes de ação penal pública condicionada à representação.

A dificuldade gerada nesses casos não ocorre em audiências de infrações penais cuja ação penal é pública incondicionada, pois, nelas, o interesse ou não da vítima em processar o autor dos fatos é processualmente irrelevante. Da mesma forma, o entrave inexiste no processamento de crimes de ação penal privada, porquanto, neles, a falta de comparecimento injustificado da vítima ao ato processual redunda em perempção extintiva de punibilidade (vide artigo 60, inciso III do CPP c.c. artigo 107, inciso IV, última figura, do CP).

Despontam à resolução do óbice processual apresentado as seguintes propostas: a) a extrema pro reo aceita a ausência da vítima como desinteresse no processamento do feito e, pela renúncia tácita, pretende a imediata extinção de punibilidade, com base nos artigos 72 e 74 da legislação de regência; b) a sugestão contraposta, radical pro societate, avalia a ausência da vítima como desinteresse à composição civil e seu não-comparecimento à audiência preliminar em nada interfere no prosseguimento penal do feito: tácita, portanto, seria a renúncia ao entendimento indenizatório. Os que patrocinam esse ponto de vista argumentam que a representação vale per se, jamais em função do lugar em que foi ofertada.

Com isso, ausente — a princípio, injustificadamente — a vítima intimada à audiência preliminar, ao órgão ministerial restaria examinar os pressupostos e as condições à transação penal, nos termos do artigo 76 da Lei nº 9.099/1995, ou, desde que não requeresse diligência complementar, deveria ofertar a denúncia (oralmente, de preferência, ou se inviável, após vista a lhe ser deferida, consoante disposto no artigo 77 da mesma lei).

O ponto está em que o artigo 75 da citada legislação especial estabelece que "não obtida a composição dos danos civis, será dada imediatamente ao ofendido a oportunidade de exercer o direito de representação verbal, que será reduzida a termo". Dois marcos processuais relevantes, portanto, erigem-se desde a garantia constitucional do devido processo legal [1]: o que identifica a composição civil como componente do rito especial da persecutio in juditio afeta ao Jecrim; e o que impõe a necessidade de ratificação, em Juízo, da representação do ofendido de crime de ação penal pública condicionada.

Todavia, o parágrafo único daquele mesmo dispositivo também dita que "o não oferecimento da representação na audiência preliminar não implica decadência do direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei". Com isso, a própria lei dá margem ao entendimento de que tanto faz se a vítima deve ou não ratificar sua anterior representação em sede judicial, pois mesmo que isso não se dê, a sua vontade de processamento do feito permanece intacta e, bem por isso, deve ser considerada.

Em um primeiro lance de olhar, o que se tem é que a literalidade das normas acima transcritas parece contraditória. Mas não; o que se tem, na espécie, é um autêntico conflito aparente de normas processuais penais. A conciliação entre as citadas normas processuais em ilusória desordem há de operar da seguinte forma: a representação da vítima, ofertada na delegacia de polícia, interrompe o prazo decadencial e, deste modo, pouco importa se a primeira audiência preliminar será ou não realizada no referido interstício. Calha, pois, voltar à questão: e se a vítima que, na delegacia de polícia, já houvera representado contra o autor do fato, conquanto intimada à primeira audiência preliminar, nela não comparecer?

Bifurcam-se os caminhos à resolução do problema: a) o primeiro toma a audiência preliminar realizada antes de expirado o prazo decadencial (neste caso, o parágrafo único do artigo 75 da Lei nº 9.099/1995 dá a solução a ser respeitada); b) o segundo considera a audiência preliminar instalada após o transcurso do interregno decadencial e desde que não se pretenda adotar a controvérsia referente à imediata extinção da punibilidade ou ao pronto seguimento do feito, tal como acima exposto. Como proceder nesta última hipótese, na qual se situa, precisamente, o problema inicialmente lançado? Mais uma vez, conquanto sejam ambos intermediários àquela controvérsia, dois entendimentos excludentes entre si se apresentam.

O primeiro entendimento informa ser necessário intimar a vítima para dizer se insiste ou não no prosseguimento do feito. Essa postura processual, muito embora prudente, não soa harmônica com o critério da celeridade devido no âmbito do Jecrim.

Outro entendimento, que nos parece mais adequado ao funcionamento do Jecrim, é este: desde que a vítima não compareça à audiência preliminar, regularmente intimada para tanto, o caso é de se aguardar, por prazo razoável e anteriormente à adoção de qualquer medida processual (seja pro reo seja pro societate), por uma eventual justificativa, formalmente declarada por ela, quanto à sua citada falta [2]. Dessa perspectiva, o efetivo respeito ao devido processo penal desponta, pois a abertura da possibilidade de composição civil é etapa imprescindível à íntegra do rito especial do Jecrim e que, bem por isso, não pode ser simplesmente dispensada unilateralmente por um dos envolvidos no fato trazido à resolução judicial, sobretudo quando essa postura se concretiza em desfavor do princípio da liberdade [3]. Ao autor do fato deve ser garantida a possibilidade de percorrer todo o rito da Lei nº 9.099/1995, porquanto a composição civil também é instituto despenalizador, da essência do Jecrim (cf. artigos 62, 74 e seu parágrafo único, todos da Lei nº 9.099/1995). Se a vítima aceitará ou não a composição civil, isso é outro problema. Ela, de todo modo, deve oportunizar ao autor do fato o acesso à composição civil, sob pena de não lhe ser disponibilizado, no todo exigível, a própria audiência preliminar.

O caminho ora sugerido à solução dos óbices processuais surgidos nas audiências preliminares concernentes a infrações penais de ação pública condicionada à representação, portanto, não deixa de ser um expediente mediador às propostas extremas acima apresentadas [4]. Obediente aos critérios da celeridade e da economia processual [5], apenas exige que se conste na ata da audiência preliminar frustrada pela ausência da vítima intimada o seguinte: se ela não comparecer, na Secretaria do Jecrim, no prazo de 30 dias (ou outro que o Juízo entender razoável), para justificar a sua ausência (v.g., internação hospitalar dela própria ou de pessoa próxima, problemas pessoais significativos, presença simultânea em outra audiência em que outros interesses mais relevantes estavam sub judice, vigência de prisão etc.), aí sim, passado o referido prazo, automaticamente, estará extinta a punibilidade, pela renúncia tácita exercitada. A via ora sugerida, que tem o diferencial de considerar o fator "tempo", bem resolve o problema: de fato e de jure, é razoável a concessão de um prazo à interposição de uma eventual justificativa pela ausência ao ato judicial, uma vez que ela operará efeitos extintivos de punibilidade. Esse prazo se inspira, por isso mesmo e conforme o caso (30 ou 60 dias), naqueles mesmos já consagrados pelo legislador processual penal clássico às hipóteses de perempção, nas ações penais privadas (cf. artigo 60, incisos I e II, do CPP) [6].

A mesma solução pode ser encampada para as audiências realizadas no curso do período decadencial. O feito deve permanecer arquivado provisoriamente — na forma do artigo 75, parágrafo único, da Lei nº 9.099/1995 — até o esgotamento do referido interstício fatal. Depois, passados 30 dias (ou outro prazo que o juízo entender razoável, conforme explicitado anteriormente), desde que a vítima não compareça na Secretaria do Jecrim para dizer expressamente que quer o prosseguimento do feito (ratificando, assim, a representação lançada na delegacia de polícia), extingue-se a punibilidade, por força da renúncia tácita, finalmente consumada. Em contrapartida, a ratificação da mencionada representação deve redundar em designação de audiência preliminar, com a intimação de todos os envolvidos.

Cabe assinalar, em arremate, que ausente, por qualquer motivo, o autor do fato à audiência preliminar, verificada também a falta, a princípio injustificada, do ofendido intimado ao mesmo ato, ainda assim dispensável será a sua redesignação, em face da solução ora apresentada: na prática do Jecrim ela tem se mostrado tanto segura pro societate quanto eficiente ao resguardo dos direitos e garantias fundamentais concernentes ao autor do fato.

 


[1] Prevista no art. 5º, inc. LIV, da vigente Constituição da República Federativa do Brasil (CF/1988).

[2] Seja por petição apresentada nos autos, de próprio punho ou por meio de advogado, ou por comparecimento à Secretaria do juízo, a ser formalizado mediante formulários que possam lhe ser disponibilizados, ou ainda mediante comparecimento ao Ministério Público, que lhe tomará termo e o interporá, a tempo e modo, no respectivo TCO.

[3] No Estado Democrático de Direito a liberdade é a regra. Toda e qualquer restrição à liberdade — inserida entre os direitos e garantias fundamentais, nos termos do Preâmbulo da CF/1988, bem como de seu art. 5º, caput e incs. LIV, LXI, LXV, LXVI e LXVIII — deve ser expressamente prevista in abstrato e fundamentadamente imposta in concreto, observadas todos os princípios e as regras inerentes à magna cláusula do devido processo legal.

[4] A proposição processual ora evidenciada leva em conta, portanto, o próprio espírito do Jecrim, tomando-o mesmo como um ambiente de Justiça negocial: nela, o quanto for juridicamente possível, deve-se evitar soluções excessivas pro reo ou pro societate.

[5] Insculpidos, ambos, nos arts. 2º e 62 da Lei nº 9.099/1995.

[6] Soa proporcional que a ausência ao ato judicial não implique na imediata extinção da punibilidade do crime de ação penal pública condicionada, equiparando-o ao crime de ação penal privada, pois, se assim fosse, estar-se-ia propondo, a rigor, pela via do ativismo judicial, outra hipótese de perempção (art. 60, inc. III, do CPP), que também alcançaria infrações penais mais graves, do ponto de vista da sua condição de procedibilidade.

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, titular da 8ª Promotoria de Justiça da Comarca de Belo Horizonte com atribuições perante os Juizados Especiais Criminais da mesma capital, mestre e doutorando em Direito Penal Contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais e ex-membro titular do Conselho de Criminologia e Política Criminal da Secretaria de Estado e Defesa Social do Estado de Minas Gerais.

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