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A reforma tributária precisa ser aprimorada pelo Senado

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19 de julho de 2023, 8h00

A aprovação-relâmpago da reforma tributária na Câmara dos Deputados só se explica pela ocorrência de uma raríssima combinação simultânea de três fatores: econômico, jurídico e político, condições sine qua non para concretizar tão ambicioso e disruptivo projeto de remodelação do sistema de tributação do consumo atualmente em vigor.

No plano econômico, há tempos existe consenso quanto à ineficiência do sistema atual, apenas parcialmente não-cumulativo, oneroso e complexo, governado por uma miríade de normas federais, estaduais e municipais, instáveis e inseguras, interpretadas sem coordenação e sempre com um viés arrecadatório, provocando um estado permanente de litigiosidade entre fiscos e contribuintes.

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No plano jurídico, as propostas de emenda constitucional (PEC 45 e PEC 110) já vinham sendo debatidas em diversos fóruns faz alguns anos e, muito embora não tenha havido consenso doutrinário quanto a algumas questões, especialmente a sua adequação ao pacto federativo, cláusula pétrea da Constituição de 1988, sempre houve inegável consenso quanto à obsolescência do sistema anterior e a necessidade de sua modernização e aprimoramento.

No plano político, foi o "alinhamento" de forças, resultante dos acordos alcançados pelos principais atores da cena política atual — Arthur Lira, presidente da Câmara, Fernando Haddad, ministro da fazenda, e Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo —, que deu "luz verde" para levar o projeto à votação plenária com a certeza da sua aprovação.

Mas não bastaria a combinação dos três fatores, não fosse a aprovação da reforma um desejo muito bem incutido na sociedade. Com a opinião pública favorável, mesmo desconhecendo o texto final do projeto, engendrado nos bastidores do Congresso, sob a forma de emenda aglutinativa de plenário, a ampla maioria dos deputados não titubeou em aprovar a emenda em dois turnos.

Agora inicia-se uma nova etapa, não menos importante, mas fundamental.

Com efeito, caberá, doravante, ao Senado assumir o protagonismo e, com a experiência e lucidez que se espera da casa revisora, chegar a uma união propositiva de aprimoramentos técnico-jurídicos em um ambiente de debate mais reflexivo e menos açodado.

E como fazer isso? Quais são os aperfeiçoamentos e correções de rumos sugeridas?

Longe de querer esgotar o tema e cansar o leitor, indicamos alguns pontos que se nos afiguram merecer uma revisão cuidadosa do Senado.

Em primeiro lugar, embora tenha havido certa evolução na redação do dispositivo, que passou a consagrar expressamente a não-cumulatividade como corolário do princípio da neutralidade, o certo é que o texto ainda deixa margens para o estabelecimento, por lei complementar, de restrições ao creditamento nas aquisições de bens, materiais ou imateriais, inclusive direitos ou serviços, pois segue permitindo ressalvar as aquisições consideradas de uso ou consumo pessoal.

Ora, deixar novamente ao livre alvedrio do legislador complementar o poder de estabelecer restrições à compensação de créditos nas aquisições para uso e consumo pessoal das empresas é simplesmente manter a atual sistemática proibitiva que tem sido indefinidamente prorrogada por sucessivas leis complementares. Atualmente a proibição estende-se até 2033, o ano seguintes à extinção do ICMS. Ou seja, tais créditos jamais serão tomados.

Além da inexistência de uma garantia constitucional de não-cumulatividade irrestrita, o projeto permite que a lei complementar condicione o direito de creditamento ao efetivo pagamento do tributo na cadeia anterior, não bastando o seu mero destaque. Trata-se de uma condição que não existe no direito comparado e, mesmo com a ressalva de aplicação restrita aos casos de ser viável o recolhimento do tributo pelo próprio adquirente (split payment), poderá dar margens à imposição de restrições e limites ao creditamento, geradores de mais dúvidas e insegurança aos investidores.

Acresce que a emenda aglutinativa deu ao legislador complementar carta branca para regular a forma e o prazo da restituição ao contribuinte dos créditos acumulados, deixando tal direito — um dos pilares básicos de um tributo do tipo IVA — sujeito a exigências de chancelas e do estabelecimento de prazos sempre prorrogáveis, em gravíssimo prejuízo ao setor produtivo.

Ainda no plano da tributação de mercadorias, se nos afigura uma deturpação absurda, um gravíssimo retrocesso, a ressurreição da tributação de produtos primários e semielaborados pelos Estados estabelecida no artigo 20 da emenda aglutinativa. De volta para o passado, de volta aos tempos do Convênio ICMS 66/88, que tributava as exportações de produtos dessa natureza[1] e trazia uma definição tão ampla que causou incontáveis litígios fiscais.

Já no domínio da tributação dos serviços a reforma ampliou o espectro de incidência, passando a conferir embasamento constitucional para que possa alcançar todas as operações envolvendo o consumo de bens imateriais. Porém, houve uma desmedida, desequilibrada e injustificada exoneração, pela previsão de regras especiais de creditamento e alíquotas reduzidas, para certos setores, como é o caso dos serviços de hotelaria, parques de diversão, parques temáticos, concursos de prognósticos, entre outras exceções.

Não se atentou, porém, para o significativo acréscimo de carga tributária dos serviços profissionais, de contadores, advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, dentistas etc. que, além de não envolverem dispêndios geradores de créditos, não se integram em uma cadeia produtiva, destinando-se na maioria das vezes a um consumidor final pessoa física. Nesses casos, o prestador de serviços se verá onerado de forma brutal, sacrificando os prestadores e os tomadores e inflacionando o mercado.

Essas são apenas algumas breves e pontuais reflexões sobre aperfeiçoamentos que podem ser feitos ao texto pelos senadores, especialmente a introdução de limites à liberdade de ação do legislador complementar e o ajuste quanto à tributação de certos serviços.

Somente assim o Parlamento poderá realmente se vangloriar de ter entregado à sociedade uma reforma tributária do consumo verdadeiramente libertadora das amarras que cerceiam o crescimento do setor produtivo.

 


[1] 1º Para efeito do inciso I, semielaborado é:
I – o produto de qualquer origem que, submetido a industrialização, se possa constituir em insumo agropecuário ou industrial ou dependa, para consumo, de complemento de industrialização, acabamento, beneficiamento, transformação e aperfeiçoamento;
II – o produto resultante dos seguintes processos, ainda que submetidos a qualquer forma de acondicionamento ou embalagem:
a) abate de animais, salga e secagem de produtos de origem animal;
b) abate de árvores e desbastamento, descascamento, esquadriamento, desdobramento, serragem de toras e carvoejamento;
c) desfibramento, descaroçamento, descascamento, lavagem, secagem, desidratação, esterilização, prensagem, polimento ou qualquer outro processo de beneficiamento, de produtos extrativos e agropecuários;
d) fragmentação, pulverização, lapidação, classificação, concentração (inclusive por separação magnética e flotação), homogeneização, desaguamento (inclusive secagem, desidratação e filtragem), levigação, aglomeração realizada por briquetagem, nodulação, sinterização, calcinação, pelotização e serragem para desdobramento de blocos, de substâncias minerais, bem como demais processos, ainda que exijam, adição de outras substâncias;
e) resfriamento e congelamento.

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