Opinião

Discurso da neutralidade racial e da gravidade das drogas no sistema de Justiça

Autor

  • Rafael Ferreira de Albuquerque Costa

    é advogado especialista em Direito Criminal pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Rio de Janeiro.

18 de julho de 2023, 11h16

Em 26 de outubro de 2021, a Defensoria Pública de São Paulo impetrou o Habeas Corpus nº 208.240 na Corte Constitucional brasileira, cujo objeto, dentre outros, é a prática de perfilamento racial e o racismo estrutural na polícia brasileira. Independentemente do mérito do writ no caso concreto, a discussão em abstrato merece muita atenção do Supremo Tribunal Federal.

Em resumo, a hipótese fática encarta um indivíduo negro que estava em pé perto de um veículo automotor. Segundo a impetração, os próprios policiais admitiram em sede policial que a "fundada suspeita" para a realização da busca pessoal foi primordialmente a cor da pele. Na abordagem, foi encontrado 1,53 gramas de droga. Esse indivíduo foi condenado a mais de sete anos de prisão em regime fechado, com a confirmação da condenação pelo tribunal [1].

Em função desse cenário, foi impetrado HC no STJ (Superior Tribunal de Justiça), cujo julgamento colegiado, a despeito do reconhecimento do perfilamento racial pelo ministro relator, concedeu parcialmente a ordem para readequar a pena e o regime fixado. Vale a transcrição de trecho da ementa:

"A cor da pele do paciente foi o que, considerando o depoimento dos policiais responsáveis pelo flagrante, despertou a suspeita que justificou a busca pessoal no paciente. Ainda que não tenha sido somente a cor da pele, mas, sim, todo o contexto, como estar o indivíduo ao lado de veículo, em atitude de mercancia, em área de tráfico, pela experiência dos policiais, a meu ver, a cor da pele foi o fator que primeiramente despertou a atenção do agente de segurança pública, o que não pode ser admitido (…) Não se pode ter como elemento ensejador da fundada suspeita a convicção do agente policial despertada a partir da cor da pele, como descrito no Auto de Prisão em Flagrante constante dos autos, sob o risco de ratificação de condutas tirânicas violadoras de direitos e garantias individuais, a configurar tanto o abuso de poder, quanto o racismo." [2]

Nos autos do HC no STF, o Ministério Público Federal deu parecer pela denegação da ordem, afirmando quanto à alegação de perfilamento racial que a prática não existiu no caso e que a busca pessoal decorreu de fundados indícios da prática de crime, com o cínico registro de que "[A] referência à cor da pele se deu no contexto de descrever o aspecto físico do autor da conduta sob apuração" sem qualquer sugestão de racismo no caso.

Na sessão de julgamento de 1º de março de 2023, a vice-procuradora-geral da República endossou o parecer apresentado pelo parquet, registrando em sua sustentação oral que "as Nações Unidas realizaram uma série de debates sobre o impacto do perfilamento racial e do acesso à justiça no Brasil". Problemas de políticas públicas e de sociologia também que não é o nosso caso." Mais adiante acrescentou que "o racismo é uma coisa, como nós ouvimos, que existe. Não temos como não dizer que não existe". "Existe. Existe assim como nós vemos em outros países. Como o Senhor Ministro citou, os Estados Unidos. (…) Mas não podemos esquecer que a droga é a droga, que existe em todos e que ela é prejudicial em qualquer lugar. Não é porque a pessoa é de cor preta ou é de cor branca que ela deverá ser isenta por isso." [3]

Muito apropriada a menção aos Estados Unidos, que já apresenta uma população carcerária de mais de dois milhões de pessoas e cuja maioria é de pessoas negras. A decisão do STJ e a manifestação do MPF demonstram como existe um discurso de neutralidade racial gera nas instituições um absoluto daltonismo com relação à cor da pele.

Mas, afinal, como a criminalização das drogas pode funcionar de maneira tão discriminatória se pouquíssimas pessoas estariam dispostas a explicitamente adotar uma postura racista, ainda mais institucionalmente? A autora do livro A Nova Segregação: Racismo e Encarceramento em Massa nos explica.

A Suprema Corte estadunidense possui diversas decisões em que conferem à polícia grande discricionariedade, em especial na guerra às drogas. É como se a Quarta Emenda, cujo conteúdo fornece aos cidadãos proteção contra buscas desarrazoadas, possuísse uma exceção implícita com relação às drogas [4]. Historicamente, a Suprema Corte estadunidense sempre fora bastante rigorosa acerca das buscas autorizadas pela Quarta Emenda, escrutinando minuciosamente a "causa provável" casuisticamente. Os ventos começaram a mudar em 1968, no caso Terry vs. Ohio, no qual restou decidido que basta a "suspeita razoável" de que alguém está envolvido em atividades criminosas e perigosas [5]. Eis aqui o paralelo com a "fundada suspeita" do direito brasileiro.

Houve a divergência de um justice. O justice Douglas afirmou que "conceder à polícia um poder maior do que o de um magistrado é dar um longo passo em direção ao totalitarismo" [6]. Veja-se, portanto, onde estava o ovo da serpente do grande encarceramento e como o Código de Processo Penal brasileiro é autoritário. Contudo, a voz desse justice não ressoou, havendo comentaristas que defenderam a razoabilidade de buscas feitas diretamente pela polícia, sem a ordem de um juiz.

A porteira foi totalmente aberta pela Suprema Corte no caso Flórida vs. Bostick, em que ele viajava num ônibus com meio quilo de cocaína na mochila. Mesmo sem "suspeita razoável" a polícia o abordou, sem lhe informar que não era obrigado a cooperar, encontrando a droga. A Suprema Corte decidiu que uma "pessoa razoável", talvez a versão yankee do homem médio, teria se sentido livre para se recusar a colaborar com a autoridade, de modo que ele não poderia ser considerado detido nos termos da Quarta Emenda [7].

O espaço não permite, mas há também diversos precedentes da Suprema Corte dos EUA que permitem que a acusação se valha de critérios raciais desde que se possa justificar por qualquer outro meio, bem assim que admitem a alegação de violação à 14ª Emenda somente em casos em que for explícita a discriminação racial. Dito francamente, o Judiciário estadunidense fechou os olhos para alegações de racismo e abriu aos negros as portas do sistema de justiça criminal.

Nesse sentido, o julgamento do Habeas Corpus nº 208.240 é um ponto de inflexão para a jurisprudência brasileira e para a gestão de nossa população carcerária, que já é a terceira maior do mundo com mais de 800 mil pessoas [8].

De há muito somos uma sociedade de massas com apelos participativos e democráticos. Entretanto, insistimos nos ranços das ideias positivistas que apelam ao chicote da ética do trabalho capitalista e ao arsenal racista típico do cientificismo perigosista do final do século 19 e início do 20 [9]. O simples fato de que uma pessoa portando míseros 1,53 gramas de droga teve de se socorrer da mais alta corte do país já é indicativo suficiente de um Judiciário daltônico e imerso no pensamento organicista-funcional.

Ademais, preterimos o fato de que o processo, a Justiça, sobretudo a penal, sempre foi utilizada para introduzir contradições no seio do povo, no contexto de um Estado burguês elitista para quem é extremamente conveniente a tripartição estanque de poderes com a interdição do Judiciário ao controle do legislativo, mas apenas funcionando mero aplicador [10]. É hora de por a agência judicial em contradição com o sistema penal, tencionando garantias constitucionais com a realidade operativa de extrema injustiça distributiva, retirando-a de seu serviço [11].

Diante do paralelo evidente entre o curso da jurisprudência estadunidense e o da nossa, está nas mãos do Judiciário brasileiro o freio necessário ao grande encarceramento, sobretudo em um momento em que os tribunais superiores têm se mostrado sensíveis no que diz respeito aos abusos praticados no curso da persecução penal, com destaque para o reconhecimento de pessoas, os abusos nas buscas pessoais e os escândalos judiciais da "lava jato".

 


[1] SÃO PAULO. Defensoria Pública. Inicial do Habeas Corpus nº 208.240 ao Supremo Tribunal Federal. São Paulo, 26 out. 2021.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 208.240. Decisão monocrática. Ministro Edson Fachin. Brasília, 17 dez. 2021.

[3] STF. Pleno  Bloco 2  Validade de prova obtida em busca pessoal baseada na cor da pele – 1/3/23. Youtube, 01 mar. 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0ydHeb9SjtI. Acesso em 11 jul. 2023.

[4] ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: Racismos e encarceramento em massa. Trad. Pedro Davoglio. Rev. Silvio Luiz de Almeida. 1ª ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018, p. 111.

[5] Op. Cit. pp. 113 e 114.

[6] Op. Cit. p. 114.

[7] Op. Cit. p. 114.

[8] LAGRECA, Amanda; BARROS, Betina e SENNES, Iara. As 820 mil vidas sob a tutela do Estado. In Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022.

[9] ZANATTA. Loris. Uma breve história da América Latina. Trad. Euclides Luiz Calloni. 1ª ed. São Paulo: Cultrix, 2017, pg. 88

[10] CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo como ponto de encontro original. 1ª ed. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2022, p. 109.

[11] ZAFFARONI, Eugenio R. Em busca das penas perdidas: A perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 219.

Autores

  • é criminalista, pós-graduando em Direito Criminal Contemporâneo pela FGV-Rio. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Membro do Grupo de Estudos Avançados de Direito Penal Econômico do IBCCrim em Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Subseção da OAB-RJ da Barra da Tijuca.

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