O modelo perverso da urbanização brasileira
16 de julho de 2023, 9h19
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anunciou recentemente os primeiros resultados do Censo de 2022, confirmando alguns processos e tendências já conhecidos, mas também trazendo algumas novidades. São dados que, quando combinados, colocam uma série de questões sobre a natureza e os rumos do processo de urbanização no Brasil, apontando desde já alguns grandes desafios que o país precisa enfrentar com urgência.
Dentre as novidades, o fato de que em termos demográficos o Brasil cresceu menos do que o esperado na última década, com uma taxa de crescimento anual de apenas 0,52%, tendo uma população de 203.062.512 pessoas — ao invés de 213 milhões como tinha sido amplamente antecipado. Houve um aumento de 6,5% frente ao Censo demográfico anterior, realizado em 2010, o que representa um acréscimo de 12,3 milhões de pessoas no período. Trata-se da menor taxa de crescimento anual da população desde o primeiro Censo do Brasil, em 1872.
Não mais o "País do Futuro", a sociedade brasileira está passando por um processo significativo de envelhecimento: o país tem hoje cerca de 33 milhões de pessoas idosas e a projeção é de que um terço da população brasileira terá mais de 60 anos já em 2060, indicando assim sérias dificuldades para a economia nacional, assim como a necessidade de adoção imediata de um conjunto articulado de políticas públicas que enfrentem o fenômeno. Em 2020, quase 70% dos idosos viviam com renda mensal de até dois salários-mínimos. Por um lado, boa parte desse grupo estava em situação vulnerável e suscetível a violência física e a golpes diversos, além de vivenciar situações de isolamento, abandono, discriminação, más condições de saúde e desrespeito aos seus desejos. Por outro lado, a superdependência das pensões e aposentadorias dos idosos, especialmente entre os mais pobres, tem crescido: por exemplo, de 2016 para 2017, o número de domicílios em que esses benefícios respondem por mais de 75% da renda avançou 22%, para quase 942 mil residências, entre as famílias da classe E que são aquelas que ganham até R$ 625 por mês. Por todo o país, o falecimento de idosos-aposentados durante a recente pandemia trouxe inúmeros problemas ainda em andamento para milhões de pessoas que deles dependiam. Numa escala maior, nada menos do que 64% dos municípios brasileiros dependem da renda dos aposentados e suas economias locais não são minimamente viáveis sem as contribuições financeiras desse grupo social.
Outra novidade do Censo de 2022 é o fato de que a redução no crescimento populacional brasileiro também refletiu no tamanho das famílias: o número médio de moradores por residência caiu de 3,31, em 2010, para 2,79, em 2022 — uma queda de 18,7%. A redução é ainda mais acentuada do que a registrada entre 2000 e 2010, e certamente suscita diversas questões, inclusive algumas de ordem urbanística como qual deve ser o tamanho dos imóveis.
Houve mudanças significativas na distribuição da população no território: a região Sudeste tem 84,8 milhões de habitantes, o que representa 41,8% da população do país; os três estados brasileiros mais populosos — São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro — concentram 39,9% da população brasileira; e a região Centro-Oeste é a menos populosa, com 16,3 milhões de habitantes, ou 8,02% da população do país. No entanto, o Centro-Oeste teve o maior crescimento populacional da última década entre as regiões brasileiras, a taxa atual indicando um crescimento de 1,23% ao ano, isso é, mais do que o dobro da média do país, que foi de 0,52%. Em segundo lugar aparece o Norte, mas que viu esse índice de crescimento cair a 0,75%, menos da metade do registrado no período de 2000 a 2010, que foi de 2,86%. Completam a lista o Sul, com 0,74%, o Sudeste com 0,45%, e o Nordeste, com 0,24%. Assim, a densidade populacional continua fortemente desigual entre as regiões. Ficou claro que se trata de um país populoso, porém pouco povoado, com uma distribuição que é da ordem de 23,86 hab./km². Apesar do maior crescimento recente, as áreas menos populosas são a região Norte — população de 17.349.619 habitantes, 8,54% do total de habitantes do território nacional — e a região Centro-Oeste. O Norte, a segunda região menos populosa, concentra 45,2% do território do país com densidade de 4,5 hab/km², sendo assim a região menos densamente povoada; já no Sudeste, com a maior parcela da população brasileira, a média é de 91,8 pessoas por quilômetro quadrado. O Nordeste é a segunda região mais populosa do Brasil, onde estão 26,91% dos habitantes do país, o que corresponde a 54.644.582 pessoas. Na sequência está a região Sul, com 29.933.315 habitantes ou 14,74% da população brasileira.
Outro fator importante acerca da distribuição territorial da população brasileira é o altíssimo grau de urbanização do país, dado o fato de que 85% das pessoas vivem em áreas urbanas — sendo que mais de 80% da população habita em 0,63% do enorme território nacional, provocando assim uma concentração gigantesca de pessoas e atividades econômicas em uma parte ínfima do território. Em 2022, as concentrações urbanas — áreas com mais de 100.000 habitantes — abrigavam 124,1 milhões de pessoas, isso é, 61% da população total. Cerca de 44,8% dos municípios brasileiros — de um total de 5570 — tinham até 10 mil habitantes, mas apenas 12,8 milhões de pessoas, ou 6,3% da população do país, viviam em cidades desse porte. As capitais abrigavam 23% da população, com 23 de cada 100 brasileiros morando em capitais ou regiões metropolitanas. Contudo, muitas capitais têm perdido população. São Paulo, a maior delas com 11,5 milhões de habitantes, contempla 5,6% de toda a população brasileira. Os dados do Censo indicaram que 9 capitais viram sua população diminuir de 2010 a 2022. Salvador (BA) foi a capital com a maior perda de habitantes, com uma baixa de 258 mil em 12 anos. Em seguida, com as maiores quedas percentuais, vêm Natal (RN), Belém (PA) e Porto Alegre (RS), que apresentaram variação negativa de 7%, 6% e 5%, respectivamente. Em números absolutos, o Rio de Janeiro foi a 2ª cidade com maior perda populacional entre as capitais — queda de 109 mil habitantes. Parte do êxodo populacional se deu dentro da mesma região metropolitana, mas de modo geral tem havido no país um movimento em direção às cidades médias em detrimento das grandes, ou então para áreas onde a economia mais forte atrai a população. Boa Vista (RR) e Palmas (TO) acumularam os maiores crescimentos percentuais: 45% e 33% respectivamente.
Quanto aos processos de produção informal do espaço urbano, ainda não saíram dados finais sobre os o que o IBGE estranhamente ainda chama de "aglomerados subnormais" — definidos como as "ocupações irregulares de terrenos para fins de habitação em áreas urbanas e que, em geral, são caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos básicos e localização em áreas restritas à ocupação" —, mas o Censo indicou que o Brasil tem mais de 12.4 milhões de pessoas nesses assentamentos. Em 2020, esse número era de 11 milhões. De acordo com a estimativa do IBGE, em 2019 havia 5.127.747 milhões de domicílios ocupados em 13.151 mil aglomerados subnormais no país. Essas comunidades estavam localizadas em 734 municípios, em todos os estados do país, incluindo o Distrito Federal. Em 2010, havia 3.224.529 domicílios em 6.329 aglomerados subnormais em 323 cidades. Foi a primeira vez que a pesquisa entrevistou os moradores desses assentamentos. Refletindo o maior crescimento da região Centro-Oeste, a maior favela brasileira atual não é mais a Rocinha, no Rio de Janeiro, mas a Sol Nascente em Brasília com 87.184 habitantes em 2022, o que significa um aumento de 29,7% frente aos 56.483 registrados no Censo de 2010.
Em paralelo aos dados do Censo, a última pesquisa da Fundação João Pinheiro — que desde 1995 calcula esse índice — aponta que o déficit habitacional no país cresceu em 2019, depois de uma baixa em 2018. Esse déficit inclui o número de famílias sem moradia ou que vivem em condições de moradia precárias em uma região; além disso, também entram nesse cálculo os domicílios em coabitação e com elevado custo de aluguel. O Brasil tinha um déficit habitacional de 5,876 milhões de moradias em 2019, mas esses dados ainda não preveem o período da pandemia em que houve aumento no número de pessoas despejadas. Conforme o levantamento da Campanha Despejo Zero, entre agosto de 2020 e maio de 2022 aumentou em 393% o número de famílias despejadas no Brasil. Esses quase seis milhões de moradias representam 8% dos domicílios do país e o alto valor do aluguel responde por mais da metade do déficit habitacional, um total de 3.035.739 de moradias. Nessa conta, entram as moradias cujo custo de aluguel responde por mais de 30% da renda familiar. Essa categoria do déficit responde por 52% do total do indicador e muitas dessas habitações são alugadas de forma informal.
Contudo, a novidade mais chocante do Censo de 2022 foi a revelação sobre a explosão do número de domicílios vazios no país. O número total de domicílios saltou 34% nos últimos 12 anos, chegando a 90,7 milhões. Desses, 72,4 milhões estavam habitados no período da pesquisa. Segundo o IBGE, o aumento na quantidade de lares está diretamente relacionado ao crescimento expressivo de habitações vagas e às de uso ocasional, como casas de veraneio ou de fim-de-semana. Domicílios vazios chegaram a 11,4 milhões, um salto de 87%, e os de uso ocasional atingiram 6,7 milhões, crescimento de 70% em 12 anos. A capital paulista, como município mais populoso do país, também tem o maior número de domicílios particulares, com 4,9 milhões. Frente aos dados de 2010, o crescimento foi de 27%. Contudo, São Paulo tem quase 590 mil imóveis vazios, 18 vezes a população de rua da cidade. Esses números ficam ainda mais chocantes se consideradas as construções e terras de propriedade do poder público que são mantidas vazias ou subutilizadas, assim como os lotes privados com serviços e infraestrutura que são mantidos vazios nas cidades.
Em suma, o Censo de 2022 confirmou que o Brasil é um país com uma população decrescente e em processo rápido de envelhecimento vivendo em famílias cada vez menores, mas ainda fortemente concentrada nas áreas urbanas de uma parte mínima do enorme território nacional na qual, em que pese o aumento significativo do número de domicílios, um enorme e crescente segmento da população vive em condições de precariedade habitacional enquanto há um número gigantesco e crescente de construções mantidas vazias. Esse é um modelo profundamente perverso de urbanização – caro, irracional, ineficiente, poluidor, excludente, segregador, injusto – que não pode mais ser ignorado, tolerado ou justificado.
Os dados do Censo deixam claro que o problema das cidades brasileiras não é a falta de planejamento — mas sim o tipo de planejamento territorial que tem sido promovido, direta e/ou indiretamente, em todas as esferas governamentais especialmente nas áreas urbanas. Da mesma forma, a mera "flexibilização das regras urbanísticas" como defendido por muitos não vai mudar esse cenário: a maior verticalização das cidades não significa por si só maior densidade demográfica — dado o estoque enorme de imóveis vazios nas cidades, mantidos como meros ativos financeiros — e nem garante a inclusão socioterritorial dos grupos mais pobres nas áreas centrais providas de serviços e infraestrutura, uma vez que a maioria das novas construções formais se destinam a grupos socioeconômicos mais privilegiados.
No atual contexto de uma pluralidade de crises gravíssimas — ambiental, energética, sanitária, alimentar, financeira, fiscal, social, política — nas cidades, já passou da hora de a sociedade brasileira, seus políticos e gestores entenderem a centralidade da questão urbana para o futuro do país. Promover uma ampla Reforma Urbana é desafio inadiável. Cumprir os ditames do Estatuto da Cidade é imperativo, assim como reconhecer o princípio constitucional das funções sociais da propriedade e das cidades — inclusive pela determinação firme de que usos adequados sejam urgentemente dados a esse estoque vergonhoso de imóveis vazios.
A plena articulação entre as políticas públicas — urbana, ambiental, de transporte e mobilidade, orçamentária — é fundamental, mas se não houver também uma articulação dessas políticas com uma política fundiária explícita em todas as esferas governamentais mesmo as ações bem-intencionadas vão acabar por agravar esse modelo perverso de urbanização.
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