Perdidos no tempo

Decisão da Suprema Corte sobre armas deixa juízes dos EUA confusos

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16 de julho de 2023, 11h53

Os juízes federais dos Estados Unidos parecem perdidos no espaço e no tempo. Cabe a eles julgar casos em que regulamentações de compra e porte de armas estão em jogo — ou quem pode ou não pode usar armas de fogo. Até junho de 2022, era mais fácil decidir. Bastava interpretar o que a Constituição, os precedentes e as leis federais e estaduais diziam. Mas, então, a Suprema Corte decidiu que os juízes devem levar em conta a história e as tradições da nação para restringir o uso de armas.

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Para a Suprema Corte, tribunais têm de considerar fatores históricos para decidir
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A decisão da Suprema Corte, que liberou o porte de armas para defesa pessoal fora de casa (no caso New York State Rifle & Pistol Ass' n, Inc. v. Bruen, ao qual se refere hoje como "Bruen"), diz que restrições ao uso de armas são presumivelmente ilegais, a não ser que "o governo possa demonstrar que a regulamentação é consistente com as tradições históricas de regulamentação de armas de fogo nesta nação".

Sobre isso, os juízes têm algumas perguntas sem respostas. Devem confiar em provas históricas apresentadas pelas partes? Devem encontrar especialistas em tradições históricas desta nação? Ou devem eles mesmos pesquisar tais tradições históricas através dos tempos? Mas essas tradições históricas se referem a que espaço de tempo? Aos anos 1700 ou 1800?

Alguns juízes se irritam. Esse é o caso, por exemplo, do juiz Carlton Reeves, de um tribunal federal no Mississippi, que se sentiu obrigado a trancar um processo em que estava em disputa a posse de arma por um ex-condenado porque não dispunha de elementos históricos e tradicionais para ajudá-lo a decidir.

"Juízes não são historiadores. Não somos treinados para atuar como historiadores. Nossa área é o Direito, não a História", ele escreveu, segundo a Bloomberg Law. Reeves se queixou de que nenhuma das partes designou um historiador para testemunhar no julgamento, nem obteve uma resposta quando perguntou se a corte deveria apontar um.

Oportunidade para esclarecer
Quando os ministros voltarem ao trabalho, no início de outubro, a Suprema Corte terá uma oportunidade histórica para esclarecer as coisas. Vai julgar o caso United States v. Rahimi, em que o Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região decidiu que a lei federal que proíbe acusados de violência doméstica, obrigados a manter distância das vítimas por ordem judicial, de possuir e portar armas de fogo é inconstitucional.

Mas o tribunal de recursos, que é o mais conservador dos EUA, declarou que só tomou essa decisão porque teve de seguir a decisão da Suprema Corte em "Bruen". De outra forma, o tribunal reconhecia que a lei que proíbe o uso de arma por acusados de violência doméstica "incorpora objetivos saudáveis da política adotada para proteger pessoas vulneráveis da sociedade".

Os tribunais federais de recursos têm vários casos relacionados a compra, posse e porte de armas para decidir. E esperam que a Suprema Corte os ajude com algo melhor do que tradições históricas para orientar suas decisões.

O Tribunal de Recursos da 2ª Região já fez a primeira audiência de um processo sobre uma lei estadual que bane o porte de armas em áreas designadas como "sensíveis" em Nova York. Um processo semelhante, de Nova Jersey, tramita no Tribunal de Recursos da 3ª Região, que ainda fará a primeira audiência.

O Plenário do Tribunal da 11ª Região recebeu um pedido para rever um caso em que o colegiado de três juízes manteve uma lei da Flórida que bane a venda de armas a pessoas de 18 a 20 anos. O Tribunal da 5ª Região está julgando uma lei federal que criminaliza a posse de armas por qualquer pessoa dependente de substâncias controladas.

Provavelmente, nenhuma dessas leis passa no teste da tradição histórica. Por isso, mesmo os juízes conservadores, como a maioria dos que atuam no tribunal da 5ª Região (que cobre Texas, Louisiana e outros estados republicanos), estão pedindo à Suprema Corte alguma orientação sobre como aplicar o "teste de Bruen".

No mês passado, esse tribunal pediu às partes interessadas que submetam amicus curiae para fornecer à corte informações relevantes sobre a história e tradição das restrições à posse e ao uso de armas de fogo, relacionadas à questão apresentada no processo.

No caso de Zackey Rahimi, a Suprema Corte vai examinar uma lei federal que proíbe pessoas de possuir armas se foram condenadas por crime, estão no país ilegalmente ou foram expulsas das forças armadas.

Em 2021, a Suprema Corte endureceu essa lei ao manter uma série de decisões de cortes inferiores que proibiam pessoas condenadas por dirigir embriagadas ou drogadas, que fizessem declarações falsas no Imposto de Renda e vendessem fitas cassetes falsificadas de possuir armas.

Rahimi, condenado por violência doméstica e outros crimes praticados com armas, quer que a Suprema Corte cumpra sua palavra — a de que restrições ao uso de armas devem se sustentar em tradições históricas. E, como isso é improvável, que mande libertá-lo.

No entanto, até mesmo as organizações que fazem o lobby de fabricantes e comerciantes de armas acham que o lugar dele é na prisão, mas por outros crimes, não pelo uso de armas. Elas acham que, de qualquer forma, as leis de controle de armas devem ser questionadas.

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