Opinião

Regularização Fundiária Urbana e a necessidade da sua ressignificação

Autores

  • Anderson Vieira

    é doutorando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) mestre em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (Uern) advogado e professor substituto da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

  • Lívia Oliveira Almeida

    é graduanda em Direito pela UFCG.

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

14 de julho de 2023, 15h18

Nos termos do caput do artigo 9º da Lei 13.465/2017, a Regularização Fundiária Urbana (Reurb) é identificada a partir da associação entre dimensões "[…] jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes". A primeira referência no ordenamento jurídico brasileiro se deu por meio do Decreto-Lei 271/1967, que dispôs sobre loteamentos urbanos, responsabilidade do loteador e concessão de uso e espaço aéreo, sendo depois tratada na Lei 6.766/1979 (Lei do Parcelamento do Solo), que cuidou da regularização de loteamentos irregulares no Capítulo VIII, que trata das Disposições Gerais, notadamente nos artigos 38, 40 e 41. É claro que não era a Reurb plena, como acontece na atualidade, pois o enfoque era mais restrito e formal limitando-se a aspectos registrais.

Com o fito de repensar os paradigmas estruturantes do planejamento urbano no Brasil em aspectos mais integrados e funcionais, de forma a poder contribuir para a construção de uma Reurb mais plena, o legislador constituinte originário inseriu na Lei Fundamental de 1988 os artigos 182 e 183, que compõem o Capítulo II do Título VIII, o qual versa sobre a Política Urbana. Surgidos sob a influência da pressão dos movimentos sociais em prol da reforma urbana, tais dispositivos consagraram o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e de garantir o bem-estar de seus habitantes, destacando os instrumentos de planejamento/organização urbana na figura do Plano Diretor e da usucapião especial urbana. Porém, não obstante seja possível afirmar que essas disposições contemplam o direito à moradia, este só foi formalmente reconhecido como direito fundamental com a Emenda Constitucional 26/2000, que altera a redação do caput do artigo 6° do Texto Constitucional.

Os artigos 182 e 183 da Constituição Federal foram regulamentados somente quase 13 anos depois com a edição do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2011), diploma legal que virou referência internacional em matéria urbanística e que introduz e reforça no ordenamento brasileiro os princípios da função socioambiental da cidade, da justiça social, da gestão democrática e da garantia do direito a cidades sustentáveis. Além de instituir o Plano Diretor como instrumento de planejamento municipal (artigo 4, III, a) e a audiência pública como diretriz geral de política urbana e mecanismo de gestão democrática da cidade (artigos 2º, XIII, e 43, II), a Reurb também desponta como diretriz geral e como instrumento jurídico político, entre outras referências (artigos 2º, XIV, 4º, V, q e t, 26, I, artigo 32, §2º, II, 35, III, 42-A, V, 46, §1º). Cuida-se de um instrumento central do desenvolvimento urbano no país, o qual deve observar a situação socioeconômica da população, assim como as normas ambientais, tendo em vista "a urbanização incompleta e excludente, resultado de um planejamento urbano fortemente centralizador e conservador" [1] das cidades brasileiras.

A Lei 11.977/2009, que dispunha sobre o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, foi a primeira a tratar a Reurb de forma mais ampla. Essa norma foi revogada pela Lei 13.465/2017, que constitui atualmente o principal marco legal sobre o assunto, e que foi regulamentada pelo Decreto 9.310/2018, trazendo, entre outras inovações, o instrumento da legitimação fundiária, assim como, a ampliação dos legitimados a requerer a Reurb. Houve fortes críticas a respeito do seu processo legislativo, que surgiu da conversão de uma medida provisória cujos critérios de urgência e relevância eram questionáveis, isso sem falar na ausência de uma discussão social mais ampla, conquanto a participação é um dos princípios do Direito Urbanístico.

Em relação ao conteúdo, a Lei da Reurb guarda compatibilidade com a agenda do mercado imobiliário e de caráter neoliberal, o que contextualiza o seu processo legislativo apressado, de constitucionalidade duvidosa e sem debates. Tal contexto se refletiu nas flexibilizações jurídicas, urbanísticas, sociais e ambientais que a nova lei trouxe, tudo isso em nome da desburocratização e do atingimento do fim último: promover a titulação em massa de imóveis. Isso contribuiu de certa forma para a hierarquização entre as dimensões da Reurb, com preponderância dos aspectos jurídicos-dominiais, o que dificulta a exploração da real capacidade da Reurb, representando assim um retrocesso frente ao paradigma clássico de regularização no Brasil, a "fórmula brasileira" [2]. Em vista disso, cabe refletir e problematizar qual ou quais conceitos de Reurb melhor se adequam à realidade de assimetrias e desigualdades sociais e territoriais do Brasil, o que é uma forma de contribuir para a reinterpretação dos instrumentos tratados nessa lei e nas demais normas sobre o tema.

Na abordagem de De Soto [3], conduzida por pressupostos neoliberais, a Reurb despontava apenas como instrumento de titulação e legalização das ocupações através da distribuição dos títulos dominiais. Essa política, ao passar dos anos, mostrou-se limitada, já que a valorização territorial fornecida pela titulação atrai o mercado imobiliário, fazendo com que seus ocupantes cedem às ofertas mercantis e se desloquem para as regiões de menor custo, muitas vezes em áreas de risco, sem estrutura e oferta de serviços públicos. Em razão da realidade urbanística brasileira e suas peculiaridades regionais, faz-se necessário pensar a Reurb como uma política pública que ultrapasse os limites meramente dominiais, de maneira a evidenciar as suas múltiplas dimensões. Essa é a percepção de Alfonsin [4], segundo a qual a Reurb é "um processo conduzido em parceria pelo Poder Público e população beneficiária, envolvendo as dimensões jurídica, urbanística e social". A autora defende a realização de uma abordagem mais holística e a inclusão de balizas mais amplas à discussão, como "o direito à cidade e à moradia adequada" [5].

Em abordagem que procura levar em conta os aspectos ambientais, Pilotto, Gonçalves e Pollini [6] conceituam a Reurb como um elemento da política habitacional e de planejamento territorial, que se tornou indispensável para a consecução do direito à moradia, da função social da propriedade, do direito à cidade e do meio ambiente equilibrado. Em perspectiva holística, Correia e Farias [7] entendem a regularização fundiária plena como aquela que se estrutura a partir de quatro dimensões, a) registral associada à titularidade; b) a urbanística, onde discute o direito à cidade e o acesso aos seus serviços; c) a ambiental, que gira em torno da necessidade de efetivação do direito ao meio ambiente equilibrado e d) a social, que visa considerar a realidade e as demanda dos seus ocupantes objetivando a permanência dessa população. Contribuindo para esse debate, Patrícia Gazola [8] amplia ainda mais as dimensões clássicas da Reurb plena e adiciona o elemento do desenvolvimento humano como um dos objetivos do procedimento.

Fernandes reafirma a multiplicidade dimensional do instituto e colabora para a discussão ao defender que se cuida de um direito subjetivo dos ocupantes, ao tratar dos casos em que o Poder Público inviabiliza a sua implementação. Isso se traduz em uma perspectiva mutacional no que diz respeito à natureza jurídica, objetivo e objeto da Reurb, historicamente atrelada a componentes jurídico-registrais. Nesse sentido, a Reurb configura uma alternativa à extenuante prática do litígio, por ser um instrumento de gestão de conflitos fundiários, especialmente pelo seu potencial de redução da insegurança da população mais pobre ante a constante ameaça de remoção. É claro que para atingir esse desiderato é preciso trocar o paradigma do embate pelo do consensualismo, uma vez que a adoção de métodos não adversariais costuma atingir melhores resultados nesse tipo de demanda.

Diante dessas conceituações, vislumbra-se a falta de conformidade da Lei 13.465/2017 em torno das dimensões elencadas, pois, muito embora as mencione conforme a disposição do citado artigo 9°, na prática se verifica o entendimento de que existe uma hierarquia entre tais elementos, o que deixaria o aspecto jurídico como preponderante. É obvio que o fator jurídico é um importante elemento da Reurb, principalmente no que diz respeito à segurança jurídica da posse, mas não se constata sua capacidade unilateral de garantir por si só o direito à moradia, à cidade e ao meio ambiente sustentável [9]. Em decorrência das diferentes configurações espaciais, ambientais, sociais e políticas dentro de um país multicultural, evidencia-se a urgência de debater a pluralidade conceitual na qual a Reurb se encontra inserida, de forma a contribuir para o debate de que não há receitas prontas e fórmulas mágicas que deem conta de contemplar as assimetrias jurídico-urbanísticas do Brasil.

Isso implica dizer que a atual definição legal não é a ideal para garantir a moradia plena, podendo impactar negativamente, a médio e longo prazo, na efetividade dos procedimentos estruturados sob sua égide. Desse modo, para além das questões jurídicas, sociais e ambientais, as propostas que visem releituras do conceito legal posto precisam considerar também os aspectos culturais e identitários da população beneficiária e da área de intervenção. Esse arranjo se faz necessário a fim de tentar minimizar o retrato cultural liberal burguês proveniente do "padrão colonial de poder" [10], o que, em parte, torna-se responsável pelo fomento de segregações e discriminações, operando na contramão do que deveria buscar o instituto da Reurb [11].

Esses aspectos culturais e identitários poderiam ser contemplados, por exemplo, por meio da criação/ampliação e aperfeiçoamento de instrumentos de participação popular dos potenciais beneficiários do procedimento. Para tanto é insuficiente indicar que entre os objetivos da Reurb está o de "franquear participação dos interessados nas etapas do processo de regularização fundiária" como posto no inciso XII, do artigo 10 da Lei 13.465/2017, sem que haja indicações concretas de como se dará essa efetiva participação e quais os instrumentos a serem utilizados. Inclusive, o inciso mencionado é o único dispositivo a tratar da participação popular, o que pode indicar que não foi objetivo do legislador promover a participação, mas tão somente cooptar a comunidade a um projeto já posto.

Assim, apesar dos esforços em torno das definições e suas inúmeras associações, o contexto de implantação da Reurb não tem sido tão animador tendo em vista o avanço da agenda neoliberal em que os interesses mercantis são priorizados pelo poder público e demais segmentos sociais. Este cenário corrobora a não efetividade de uma ordem jurídica que deveria estar amparada em princípios urbanísticos e ambientais, que guardam fundamento nos artigos 182 e 225 da Carta Magna [12].

Por isso, faz-se necessário desenvolver e fomentar uma agenda de pesquisa e debates que entenda o instituto da Reurb como uma forma de se garantir o direito à cidade e à moradia, a partir das potencialidades de conhecimento provenientes das riquezas culturais dos atores sociais que não só ocupam esses espaços, mas também os enriquecem de significados e funcionalidades não consideradas pela ótica urbana tradicional. Será utopia? O tempo responderá.

 


[1] VIEIRA, A. H., & ALVES, L. S. F. (2020). Direitos reais secundários e planejamento urbano: uma alternativa às estratégias clássicas de pensar o território. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 12, e20200005, p. 2. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2175-3369.012.e20200005.

[2] A chamada "fórmula brasileira de regularização" preza pela comunicabilidade entre todas as dimensões da Reurb na tentativa de promover um tratamento integrado que garanta a inserção das áreas em uma ordem jurídico-formal mas tentando garantir também a devida urbanização, participação popular, gestão dos desequilíbrios ambientais, promoção de emprego e renda etc.

[3] DE SOTO, Hernando. O mistério do capital: por que o capitalismo dá certo nos países desenvolvidos e fracassa no resto do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2001.

[4] ALFONSIN, Betânia de Moraes. O significado do Estatuto da Cidade para os processos de regularização fundiária no Brasil. In: ROLNIK, Raquel (org). Regularização fundiária plena: referências conceituais. Brasília: Ministério das Cidades, 2007, p. 78.

[5] ALFONSIN, Betânia de Moraes et al. Da função social à função econômica da terra: impactos da Lei 13.465/17 sobre as políticas de regularização fundiária e o direito à cidade no Brasil. Revista de Direito da Cidade, [S.l.], v. 11, n. 2, p. 174, fev. 2020. ISSN 2317-7721. Disponível em: <https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/37245>.

[6] PILOTTO, A. S.; GONÇALVES, R. R.; POLLINI, P. B. P. As flexibilizações urbanísticas na regularização fundiária urbana: notas sobre seus contornos, limites e possibilidades. In: LEITE, F. T. C. L.; MENCIO, M. (coord). Regularização fundiária urbana: desafios e perspectivas para aplicação da Lei nº 13.465/2017. São Paulo: Letras Jurídicas, 2019. p. 87-114.

[7] CORREIA, Arícia Fernandes; FARIAS, Talden. Regularização fundiária sustentável, licenciamento urbanístico-ambiental e energia solar / Sustainable land regularization, urban and environmental licensing and solar energy. Revista de Direito da Cidade, [S.l.], v. 7, nº 2, p. 863-901, jul. 2015. ISSN 2317-7721. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/16955>.

[8] GAZOLA, Patrícia Marques. Reurb-S: inadequação da regularização jurídica desconectada de projeto integrado de promoção humana e urbana. In: CORREIA, Arícia Fernandes (org). Moradia de Direito: Projeto na régua: Volume 1. Rio de Janeiro: Institutas, 2022.

[9] A possibilidade de promover regularização fundiária em áreas ambientalmente protegidas foi disciplinada pela Resolução 369/2006 do Conoma, e depois pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012). Isso indica que a Reurb pode ser um instrumento auxiliar da política ambiental, sendo urgente a integração dos aspectos ambientais quando do planejamento e execução da Reurb.

[10] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad-Racionalidad. Perú Indígena, Instituto Indigenista, Lima, v. 13, nº 29, p. 11-20, 1992.

[11] Nesse tipo de situação, o território, automaticamente, passa a ser produzido e reproduzido pelo/para o indivíduo masculino, heteronormativo e branco. ALFONSIN, Betânia de Moraes et al. Do cercamento das terras comuns ao Estatuto da Cidade: a colonialidade do direito de propriedade como obstáculo para a efetivação do direito à cidade no Brasil. Revista de Direito da Cidade, [S.l.], v. 15, nº 1, p. 294 – 330, mar. 2023. ISSN 2317-7721. Disponível em: <https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/64045>.

[12] O que talvez venha a contribuir para a mudança desse cenário é a novel Medida Provisória do programa "Minha Casa, Minha Vida" (MP 1.162/2023). A medida já foi votada e aprovada pelo Congresso Nacional e agora aguarda a sanção presidencial. Entre outros objetivos, ela propõe subsídio para construção de moradias em regiões dotadas de infraestrutura urbana; reforma e ocupação de prédios subutilizados ou não utilizados em regiões centrais das cidades; modalidades de moradias voltadas exclusivamente às populações em situações de rua e subsídios a projetos habitacionais que usem tecnologias sustentáveis. Entretanto, os desafios de implementação/execução da política, assim como ocorreu na primeira versão do programa "Minha casa, Minha Vida", ainda não permitem maiores digressões a seu respeito.

Autores

  • é doutorando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), mestre em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (Uern), advogado e professor substituto da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

  • é graduanda em Direito pela UFCG.

  • é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

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