Opinião

A expressão fontes do Direito

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

13 de julho de 2023, 16h18

A expressão fontes do Direito traduz a origem do Direito, seu nascedouro; onde as normas jurídicas são reveladas e têm seu princípio.

Ainda no âmbito de um preliminar exame sobre o tema, cumpre ressaltar que as denominadas fontes do direito constituem objeto de inúmeras controvérsias na doutrina, as quais recaem no seu próprio conceito e natureza jurídica, como também na sua ampla e diferenciada gama de classificações.

Outrossim, há quem faça distinção entre as expressões "fontes do direito" e "fontes jurídicas", outorgando à primeira um caráter de gênero, do qual a segunda seria uma simples espécie, como leciona, por exemplo, Maria Helena Diniz que, na qualidade de discípula dos ensinamentos de Carlos Cássio, demonstra acolher a denominada Teoria Egológica, segundo a qual o jurista deve ater-se tanto às fontes materiais como às formais, uma vez que toda fonte formal contém, de modo implícito, uma valoração, que só pode ser compreendida como fonte do Direito no sentido de fonte material.

Não obstante a multiplicidade de questões inerentes ao tema, o que, por si só, permitiria escrever um volumoso livro, o presente texto limitar-se-á a analisar a questão de uma forma bastante sintética, onde serão expostos apenas alguns dos mais variados conceitos existentes e, igualmente, tecidas superficiais considerações restritivamente a algumas das inúmeras classificações em detrimento de outras tantas de igual importância.

Nesse sentido, a melhor concepção estrutural sobre "fontes do direito" é a que percebe a mesma como gênero a abranger os conceitos de "fontes jurídicas" e de "fontes de fundamento de validade das normas jurídicas", o que permite abordar a notável contribuição de Kelsen sobre o assunto, para quem as denominadas "fontes do direito", em seu aspecto formalizante, somente se expressam através da segunda hipótese, o que significa dizer que apenas e tão somente é possível o "nascedouro" do direito e, em especial, sua validação, através de uma norma anterior e de hierarquia superior.

Desta feita, para Kelsen, as fontes do direito, não obstante sua amplitude, resumem-se, em seu contexto formalizante, às chamadas "fontes de fundamento", que outorgam validade existencial às normas jurídicas (e ao direito, de modo geral) e que encerram, como origem última, uma norma de concepção política "criadora", a que ele denomina de "norma fundamental".

Tal norma, objeto instrumental do denominado Poder Constituinte, ou seja, do poder soberano que concebe o próprio Estado, seria, sob esta ótica analítica, o poder criador da própria "declaração formal do Estado", ou seja, sua Constituição, espelhando a norma jurídica superior que outorga validade às demais normas jurídicas de hierarquia inferior, dentro de um espectro de "ordem" que convencionamos chamar de "ordenamento jurídico".

Assim, no âmbito da doutrina Kelsiana, o direito estaria fundado nas normas jurídicas que, em uma concepção de ordem hierárquica, se validariam umas nas outras até chegar ao ápice de uma "pirâmide normativa" traduzida pela Constituição (conceito próprio de supremacia hierárquica), e esta nas constituições anteriores (conceito próprio de supremacia por anterioridade) até chegarmos ao nascedouro básico, ou seja, a norma fundamental dentro de um conceito analítico de supremacia política.

Em outras palavras, a hierarquia das normas apresentada por Kelsen sob a forma de uma pirâmide traduz, portanto, a relação de interdependência entre as normas, da qual depende a constituição do sistema jurídico e determina a sua estrutura.

Dito isso, dezenas de páginas seriam necessárias para ilustrar a extensa e complexa doutrina Kelsiana relativa às fontes do direito, o que retiraria o caráter amplo, diversificado e, sobretudo, desapaixonado que tal dissertação deve ter. Portanto, encerramos este capítulo inicial e provocativo, ainda que com suas inerentes lacunas, para tecer considerações sobre as denominadas "fontes jurídicas", na qualidade de uma das espécies consagradas do gênero "fontes do direito".

Fontes jurídicas
Os mais diversos autores nacionais e estrangeiros utilizam a nomenclatura "fontes jurídicas" para traduzir o âmago das "fontes do direito", classificando-as através das mais variadas formas e modalidades.

Sem adentrar nesta importante discussão, torna-se oportuno consignar que as chamadas fontes jurídicas formais constituem uma espécie de "moldura do direito", onde o fundamento estruturante do direito se perfaz e se cristaliza, propiciando uma roupagem técnico-jurídica ao próprio Direito.

Ainda, cumpre asseverar que, comumente, a doutrina também subdivide as fontes jurídicas formais em fontes estatais e fontes não-estatais, em função da natureza intrínseca de sua origem.

Fontes jurídicas estatais (formais)
As fontes jurídicas estatais, por seu turno, classificam-se, segundo expressiva parcela dos doutrinadores, em fontes legislativas (ou fontes de produção, para alguns) e fontes jurisprudenciais (ou fontes de aplicação, para outros).

As fontes legislativas confundem-se, frequentemente, com o denominado processo legislativo e suas variadas espécies normativas relativas à produção do Poder Legislativo (ex vi: emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, decreto legislativo, resoluções do Senado e da Câmara, etc),  mas há quem dê maior amplitude à expressão, para fazer inserir a produção do Poder Constituinte (ou seja, a Constituição) e a produção normativa dos demais Poderes Executivo e Judiciário, acrescentando, assim, os chamados atos administrativos normativos (ex vi: decretos, regimentos, regulamentos, portarias, instruções normativas, etc). Por efeito, para estes últimos, as fontes jurídicas estatais traduziriam toda e qualquer norma jurídico-política emanada pelo Estado e de forma "escrita".

As fontes jurisprudenciais, de suma importância para a atualização dinâmica do sistema à luz da realidade social que se impõe, refletiriam, por seu turno, as fontes emanadas especificamente pelo Poder Judiciário, porém relativas restritamente ao seu papel jurisdicional, ou seja, suas sentenças e decisões que, em última análise, transformariam, através de uma cognição valorativa, a norma geral, prevista em lei (em seu sentido extra amplo), em norma específica ou individualizada, dando-lhe uma interpretação atual que atenda às necessidades do momento dos fatos.

A questão, embora à primeira vista pareça simples, é, no entanto, por demais complexa, posto existir, em nosso ordenamento jurídico, a possibilidade de o Poder Judiciário,  ainda que restrito à sua função judicante , produzir normas de caráter geral (ex vi: os dissídios coletivos na Justiça do Trabalho, as Súmulas Vinculantes editadas pelo STF, etc).

Não é por outra razão que figuram, neste cenário, inúmeras controvérsias relativas à questão, assim como incontáveis e distintas classificações possíveis em matéria de fontes jurídicas.

Fontes jurídicas não-estatais (formais)
Em contraposição às fontes jurídicas estatais, expressiva parcela da doutrina, em uma classificação excludente, preleciona a existência das chamadas "fontes jurídicas não estatais" para traduzir toda e qualquer fonte  escrita ou não-escrita  que tenha como origem um ente não-estatal ou uma produção normativa difusa na sociedade.

Ainda que muitas controvérsias subsistam neste contexto analítico, é sabido que a doutrina mais abalizada sobre o assunto tem aceitado, pelo menos em tese, quatro diferentes espécies de fontes jurídicas não estatais, a saber: os costumes, a doutrina, o negócio jurídico e a produção normativa de grupos sociais.

Costumes
Os costumes são comumente reconhecidos como uma produção normativa difusa em sociedade, que se caracteriza por dois aspectos importantes: o uso (e, especificamente, a reiteração do uso e do costume) e a validação (reconhecimento) jurídica sobre o mesmo.

Há também  e é importante frisar  o aspecto subsidiário do costume, corolário de sua absoluta impossibilidade de confrontar a lei, ou seja, a produção normativa estatal, o que é sempre verdadeiro na maioria dos países ditos legalistas ou de supremacia normativa estatal,  como é o caso do Brasil , mas inaplicável naqueles em que subsiste o chamado direito costumeiro em sua vertente ampla, como é o caso da Inglaterra.

Em necessária adição ao já exposto, merece atenção a importantíssima distinção entre o costume meramente social (de nítida feição sociológica) e o costume como fonte do direito (de nítida feição jurídica). No primeiro caso, encontram-se todos os usos e costumes difusos em uma sociedade, que podem, inclusive, confrontar a lei e até mesmo constituir-se em crime (ex vi: soltura de balões e a denominada farra do boi). No segundo caso, figuram os usos e costumes, igualmente difusos em uma sociedade, que, ao reverso, complementam o ordenamento jurídico, regulando, em certa medida, situações não perfeitamente delineadas na lei (exemplo: organização de "filas").

Em vista disso, o segundo elemento caracterizador do costume jurídico, qual seja, a validação ou reconhecimento jurídico, é fundamental para prover o costume da qualidade de autêntica fonte jurídica, ou, em sentido mais elástico, de genuína fonte do direito.

A dúvida que fomenta amplos debates doutrinários repousa, neste particular aspecto, apenas na fonte de validação jurídica, que, para a maioria dos estudiosos do tema vertente, ocorre exclusivamente através do Poder Judiciário.

Não podemos, todavia, comungar silenciosamente desta doutrina,  que reconhecemos ser amplamente majoritária , posto que, em certa medida, é o Poder Judiciário, em última análise, que também outorga, em muitos aspectos, a validação jurídica à lei, particularmente após a condenável edição da E.C. nº 3, em 1993, que criou a esdrúxula figura jurídica da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), rompendo, sob certo ângulo analítico, a concepção básica de presunção iuris tantum (ou seja, relativa) de constitucionalidade (e, portanto, de plena validade jurídica) das leis em seu sentido amplo.

Doutrina
A doutrina é comumente lembrada pelos estudiosos do tema como a segunda fonte jurídica não-estatal, simbolizando uma forma analítica, expositiva e esclarecedora do Direito, feita geralmente por juristas, professores e operadores do Direito, a quem compete, de um modo geral, o estudo aprofundado da Ciência Jurídica, não havendo nada que impeça que o material jurídico seja analisado por representantes de outras áreas do conhecimento humano, o que certamente contribui em muito para o engrandecimento do Direito.

Não é por outra razão que o legislador muitas vezes se baseia em conceitos doutrinários para a elaboração de novas leis ou mesmo para o aperfeiçoamento legislativo daquelas já existentes, da mesma forma que o magistrado frequentemente ampara a decisão a ser tomada em sólido aporte doutrinário, assinalando para o leitor que a posição adotada recai na opinião de renomados autores havidos como expoentes no assunto em discussão, o que, de certo modo, sinaliza o acerto do decisum prolatado.

De fato, é inegável o papel desempenhado pela doutrina no âmbito de um sistema jurídico, onde os profissionais do Direito buscam os esclarecimentos necessários para a formação de uma opinião a respeito de uma temática a ser investigada.

Negócio jurídico
Uma terceira fonte jurídica não-estatal, amplamente mencionada pela doutrina, reside nos chamados negócios jurídicos, em particular os de natureza bilateral (lembrando, por oportuno, que os negócios jurídicos também podem ser unilaterais, como, por exemplo, a doação simples ou o testamento), como são exemplos, por excelência, os contratos. Significa dizer que a manifestação de vontade exteriorizada por pessoas (físicas ou jurídicas), com o fim de produzir efeitos jurídicos, traduz-se em autêntica fonte de Direito.

Não é sem razão, portanto, que os contratos são conhecidos, entre os civilistas, através do famoso jargão de "lei entre as partes", o que traduz o seu poder normativo. Destarte, as pessoas (físicas ou jurídicas), a partir do poder negocial do contrato, criam normas (particulares e individualizadas) que vinculam as partes celebrantes.

Poder normativo dos grupos sociais
A quarta e última fonte jurídica não-estatal reconhecida majoritariamente pela doutrina fundamenta-se no denominado poder normativo de grupos sociais organizados na sociedade, tais como clubes, agremiações, sindicatos, etc, que "escrevem" seus estatutos e normatizações regulamentares no âmbito de suas respectivas ingerências.

Apesar das inúmeras dúvidas e questionamentos que pairam sobre o tema, deve ser consignada, sobretudo, a mais importante delas, que reside exatamente em saber se grupos sociais paralelos ao Estado (ex vi: crime organizado) também possuem o escopo de irradiar um autêntico poder normativo, particularmente quando é o próprio Estado reconhecedor,  ainda que a título informal , quanto à existência de "poderes paralelos" em certas partes de seu território.

De qualquer sorte, cumpre registrar que ainda são pouquíssimos os autores que abordam o assunto, sendo certo que, para a maioria da doutrina, o conceito de "poder normativo dos grupos sociais" ainda se limita aos denominados grupos sociais formalmente reconhecidos pelo Estado.

Conclusão
As denominadas fontes do direito alimentam acesos debates doutrinários. Neste norte, a melhor concepção estrutural sobre "fontes do direito" é a que percebe a mesma como gênero a abranger os conceitos de "fontes jurídicas" e de "fontes de fundamento de validade das normas jurídicas".

Por este ângulo, diversos autores utilizam a nomenclatura "fontes jurídicas" para traduzir o âmago das "fontes do direito", classificando-as através das mais variadas formas e modalidades. Uma das mais tradicionais e pedagógicas classificações revela uma divisão preambular das fontes do Direito em fontes formais e fontes materiais, existindo, ainda, dentro deste escopo classificatório, quem admita a existência de fontes formais-materiais, reconhecendo algo que se revela evidente, ou seja, que toda fonte formal repousa, em sua origem, em uma ou mais fontes materiais.

Ainda, cumpre asseverar que, comumente, a doutrina também subdivide as fontes jurídicas formais em fontes estatais e fontes não-estatais, em função da natureza intrínseca de sua origem.

Seja como for, da mesma forma que se pode afirmar que as Fontes do Direito são de suma importância para a aplicação do direito, é oportuno deixar registrado que árdua é a tarefa daquele que decide se debruçar sobre o tema vertente, posto que irá esbarrar em múltiplas classificações doutrinárias, o que explica as diversas perspectivas apresentadas pelos estudiosos do assunto.

Autores

  • é desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

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