Garantias de Consumo

Desafio da adequada informação na rotulagem de alimentos integrais

Autor

  • Simone Maria Silva Magalhães

    é mestra em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) diretora da Comissão Permanente de Acesso à Justiça do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) autora do livro Rotulagem Nutricional Frontal dos Alimentos Industrializados: política pública fundamentada no direito básico do consumidor à informação clara e adequada professora advogada e consultora jurídica especializada em Direito do Consumidor e rotulagem de alimentos.

12 de julho de 2023, 8h00

Os debates sobre alimentação nutricionalmente equilibrada têm se tornado cada vez mais presentes na sociedade contemporânea, o que tem impulsionado muitos consumidores a buscarem alimentos integrais pelos benefícios à saúde.  

No entanto, a falta de regras claras para o uso do termo "integral" resultava em imprecisões e incoerências na rotulagem[1], levando a uma percepção equivocada sobre muitos alimentos que assim se autodenominavam, mesmo quando sua lista de ingredientes mostrava uma quantidade menor de elementos integrais em comparação aos refinados. Isso ocorria devido à ausência de regulamentação por parte do poder público.

Diante da necessidade de estipulação de parâmetros e critérios para o setor regulado a fim de se afastar as distorções existentes no mercado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n° 712 de 2022[2]. Essa nova regulamentação teve como objetivo definir requisitos de composição e rotulagem dos alimentos contendo cereais e pseudocereais para sua classificação como integrais[3].

Com o início da vigência das regras, um novo desafio se torna presente: disciplinar a crescente utilização de técnicas de marketing aplicadas à rotulagem dos alimentos integrais que podem esvaziar o propósito regulatório quanto à informação clara ao consumidor.

Papel da RDC n° 712/2022 na regulamentação de alimentos integrais
A RDC n° 712/2022 da Anvisa representa significativo avanço na regulamentação dos alimentos integrais no Brasil, desempenhando função crucial na informação e proteção dos consumidores.

A referida resolução determina, em seu artigo 3°, que produtos contendo cereais e pseudocereais poderão ser classificados como integrais se possuírem, no mínimo, 30% (trinta por cento) de ingredientes integrais, desde que a quantidade de tais componentes seja superior à dos elementos refinados. Essa definição é fundamental para que os consumidores possam identificar quais alimentos atendem os critérios estabelecidos pela Anvisa, podendo ser considerados integrais.  

Além disso, a resolução estabelece diretrizes objetivas para a rotulagem, permitindo o uso da expressão "integral" na denominação de venda[4], desde que a porcentagem total de ingredientes integrais seja nela declarada com caracteres que tenham o mesmo tamanho, tipo e cor (art. 4°).  No caso de alimentos líquidos, a expressão "integral" deve ser substituída pelo termo "com cereais integrais" (artigo 4°, § 1°). 

É importante ressaltar que essa nova determinação da Anvisa, ao estabelecer requisitos que tornaram obrigatória a indicação do percentual de ingredientes integrais presentes no alimento, teve como intuito fornecer subsídios que permitam ao consumidor efetuar escolhas lastreadas em informações mais adequadas e precisas.

A medida regulatória em questão foi amplamente aguardada, pois a utilização de expressões chamativas como "100% integral" transformou-se, nos últimos anos, em uma prática corriqueiramente utilizada por muitos fabricantes. Porém, essa forma de agir sempre se mostrou reprovável, pois era carregada de faceta enganosa que induzia o consumidor ao erro, já que esses alimentos (a exemplo de pães, bolos, massas ou biscoitos) não eram feitos exclusivamente com ingredientes integrais, não podendo ser chamados de "100% integral".

Conflito entre a regulação e o marketing enganoso
Uma vez que a Anvisa determinou o prazo até 22 de abril de 2023[5] para a adequação da rotulagem de alimentos integrais, já é possível encontrar no mercado produtos que seguem as novas diretrizes.

No entanto, é preciso observar que algumas estratégias de marketing buscam contornar as regras criadas. Expressões incompatíveis com a composição do alimento, a exemplo da errônea informação "100% integral" (claramente contrária às novas regras regulatórias), são substituídas por outras que ocupam grande parte da rotulagem e aparecem em destaque no painel principal[6], como "100% saúde", "100% vida", “100% natural”, "100% nutrição”, “100% saudável” e similares.

Assim, fabricantes exploram a percepção positiva que os consumidores têm em relação a esses conceitos, caracterizados pela sua amplitude e subjetividade.  Porém, sem uma definição clara quanto ao real significado de tais termos, as pessoas são facilmente levadas a erro.

É evidente e até compreensível que empresas se utilizem de expressões atrativas como parte de suas ações publicitárias. No entanto, as referidas alegações inseridas nas rotulagens podem desviar a atenção do consumidor das informações essenciais sobre a composição real do alimento, criando um cenário confuso em que o indivíduo é levado a acreditar que está adquirindo um produto de maior qualidade nutricional.

Os fabricantes desempenham papel fundamental na disponibilização de alimentos integrais no mercado e, por isso mesmo, precisam estar totalmente cientes do seu dever de agir de maneira responsável e alinhada aos requisitos contidos na regulamentação. Nesse sentido, para impedir qualquer tendência de desvirtuamento, os fabricantes devem seguir estrita e fielmente os critérios estabelecidos pela Anvisa, bem como as normas que regem o Código de Defesa do Consumidor. 

A ingestão rotineira de um alimento apresentado como "100% saudável", sem fundamento concreto para tal definição, poderá implicar em consequências negativas à saúde do consumidor ao longo do tempo.

A utilização de expressões que desrespeitem a nova regulamentação pode, inclusive, promover prejuízos à concorrência, já que as empresas que se utilizam desta prática indevida acabam obtendo vantagens em relação às que seguem as regras corretamente. Isso cria uma competição desleal no mercado, prejudicando aqueles que se esforçam para oferecer produtos integrais genuínos e com informações corretas ao consumidor. Ou seja, tolerar que alguns fabricantes empreguem abordagens tão atrativas, mas distantes da realidade do produto, acaba transmitindo uma mensagem equivocada para todo o setor de alimentos.

Ressalte-se que a falta de sintonia entre o comportamento dos fabricantes com o arcabouço regulatório acaba tornando a fiscalização mais desafiadora para os órgãos competentes, já que estratégias de marketing podem ser sutis ou camufladas em diferentes roupagens.

Por fim, mostra-se imperioso estimular a plena conscientização do consumidor, pois ela também desempenha função basilar nesse contexto regulatório. O indivíduo deve ser educado para o consumo de forma a compreender a importância da leitura atenta dos rótulos. Conhecer minimamente o processo de inserção de informações sobre os alimentos possibilita a formulação de questionamentos em situações que se mostrem duvidosas. Ao adotar uma postura crítica e propositiva, baseada em conhecimentos adquiridos, os consumidores estarão melhor preparados para fazer escolhas alimentares saudáveis e conscientes.

Conclusão
A RDC n° 712/2022 representou um avanço importante na regulação dos alimentos integrais no Brasil.  Porém, para sua efetividade é essencial que as empresas do setor alimentício atuem em conformidade com as normas regulatórias e consumeristas, garantindo que a classificação e a rotulagem dos alimentos integrais sejam precisas e transparentes.

Tanto a Anvisa quanto as instituições de defesa do consumidor devem estar vigilantes e prontas para executar medidas no intuito de evitar práticas enganosas, garantindo a apresentação de uma rotulagem adequada, segura e que respeite adequadamente os seus direitos.

A inserção de expressões destoantes e duvidosas em rótulos de alimentos, que não passaram pela apreciação e chancela dos órgãos competentes, é prática que contraria o intuito da nova regulamentação. Essa estratégia de marketing induz o consumidor ao erro, dificultando a identificação qualitativa de produtos integrais e a realização de escolhas alimentares que realmente atendam suas necessidades e expectativas.

 

 


[1] A RDC n° 727/2022, que dispõe sobre a rotulagem dos alimentos embalados, define “rotulagem” em seu art. 3°, XIX como sendo “toda inscrição, legenda, imagem ou matéria descritiva ou gráfica, escrita, impressa, estampada, gravada, gravada em relevo, litografada ou colada sobre a embalagem do alimento”. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-rdc-n-727-de-1-de-julho-de-2022-413249279>.  Acesso em: 5 jul. 2023

[2] Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Resolução de Diretoria Colegiada – RDC n° 712/22: Dispõe sobre os requisitos de composição e rotulagem dos alimentos contendo cereais e pseudocereais para classificação e identificação como integral e para destaque da presença de ingredientes integrais. Revogou a RDC n° 493 de 2021.  Disponível em: <http://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/2718376/RDC_712_2022_.pdf/86a76ca0-96f3-4b63-97b7-ab1814503f13>. Acesso em: 3 jul. 2023.

[3] Ingrediente integral é definido como “cariopses intactas de alpiste, amaranto, arroz, arroz selvagem, aveia, centeio, cevada, fonio, lágrimas-de-Jó, milheto, milho, painço, quinoa, sorgo, teff, trigo, trigo sarraceno e triticale, ou qualquer derivado quebrado, trincado, flocado, moído, triturado ou submetido a outros processos tecnológicos considerados seguros para produção de alimentos, cujos componentes anatômicos – endosperma amiláceo, farelo e gérmen – estão presentes na proporção típica que ocorre na cariopse intacta”.  RDC n° 712/22, art. 2°, I.

[4] A denominação de venda é uma das informações obrigatórias que devem constar na rotulagem de alimentos embalados, conforme art. 7° da RDC n° 727/2022.

[5] No caso das massas alimentícias, o prazo de adequação da rotulagem será até 22 de abril de 2024, conforme RDC n° 712/2022, art. 11, § 1°. Além disso, os produtos fabricados até o final do prazo de adequação poderão ser comercializados até o fim do seu prazo de validade (art. 12).

[6] A RDC n° 727/2022, que dispõe sobre a rotulagem dos alimentos embalados, define “painel principal” em seu art. 3°, XVI como sendo “parte da rotulagem onde se apresenta, de forma mais relevante, a denominação de venda e marca ou o logotipo, caso existam”.

Autores

  • é mestra em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), diretora da Comissão Permanente de Acesso à Justiça do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), autora do livro Rotulagem Nutricional Frontal dos Alimentos Industrializados: política pública fundamentada no direito básico do consumidor à informação clara e adequada, professora, advogada e consultora jurídica especializada em Direito do Consumidor e rotulagem de alimentos.

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