Opinião

Equivocada aplicação do Tema 629/STJ: "solução fácil" para problema complexo

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

11 de julho de 2023, 6h06

De cara, confesso que pra mim soa atécnico a extinção do feito, sem resolução do mérito, depois de o juiz já ter se lançado à tarefa de valoração das provas dos autos, reconhecendo, ao final do processo, sua ausência/insuficiência.

No entanto, este nem de longe é o problema maior. O Tema 629/STJ vem sendo aplicado como solução para dúvidas e, até mesmo, ausência de uma devido processo legal [1]. Tomamos como exemplo aquele único documento rural apresentado como início de prova material. Isso não tirava do juiz a possibilidade de reconhecer o tempo de serviço rural com fundamento no princípio in dubio pro misero. Hoje, na dúvida, alguns juízes enveredam para a aplicação do Tema 629/STJ, o que nada ou pouco ajudará o segurado que acostou aos autos o único documento que tinha.

Quando o que está em jogo é um período de tempo de serviço especial, já sabemos que, em muitos casos, a prova pericial é condição de possibilidade para a comprovação dos fatos alegados. Por isso, ao autor cabe demostrar a existência de evidências sérias do labor especial, capazes de justificar a necessidade/utilidade da prova pericial, vale dizer: a partir de um padrão de dúvida relevante. No entanto, na dúvida, muitos juízes estão extinguindo o feito, sem resolução de mérito, com fundamento no Tema Repetitivo 629/STJ.

É surreal o autor esperar mais de dez anos na justiça para o juiz extinguir o feito com fundamento na ausência de dados que poderiam ser supridos pela prova pericial ou testemunhal  lembrando que não se admite a prova exclusivamente testemunhal como prova nova. Como extinguir o feito com todas as implicações que isso tem: decadência, prescrição demora, judicialização, etc?

Ao final dum processo que não observou o devido processo legal, ao segurado resta agora fugir  desesperadamente  da coisa julgada, a fim de que seja possibilitada a impugnação do formulário PPP na esfera trabalhista, com vistas a uma nova ação previdenciária. No Mito de Sísifo, um ensaio filosófico escrito por Albert Camus, em 1941, o último capítulo conta a história de um homem que, depois de desafiar a morte, é enviado ao Hades e condenado pelos deuses a rolar uma pedra até o alto da montanha, de onde ela desce de novo  e assim eternamente. No dia-a-dia do advogado, estamos sempre rolando a pedra e, em alguns momentos, com ela apostando corrida morro abaixo  tamanho o desespero!

Não há motivos para festejar, sob pena de estarmos alimentando um mostro. É verdade que, na medida em que o juiz não pode postergar sua decisão na espera de melhores provas ou informações, há que se ter maior tolerância no que diz respeito à garantia da coisa julgada. Agora, isso não aproveita o processo em curso, quer dizer, em que ainda é possível se esgotar todos os meios de prova! Estamos colocando a carroça na frente dos bois!

Abre-se um parêntese para dizer que a tese fixada no REsp 1.352.721/SP não aproveita apenas processos em curso, mas também situações em que o processo anterior foi julgado improcedente, no mérito, com fundamento na ausência ou insuficiência de provas. O que confirma tal orientação: Agravo Em Recurso Especial nº 1.754.627–RS, Agravo em Recurso Especial nº 1.412.411–RS, AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 617.362–RS, Recurso Especial nº 1.580.083–PE, Recurso Especial nº 1.889.192–RJ, AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 459.462–RS, Agravo de Instrumento nº 1.500.631-RS e Agravo em Recurso Especial nº 688.800–RS, para citar apenas estes [2].

Admite-se, portanto, uma nova ação qualificada por novos documentos, desde que o novo conjunto provatório venha suprir, no ponto, a ausência ou insuficiência de provas no processo anterior.

Seria engraçado se não fosse triste, mas tanto falamos em "processo previdenciário", no sentido de um lugar mais "colorido"  em que se deve imprimir um sentido mais humano e social às regras processuais, vale dizer: sob pena gerar significativo déficit protetivo do destinatário das normas previdenciárias , mas sequer o núcleo duro do processo civil é observado!

Deve ter ficado claro, mas o Tema 629 é o menor dos males, como se costuma dizer. A sua aplicação, por si só, é um minus em relação a um processo conduzido ao arrepio dos mais comezinhos princípios processuais. Nesses processos, não há que se falar em coisa julgada: não por ausência ou insuficiência de provas, mas em razão das restrições probatórias e, consequentemente, limites à cognição do juiz, conforme preconiza o artigo 503, §2º, do CPC.

A extinção do feito tornou-se uma "solução" fácil para um problema complexo. E nesse sentido, os filmes da franquia Harry Potter me ensinaram: "Haverá um momento em que teremos que escolher entre o que é fácil e o que é certo" (Alvo Dumbledore). Enfim, nunca pensei que o Tema 629 seria utilizado em prejuízo do segurado …acho que o ministro Napoleão, relator do precedente, muito menos! Para terminar com uma frase do Lenio Streck: "Justiça, para mim, é para solucionar problemas, não para criá-los."

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[1] O que diz o Tema Repetitivo 629/STJ: "A ausência de conteúdo probatório eficaz a instruir a inicial, conforme determina o artigo 283 do CPC, implica a carência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo, impondo sua extinção sem o julgamento do mérito (artigo 267, IV do CPC) e a consequente possibilidade de o autor intentar novamente a ação (artigo 268 do CPC), caso reúna os elementos necessários à tal iniciativa".

[2] A tese fixada no REsp 1.352.721/SP não colocou um fim na coisa julgada secundum eventum probationis. Às vezes, uma tese jurídica fixada sob a sistemática dos recursos repetitivos é relativizada a partir de decisões posteriores (disappoval), confirmando, na prática, posição coincidente com a tese vencida, quer seja pela falta de distinção técnica entre os institutos, quer seja porque a divergência, no julgamento do precedente, era meramente verbal. Em poucas palavras, ou se pretendia dizer a mesma coisa; ou se está relativizando a tese, para dizer a mesma coisa.

Autores

  • é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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