Direito Civil Atual

Clóvis Beviláqua, fabuloso tradutor de Rudolf von Jhering

Autor

  • Thiago Aguiar de Pádua

    é doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido 2023 no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur. 2018) ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

10 de julho de 2023, 8h00

Esta coluna é uma breve história de acesso e pedido de digitalização de uma obra rara [1] e, claro, como toda boa narrativa, precedida de um prólogo preparatório. Tudo começa com a leitura de um livro de Clóvis Beviláqua, revelador de sua formação intelectual e de sua admiração especial por seis pessoas as quais denominou de "juristas philósophos" (na linguagem da época): Cícero, Montesquieu, Jhering, Hermann Post, Tobias Barreto e Sylvio Romero [2].

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Ali ficava registrado muito de seu tributo acadêmico, em especial, segundo se sabe, à Jhering, por ter lastreado o cimento intelectual que modificaria toda a formação jurídica de uma escola, e que seria citado no Brasil pela primeira vez por Sylvio Romero em 1875 na defesa de tese para obter o grau de doutor em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito do Recife, momento em que também proclamava a morte da metafísica, num concurso polêmico e ricamente descrito por seu amigo, Tobias Barreto, que assistia atentamente às provas e, logo depois, publicaria, em 1878, Die jurisprudenz des taeglichen Lebens, republicado posteriormente em obra póstuma de 1892 como Jurisprudência da Vida Diária, dirigida por Sylvio Romero [3].

Vale o registro do próprio Tobias Barreto, quando da narrativa sobre o certame: "Ao meu ilustre comprovinciano e amigo Sylvio Romero cabe a honra de ter sido o primeiro que ousou convidar o dr. von Jhering para ir à Faculdade de Direito do Recife, lembrando-se de citá-lo na sua bela dissertação apresentada por ocasião das teses que pretendeu sustentar, porém que tiveram, como é sabido, para glória sua e eterna vergonha dos mestres, aquele triste resultado metafísico-criminal. Isso em março de 1875. Refiro-me ao célebre processo, que se instaurou contra o moço talentoso, por haver dito que a metafísica estava morta, e que os doutores da congregação estranhavam essa verdade "era só por muita ignorância" [4].

Também convém registrar a observação de Hermes Lima, em seu importante estudo biográfico sobre Tobias: "Em 1875, Sílvio, defendendo tese para obter o grau de doutor em ciências jurídicas e sociais, proclamara às barbas da congregação, ao mesmo tempo que era o primeiro a citar Jhering dentro da Faculdade, que a metafísica estava morta. Tobias assistira às provas do amigo, e depois na Jurisprudência da Vida Diária meteu à bulha os catedráticos" [5].

Pois bem, ao escrever e registrar seu débito para com Jhering em Juristas philosophos, revela entrevista pessoal com o filho do próprio Jhering, Hermann von Jhering (1850 – 1930), sobre um fato pitoresco da vida do pai, pois este desejava ter sido magistrado para poder se dedicar também à vida literária, mas quando foi tentar sua admissão para o exercício da magistratura obteve negativa oficial sob o argumento de que seu irmão já havia sido admitido à função judicante, o que obstava a possibilidade vindicada, "obrigando" Jhering a buscar sua luta pela verdade jurídica nas trincheiras da academia, dignificando de maneira maiúscula a função de professor e, por evidente, para o bem de todos que admiramos suas obras [6].

O testemunho da relevância e do tamanho de Rudolf von Jhering no Brasil, não só para uma geração, mas para todo o edifício jurídico brasileiro, se faz notar nos diversos discípulos que teve, dos mais famosos (Tobias Barreto) aos menos conhecidos (Almachio Diniz), e também na leitura atenta da mensagem enviada pela Faculdade de Direito do Recife, através da qual, segundo Clóvis Beviláqua, se curvava "a congregação da faculdade de direito do Recife ante o túmulo do mestre", pois, ainda segundo Clóvis, "em 1892, terminou essa existência gloriosa de sábio, que, aos 74 anos, se extinguia, quase, posso dizê-lo, com a pena entre os dedos".

Em nota de pé de página, complementa a informação mencionada de que: "Por essa ocasião, e compartilhando da consternação que avassalara toda a sociedade internacional da ciência, a Revista Acadêmica, em nome do corpo docente da faculdade jurídica do Recife, traduzia, nas palavras que se seguem, o seu doloroso pesar”, complementando: "Essas frases, vertidas para o alemão por meu ilustre colega Adelino Filho, foram enviadas à universidade de Göttingen com as condolências dos professores de direito da escola do Recife":

"Vai o século XIX aproximando-se do ocaso, e os astros mais radiosos que fulgiam em seu firmamento se vão, pouco a pouco, apagando, obumbrados na silenciosa escuridade do túmulo, onde a vida objetiva termina e começa a apoteose dos que foram verdadeiramente grandes; onde se vae consumar o drama obscuro da dissolução orgânica, mas onde não se aniquila a fecundação das idéias que, muitas vezes, continua mais vasta e mais vigorosa. Com pungente espetáculo! Quadra de apreensões!

Rudolph von Jhering, o profundo pensador, o grande jurista, emulo do preclaro Savigny, e maior do que ele, Rudolf von Jhering, o representante por excelência da renovação científica que, em nossos dias, transformou o estudo do direito, cessou de existir, o que importa dizer: extinguiu-se o foco de luz mais intenso que iluminava a jurisprudência contemporânea.

Mas as suas idéias não caíram nos rochedos ardentes das alegorias do Novo testamento. Criaram raízes, alastraram de extremo a extremo do mundo civilizado, e subsistirão eternamente, para atestarem, aos vindouros, a pujança de seu gênio e sua fé ardente na verdade científica. De sua doutrina podemos dizer com Cícero: 'Manet vero et semper manebit; sata estenim ingenio'.

No Brasil, é profundo o respeito em que é tido o másculo pensador; são fervorosas as simpatias que suas idéias agremiaram, mormente entre os moços, e quem tem por si a mocidade é senhor do futuro, disse-o ele um dia: — 'Wer die Jugend fur sich hat, dem gehört die Zukunft'.

Jhering morreu aos 74 anos. Foi uma longa vida, laboriosa e fecunda, toda consagrada aos interesses da ciência.

Sua Finalidade no direito, à qual Felix Dahn aplicou o dístico grego — 'ergo deinón te daimónion te' — obra estranha de um gênio, empresa de gigante, será, por muito tempo, a bíblia nova da filosofia jurídica. O Espírito do direito romano, com os seus geniais complementos, é uma síntese da floração jurídica romana, que os futuros séculos mal terão que retocar. E a inteligência que concebeu e executou obras de tamanho vulto merece a veneração dos coevos e dos pósteros".

Esse gigante, quase é dispensável dizê-lo, foi traduzido por Clóvis na obra mencionada, com autorização do próprio Jhering pouco antes de seu falecimento, e Clóvis Beviláqua inicia sua empreitada tradutória citando M. de Jong no original: Er ist der Jurist seines Jahrhunderts und der Zukunft, no início do prefácio nomeado como "Algumas palavras sobre Rudolf von Jhering", com a tradução do trecho selecionado sobre a relevância do autor traduzido: "Ele é o jurista de seu século e do futuro".

Relembrando essa apresentação, explica: "Eu mesmo, em 1891, animava-me a dar á estampa a tradução de um dos opúsculos mais eruditos do preclaro mestre— 'A hospitalidade no passado', inserindo opulenta e relevante nota de rodapé: 'Para dar uma ligeira ideia do que é o livrinho de que acabo de falar, transcreverei o que a seu respeito fiz publicar no 'Archivo Brazileiro', dando notícia de seu aparecimento na Alemanha: — 'Die Gaslfreundschaft im Allerthum von Rudolf von Jhering' (Separat-Abzug aus des Deutschen Rundschau, 9 Hest, 1887). É este o título de um interessante escrito do erudito professor de Göttingen, lançado com aquela profundeza de vistas perfeitamente germânica que lhe é tão natural, o trabalho que apresento e recomendo aos leitores do Archivo é um folheto de quarenta páginas, e contendo um estudo sobre a hospitalidade no passado, feito para a Deutschen Rundschau, tirado em separado. Não é preciso dizer que nesta, como em todas as produções de Rudolf von Jhering, encontram-se observações exatas e sutis dos fatos que nos revelam aspectos novos nas relações e nas cousas" [8].

Ingressando no próprio opúsculo, prossegue: "Sua tese fundamental é, segundo as próprias palavras do autor, no último capítulo (Ergebnisse), a seguinte: «o motivo que fez surgir e estabeleceu a hospitalidade no passado, o que a transformou, não foram os sentimentos etílicos, porém os práticos; não foi um motivo desinteressado da consciência humana, porém, a necessidade egoística de tornar possível um entrelaçamento de relações comerciais. Sem a garantia protetora do direito, teria sido impossível uma troca efetiva de relações comerciais no tempo em que os estrangeiros estavam privados de direitos. Debaixo deste ponto de vista se esclarece todo o instituto; sua garantia, sua organização externa, sua história" [8].

Dito isso, realizamos uma viagem temporal, considerando-se o inescapável fato de que os livros, sempre eles, são a mais fabulosa máquina do tempo, e passamos a narrar nosso ingresso no interior da biblioteca Victor Nunes Leal, do STF, na qual há um vasto acervo, um dos melhores do Brasil em obras jurídicas e políticas. Ao fundo da biblioteca, mais discreto, existe um local reservado às coleções pessoais de Levi Carneiro, Pontes de Miranda e Hahnemann Guimarães, doados por seus familiares, com obras absolutamente únicas, infelizmente menos acessadas do que deveriam.

Há, contudo, um terceiro local, um pouco mais ao fundo, numa porta lateral, no acervo chamado de "obras raras", com estantes blindadas de proteção contra incêndio. Nesse terceiro lugar estava adormecido um exemplar único da obra mencionada (A Hospitalidade no Passado), traduzida em 1889, embora publicada somente em 1891.

O livro passou por uma restauração magnífica, e, com imensa alegria, pela terceira vez, tivemos oportunidade de folhear suas páginas ardentes, embora usando luvas e máscara próprias, um pouco incomodas (mas necessárias).

Cuida-se um exemplar assinado pelo próprio Clóvis Beviláqua e com dedicatória a um amigo próximo: Alberto Juvenal do Rego Lins, sendo possível exercitar a imaginação sobre os leitores daquele exemplar, passando das mãos do autor e da história da tradução, além da importância do autor traduzido. Não menos excitante também é imaginar o caminho percorrido pela obra, entre o momento de seu lançamento e a sua chegada à biblioteca da Suprema Corte, e agora com um desfecho de publicização.

Desta vez pedimos, e, graças aos diligentes servidores da Biblioteca Victor Nunes Leal do STF, conseguimos fazer com que essa obra fosse encaminhada à digitalização para disponibilização com vistas ao acesso público de todos, iniciado no início do mês. Celebremos, pois, o grande Jhering e seu fabuloso tradutor Clóvis Beviláqua. Celebremos a esperança depositada nos leitores que poderão, em maior extensão, tomar esse veículo do tempo, numa carona com juristas de seu século e também do futuro, como relembrado, com vistas a contribuir para a continuação de suas obras ou no enriquecimento das pesquisas jurídicas do Brasil.

 


[1] Cfr. JHERING, Rudolf. A hospitalidade no passado. Recife: Typografia econômica, 1891.

[2] Cfr. BEVILAQUA, Clovis. Juristas philosophos. Bahia: Livraria Magalhães, 1897, p. 61 e ss.

[3] Menciona: "Die Jurisprudenz des taeglishen Lebens. von Dr. Rudolf von Ihering. Drite Auflage, 1877", citando com "I" e não com "J", complementando: "este pequeno trabalho foi publicado primeiramente na Província (Recife) em 1878, e, com algumas modificações, no Reporter (Rio) em 1879". Cfr. BARRETO, Tobias. Jurisprudência da vida diária. Em: Estudos de Direito. Estudos de Direito – publicação posthuma dirigida por Sylvio Roméro. Rio de Janeiro: Laemert & C. Editores proprietários, 1892. p. 290.

[4] Op. Cit. Loc. Cit.

[5] Cfr. LIMA, Hermes. Tobias Barreto (A época e o Homem). Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1939, p. 205.

[6] Cfr. BEVILAQUA, Clovis. Juristas philosophos. Bahia: Livraria Magalhães, 1897, p. 61 e ss

[7] BEVILAQUA, Clovis. II – R. Von Jhering. Em: Juristas philosophos. Bahia: Livraria Magalhães, 1897, p. 61 e ss.

[8] BEVILAQUA, Clovis. II – R. Von Jhering. Em: Juristas philosophos. Bahia: Livraria Magalhães, 1897, p. 61 e ss.

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  • é doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília), autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido, 2023, no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido, 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur., 2018), ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

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