Segunda Leitura

A Revista dos Tribunais nº 1 e o Direito Aplicado em 1912

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

9 de julho de 2023, 8h00

No ano de 1912 saiu o primeiro número da Revista dos Tribunais, ao qual outros se seguiram, impressos na Tipografia Cardozo Filho & Companhia, na rua Direta, 35, São Paulo [1]. Referido exemplar, na sua primeira página, solenemente anunciava ter na direção o advogado Plinio Barretto e ser uma publicação oficial dos trabalhos do Tribunal de Justiça de São Paulo.

A RT, como é conhecida, não foi pioneira. Antes dela, em 1904, na cidade de Belo Horizonte, foi lançada a Revista Forense, que alcançou grande expressão no mundo jurídico nacional. Posteriormente, outras revistas jurídicas foram editadas, como a Revista Trimestral de Jurisprudência do STF (1957-2017) e dos Tribunais de Justiça (v.g., TJ-PR, Paraná Judiciário, 1925-2006) e Alçada, além de editoras privadas.

Spacca
A RT, contudo, teve um destino especial, pois acabou tornando-se a referência nacional por décadas. Como todas as outras, sofreu a ação dos tempos, foi remodelando-se e agora enfrenta a concorrência das publicações feitas na internet. Em abril deste ano o seu exemplar levou o número 1.050, o que, por si só, demonstra a relevância de seu papel no mundo jurídico. Vejamos os históricos volumes I e II.

Em 1912 o TJ-SP tinha dez ministros, nome dado aos seus integrantes desde a criação em 1890, época em que o título variava de tribunal para tribunal. Só na Constituição de 1934 uniformizou-se em todo o Brasil o título de desembargador (artigo 104, "e").

A revista não era apenas da jurisprudência do TJ-SP, mas também, ainda que em número reduzido, do STF e de tribunais franceses, italianos e, em menor quantidade, da Alemanha, Bélgica e Inglaterra. Deste país há referência a um caso peculiar, no qual um cidadão pediu despejo por falta de pagamento de imóvel alugado a uma prostituta, tendo sua pretensão indeferida, porque o pedido baseava-se em cláusula contratual considerada imoral (v. II, p. 91).

Além de jurisprudência, a revista tinha artigos de doutrina. Em um deles, o autor X. T., que provavelmente era o ministro Xavier de Toledo, comentou casos envolvendo acidentes de automóvel na Justiça francesa (v. II, p. 17-18). Vale aqui lembrar que naquele país surgiram os primeiros precedentes sobre responsabilidade civil, à época com grande influência na jurisprudência brasileira. Fez-se presente também André Rouast, renomado civilista francês, que viveu entre 1885 e 1979, com o artigo Do direito de preferência resultante da colação das dívidas (v. II, p. 3-15).

Pareceres também eram publicados. João Mendes Júnior, reconhecido jurista que posteriormente foi ministro do STF, teve publicado seu parecer sobre Os Negócios a termo e os contractos diferenciais, dado para a Associação Comercial de Santos (v. 2, p. 289-302).

Uma curiosa seção denominada "Pelas revistas e jornais" comentava casos especiais, bem como fornecia a legislação federal e estadual mais recente. Vale aqui citar a reprodução, na íntegra, de longa sentença do juiz federal Wenceslau José de Oliveira Queiroz, em 18 de março de 2012, na qual negou habeas corpus impetrado por 11 médicos e 1 farmacêutico italianos, formados nas universidades de Nápoles, Pádua, Bologna e Turim, que pretendiam aqui exercer as suas funções sem submeter-se a exame prévio em Faculdade de Medicina do Brasil (v. 1, p. 323-334). Como se vê, a questão de formados fora do Brasil que aqui pretendem exercer a medicina já é bem antiga.

A administração da Justiça tinha previsão legal na Lei 18, de 21 de novembro de 1891, regulamentada pelo Decreto 123, de 10 de novembro de 1892 [2]. Seus dispositivos incluem a existência dos juízes de paz, que eram três em cada distrito, eleitos pelo voto popular e com muito poder. Os artigos 62 a 67 tratavam do Juízo Arbitral, algo que hoje é visto como uma grande novidade, mas já existia no século 19. Os agentes do Ministério Público, segundo o artigo 70, eram nomeados dentre os diplomados em direito, sempre que houver algum que acceite o cargo.

Quanto aos juízes de primeira instância, na Constituição de São Paulo de 1891 inovou ao dispor que a admissão dos juízes de Direito seria feita por concurso público (artigo 46) [3] o que foi explicitado no artigo 24, §3º, do Decreto paulista 123, de 1892. A mudança, muito embora salutar, gerou revolta de deputados e senadores, tendo sido retirada na Constituição estadual de 1905 e restaurada somente no ano de 1921 [4].

Os julgamentos revelam a precariedade do sistema normativo. Em 1912 as ações civis não tinham Código próprio, o que veio a dar-se apenas em 1916. Portanto, eram julgadas com base nas Ordenações Filipinas, na Consolidação das Leis Civis, de 1858, e em leis especiais. Por exemplo, o casamento, que era objeto do Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890. As ações penais resolviam-se com a aplicação do Código Penal da República, Decreto 847, de 11 de outubro de 1890.

O Tribunal de Justiça era dividido em Câmaras Criminais e de Agravos e Câmaras Civis. Ações penais, civis e comerciais eram as que preponderavam. Eram muitos os recursos por crime de homicídio e sedução, raros os casos de furto e roubo. O crime de estupro era julgado pelo Tribunal do Júri, como se vê no julgamento da Apelação crime 5.676, julgada em 25 de abril de 2012 (v. II, p. 33). Nos recursos em ações civis preponderavam questões de sucessão, penhoras e locação. Os conflitos de natureza comercial eram decididos com observância rigorosa das cláusulas contratuais.

Havia também recursos de conflitos administrativos, especialmente em casos de desapropriação, educação, funcionalismo público e posturas municipais. A severidade era a regra. Por vezes, surpreendente, como no caso de um oficial de Justiça da comarca de Brotas que, por grave falta funcional, teve, contra si, decretada prisão administrativa por cinco dias, reconhecendo o TJ-SP que de tal decisão não cabia qualquer recurso, nem mesmo HC (Habeas corpus 1725, v. I, p. 364-5).

As controvérsias trabalhistas eram consideradas de natureza comercial. A Apelação cível 6.730, da capital, envolvia um caixeiro vendedor que reclamava contra despedida, por ele considerada injusta. O julgamento baseou-se no Decreto 737, de 25 de novembro de 1850 [5], tendo-lhe sido desfavorável. Na verdade, as relações eram baseadas em contratos e, regra geral, o empregador levava a melhor, fato este que motivou, anos depois, a criação da Justiça do Trabalho.

A doutrina só era citada em cerca de 5% dos recursos, nos casos de flagrante necessidade para suporte da tese adotada e, na maioria das vezes, em questões civis. Eis alguns dos citados: J. I. Carvalho de Mendonça (Rios e águas correntes), Lafayette Rodrigues Pereira (Direito das Cousas) e Dídimo da Veiga (Direito Hypothecário). Na esfera criminal e administrativa decidia-se com base nos fatos e profunda análise das provas. Nada mais.

Algumas comarcas então existentes, como Jambeiro e Patrocínio do Sapucaí, foram extintas. Outras mudaram o seu nome, por exemplo, Faxina, que se transformou em Itapeva, Vila Bela que passou a ser Ilha Bela e Patrocínio do Sapucaí que se converteu em Patrocínio Paulista. Algumas, como a comarca de Jaboticabal, outrora sempre presentes nos recursos estampados na Revista nº 1, perderam com o tempo a sua relevância judiciária.

O "Termo de bem viver", que os formados até os anos 1970 conheceram, era aplicado pela Polícia Civil ao tomar compromisso de vadios, bêbados, qualquer classe de indivíduos que perturbassem o sossego público e a paz das famílias. Com a vigência do Código Criminal da República, em 1890, onde ele não foi previsto, surgiu discussão sobre a sua vigência. O doutor Reynaldo Porchat publicou artigo em jornal, reproduzido na revista, no qual sustenta a vigência por força da Lei Estadual 18, de 21 de novembro de 1891 (v. II, p.  407-410). Os "Termos de bem viver" foram utilizados Brasil afora até a vigência da Constituição de 1988.

O linguajar adotado nas decisões era muito mais simples e compreensível. Quiçá influenciados pelos hábitos judiciários da França, à época o exemplo a ser seguido, os acórdãos eram curtos e diretos. Por vezes não tinham mais do que uma página. Só em casos muito complexos chegavam a cinco ou seis páginas. Ao alto ia a ementa, com quatro ou cinco linhas. Depois, juntos, o relatório e a motivação, cada um ocupando de meia a uma página. Finalmente a conclusão, precedida da palavra "accordam", onde se encontrava a parte dispositiva. Definia-se minuciosamente o alcance da decisão e quem pagaria as custas, sem qualquer menção a honorários advocatícios, os quais, certamente, eram suportados por quem contratava.

Registre-se a franqueza utilizada com frequência nos votos, o que não ocorre atualmente, muitas vezes parecendo que o juiz está a desculpar-se por decidir desta ou daquela forma. Em um caso a sinceridade chegou ao extremo. Trata-se da Apelação crime 5.667, de Sorocaba, um caso de choque de trens com feridos, submetido ao Tribunal do Júri. O ministro Cunha Canto, inconformado com o ocorrido nos autos, afirmou: se o Tribunal quisesse usar de rigor, poderia condemnar o juiz e o promotor nas custas. O processo em debate era um atestado da ignorância de ambos (v. II, p. 32).

Eis, pois, o Direito e a Justiça de 111 anos atrás. Nem melhor, nem pior, apenas diferente, porque diferente era a época, as coisas e as pessoas. Conhecer o passado é requisito para compreender-se o momento atual e preparar um futuro melhor.

 


[1] O vol. I foi-me cedido pela biblioteca do escritório Torero Advocacia, localizado em Santos.

[3] ALESP. Constituição de 1891. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/leis/constituicoes/constituicoes-anteriores/constituicao-estadual-1891/. Acesso em 6 jul. 2023

[4] Tribunal de Justiça de São Paulo. Memória e Atualidade – 1874-2007. São Paulo: Imprensa Oficial, 200, p. 31.

[5] Planalto. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/historicos/dim/dim0737.htm. Acesso em 7 jul. 2023.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!