Processo Tributário

A verdade material no processo administrativo fiscal

Autores

  • Ermelinda Marques Muller

    é auditora fiscal da Receita Federal bacharel em Direito contadora mestranda e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

  • Rodrigo Dalla Pria

    é advogado doutor em Direito Processual Civil mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professor do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado) do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) professor e coordenador do curso de extensão Processo Tributário Analítico (Ibet) coordenador das unidades do Ibet em Sorocaba e Presidente Prudente coordenador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico (Ibet) e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

9 de julho de 2023, 8h00

A "verdade" é um tema que sempre se fez presente nas discussões filosóficas, constituindo-se, assim, num de seus problemas fundamentais. A discussão filosófica sobre o conceito de "verdade" deságua no Direito enquanto meio de pacificação social, desempenhando papel relevantíssimo na realização da justiça, a ser alcançada mediante respostas emanadas por decisões processuais exaradas tanto na seara administrativa como na seara judicial.

Nesse contexto, quer nos parecer não só importante, mas também oportuno tecer algumas considerações acerca da dimensão do conceito de "verdade", tal como operacionalizado pelas diferentes instâncias de resolução dos conflitos tributários, quais sejam: a instância judicial e a instância administrativa.

No processo judicial civil, o juiz deve julgar com base no acervo probatório trazido aos autos pelas partes, não devendo imiscuir-se na produção das provas que serão utilizadas na formação de sua convicção, o que reduz sensivelmente sua participação na instrução do processo. A doutrina tradicional, nesse caso, costuma asseverar que o juiz deve pautar-se na observância da verdade formal ou processual, assim entendida como aquela que é apresentada e provada pelas partes, a qual pode refletir ou não a realidade dos fatos.

No que concerne ao processo administrativo fiscal, por outro lado, em razão de sua natureza peculiar — que se fundamenta, a um só tempo, nas ideias de autocontrole da legalidade do atos da administração (dever de autotutela), contraditório e ampla defesa e do contraditório (artigo 5° LV da CF/88), e nos princípios específicos que regem à administração pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade eficiência) —, estamos a falar de um ambiente processual que está revestido de alta carga de informalidade e que tem forte natureza inquisitiva, no bojo do qual ao julgador são conferidos poderes instrutórios muito mais amplos, com vistas a obtenção de juízos cognitivos que reflitam a realidade dos fatos.

Vê-se que, no contencioso administrativo fiscal, a ideia de "verdade" se apresenta sob a forma normativa de um específico princípio, qual seja, o princípio da verdade material, preceito este que se vincula fortemente à ideia de ampla capacidade instrutória do julgador, e que alcança, em especial, casos de preclusão do prazo para a juntada de provas ao processo.

O artigo 16, § 4º do Decreto-lei n° 70.235/1972, estabelece que as provas devem ser apresentadas juntamente com a impugnação, sob pena de preclusão, salvo se: (1) fique demonstrada a impossibilidade de sua apresentação oportuna, por motivo de força maior; (2) refira-se a fato ou a direito superveniente; (3) destine-se a contrapor fatos ou razões posteriormente trazidas aos autos.

Muitos são os contribuintes que deixam de observar tal prazo e, mesmo não se encontrando dentro das exceções estabelecidas, pugnam pelo conhecimento das provas apresentadas a destempo, fazendo-o sob o fundamento de que o processo administrativo fiscal é informado pelo princípio da verdade material.

Ao analisar tais casos, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf/MF) vem sopesando o conjunto de princípios informadores do processo administrativo fiscal, dentre os quais está o indigitado princípio da verdade material, à luz das circunstâncias que são próprias a cada caso concreto. Disso resulta a prolação de decisões que ora aceitam a apresentação de provas pelo sujeito passivo em momento posterior ao previsto na lei, ora as refutam.

Temos como exemplo o caso da decisão proferida por meio do Acórdão 89101-002.871, de 6/06/2017, em que a Câmara Superior declarou a nulidade do Acórdão n° 1103-000.712, proferido pela 3ª Turma Ordinária da 1ª Câmara da Primeira Seção, por entender que houve preterição ao direito de defesa, ao não se analisar documentos, com força de desconstituir a presunção de omissão de receitas, apresentados por ocasião da interposição do recurso voluntário. Entenderam os conselheiros que a não análise da documentação apresentada, configurou a nulidade prevista no artigo 12 da Lei 7.574, de 2011 (preterição do direito de defesa)

No mesmo sentido foi a decisão proferida por meio do Acórdão n° 9101-004.563 – CSRF/1ª Turma, de 03/12/2019, na qual a Câmara Superior de Recursos Fiscais deu provimento ao recurso especial do contribuinte, determinando o retorno do processo ao colegiado a quo para que analisasse as provas apresentadas quatro anos após a apresentação do recurso voluntário.

Nesse caso, o órgão de julgamento tributário adotou uma interpretação moderada do artigo 16, § 4º do Decreto 70.235/72 e da disposição contida no artigo 38 da Lei n° 9.784/1999 (lei que dispõe sobre o processo administrativo federal em geral), segundo a qual é admissível a apresentação de provas na fase instrutória, em momento anterior à prolação da decisão administrativa. Outro fundamento adotado no precedente foi o de que o processo administrativo "deve atender à formalidade moderada, com adequação entre os meios e os fins, assegurando-se aos contribuintes a produção de provas e, principalmente, resguardando-se o cumprimento à estrita legalidade, para que só sejam mantidos lançamentos tributários que efetivamente atendam a exigência legal".

Em sentido contrário seguiu a decisão proferida pela Câmara Superior de Recursos Fiscais por meio do Acórdão n° 9101-002.890 — 1ª Turma, de 7/07/2017, que reconheceu a preclusão do direito do sujeito passivo de acostar aos autos provas trazidas por ocasião do julgamento realizado pelo colegiado a quo, com a consequente anulação da decisão recorrida. Esta decisão foi exarada sob o fundamento de que as provas apresentadas extemporaneamente eram inéditas e não complementares, as quais estavam na posse do recorrente desde a lavratura do auto de infração, mas que não foram disponibilizadas para análise. Além disso, tais provas não teriam o objetivo de contrapor fatos novos ou a novas razões de decidir adotadas pela turma julgadora de primeira instância. Entendeu-se, portanto, que a análise de tais provas pelo colegiado, naquelas circunstâncias, feriria a disposição contida no artigo 16, §§ 4º e 5º, por não se enquadrar em nenhuma das exceções ali previstas.

No mesmo sentido, seguiu o Acórdão n°9101-004.638 – CSRF/1ª Turma, de 15 de janeiro de 2020.

É preciso reconhecer, nesse contexto, que a administração tributária tem o dever de se autotutelar (Súmula 473 do STF). Desse modo, ainda que o ônus de promover o desencadeamento do contencioso administrativo tributário seja, por expressa determinação legal, de atribuição exclusiva do sujeito passivo autuado, constitui interesse da administração tributária o controle da legalidade dos seus atos. Significa dizer, por outros termos, que ainda que não haja processo administrativo instaurado, a administração tem a obrigação de verificar se seus atos estão de acordo com os princípios que regem a administração pública, tal como previstos na Constituição ("princípios da administração pública" — artigo 37 da CF).

Uma vez instaurado o processo administrativo fiscal, o controle da legalidade deve ser pautado pela observância irrestrita aos princípios constitucionais do devido processo legal, em especial o princípio do contraditório e da ampla defesa. É olhando para o dever legal que vem fixado pelo Decreto n° 70.235/72, que se conclui que restarão eivados de nulidade os despachos e decisões proferidos com preterição do direito de defesa.

Assim, o processo administrativo fiscal busca dar higidez aos atos administrativos, daí ser razoável admitir-se um formalismo moderado, o qual se manifesta por meio da concessão de poderes instrutórios amplos aos julgadores, como impulsionar a produção de provas, determinar perícias e diligências e permitir a juntada de documentos que sejam relevantes para a demonstração da verdade dos fatos, mesmo que isso se dê fora dos prazos previstos na legislação. Tudo isso para que a decisão administrativa tributária reflita, com a maior exatidão possível, a verdade dos fatos tais como materializados no mundo fenomênico.

Essa ampla cognitividade que se atribui ao julgador administrativo tributário, e que se volta à busca pela "verdade dos fatos", é justamente o que a doutrina reconhece como conteúdo normativo do chamado princípio da verdade material, que decorre em boa medida da observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa, mas principalmente do dever que tem a administração de rever seus próprios atos, no exercício do controle interno da legalidade.

 


BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, Ana Clarissa Masuko. Princípio da verdade material e processo administrativo de compensação. In: CONRADO, Paulo Cesar (coord.). Processo Tributário Analítico – Volume II. São Paulo: Noeses, 2013.

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XAVIER. Alberto. Princípios do processo administrativo e judicial tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 16. ed. rev., atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

MEIRELHES, Hely Lopes, Direito Administrativo Tributário. São Paulo: Malheiros. 1994

A prova no Processo Tributário. São Paulo: Dialética. 2010.

TELES, Galderise Fernandes. Contencioso tributário: matérias de ordem pública no contencioso administrativo tributário. Capítulo IV e Considerações finais. Porto Alegre: Juruá, 2021.

I Prêmio Carf de Monografias em Direito Tributário – 2010. Disponível em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/publicacoes/monografias. Acesso: 27/06/2023

PEREIRA. Renato Machado. A Concepção da Verdade-como-Correspondência. Disponível em: https://uenf.br/posgraduacao/ciencias-naturais/wpontent/uploads/sites/4/2021/02/10-A-concepcao-de-verdade-como-correspondencia-Anais-VII-seminario-filosofia-UFSCar-2011.pdf. Acesso em: 27/06/2023.

Autores

  • é auditora fiscal da Receita Federal, bacharel em Direito, contadora, mestranda e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

  • é advogado, doutor em Direito Processual Civil e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado) do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professor e coordenador do curso de extensão de "Processo tributário analítico" do Ibet, coordenador das unidades do Ibet em Sorocaba e Presidente Prudente e coordenador do grupo de estudos de "Processo tributário analítico" do Ibet.

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