Opinião

Cultura processual e legitimidade das associações indígenas

Autor

  • Herick Feijó Mendes

    é advogado mestrando em Segurança Pública Cidadania e Direitos Humanos (UERR) especialista em Direito Público e ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

9 de julho de 2023, 6h36

Não tem sido incomum observar uma maior participação das comunidades indígenas no debate público brasileiro, que deixaram de se limitar às notas de repúdio e passaram a se utilizar do permissivo constitucional que garante a legitimidade processual para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses.

Apesar do artigo 232 ser um dispositivo originário à promulgação da Lei Fundamental de 1988, as organizações passaram a se estruturar de maneira mais recente, afastando-se, gradativamente, da necessidade de dependência absoluta do Ministério Público Federal. Talvez por isso, ainda, haja uma resistência do Poder Judiciário e das demais instituições essenciais ao sistema de justiça em internalizarem, processualmente, o mandamento constitucional voltado aos povos originários.

Na primeira oportunidade que tive para defender uma comunidade indígena, deparei-me com uma experiência de imenso aprendizado, até porque passei a lhe dar com peculiaridades processuais que não comportam, em certa medida, os instrumentos ortodoxos da liturgia republicana. Percebi, assim, que teria dificuldades para explicar algumas coisas.

Nas conversas que tive com o Tuxaua de determinada comunidade, ele me explicou que a divisão territorial  dentro de uma terra demarcada  é realizada conforme suas tradições e costumes, vinculada às afinidades linguísticas de seus membros. Portanto, como é de se supor, não há formalismos ou solenidades cíveis a delimitar com precisão a área de determinada comunidade.

Além disso, a comunidade é um ente despersonalizado que ganhou envergadura processual na Constituição de 1988, capaz de ir a juízo mesmo sem qualquer registro.

O associativismo também é instrumento relevante à proteção de direitos, de modo a se evidenciar, hoje, uma diversidade de associações indígenas existentes. A representatividade associativa das comunidades, notadamente, deve se ancorar no mandamento constitucional que permeia toda a forma de organização indígena, a partir de seus costumes e tradições.

É certo que para a propositura de algumas demandas, a legislação elencou requisitos específicos, especialmente quando estamos a tratar de demandas transindividuais. Sabemos que é inerente ao sistema procedimental a criação de mecanismos e instrumentos burocráticos a condicionar a viabilidade do acesso à justiça, a exemplo da verificação da pertinência subjetiva com a demanda deduzida em juízo. Essa pertinência, também conhecida como legitimidade, tem sofrido restrições legais e interpretativas quando se trata de demandas coletivas, considerando que é necessário um acervo registral e de filiação a sustentar a participação em juízo. 

A legitimidade, tenho visto, é um dos maiores entraves encontrados por organizações indígenas, considerando a resistência à adequação do sistema processual ortodoxo às singularidades dos povos originários, eis que o Poder Judiciário não estaria apto a traduzir uma nova linguagem e adequação processual às organizações indígenas, considerando que sua forma e modo de organização são distintos dos não indígenas.

A estrutura acadêmica e jurisdicional está educada a tratar e julgar processos em que figurem formas de organização que se adequam ao sistema extremamente formal de associativismo (servidores, bancários, magistrados, empresários e etc), reproduzindo um padrão que depende de muita tinta de caneta e calhamaço. Não há como se conceber, assim, que uma associação indígena só possa promover uma demanda coletiva se cada indígena "associado" tiver assinado uma folha de filiação  imagine uma situação desse porte com os Ianomami.

A dispensa de algumas formalidades é inerente à máxima otimização dos preceitos constitucionais, eis que até a forma de divisão territorial e cosmovisão de representatividade carece, na cultura indígena, de assinaturas, carimbos ou registros públicos, já que a autodeterminação se traduz na garantia normativa de que as comunidades indígenas legitimem suas organizações conforme costumes e tradições, bastando, em algumas circunstâncias, suas vozes, pinturas corporais e liderança ativa.

Estou a dizer que as peculiaridades étnico-culturais, para fins de legitimidade processual, possuem envergadura constitucional, considerando que o Constituinte de 1988 garantiu ampla legitimidade às organizações indígenas, sob pena dos não indígenas imporem sua forma de vida e fossilização formal aos indígenas na defesa de seus direitos e interesses.

O Constituinte garantiu a reprodução dos costumes e tradições das comunidades e suas respectivas representatividades, além da inédita normatividade constitucional de permitir, sem maiores formalismos, o ingresso em juízo na defesa de seus direitos e interesses.

Se a principal premissa constitucional aos povos originários é fazer com que se preserve a forma de vida e organização conforme sua cultura, qualquer invertida contra a legitimidade processual comunitária ou associativa, por não atender rigidamente aos padrões ortodoxos dos não indígenas  sedimentando da estrutura institucional , é desconsiderar a própria existência dos indígenas.

A estrutura institucional brasileira, em sede processual, não "pode pretender que tais povos se organizem do mesmo modo que nos organizamos". "Assegurar o respeito a seus costumes e instituições significa respeitar os meios pelos quais articulam a sua representação à luz da sua cultura." (BARROSO, Luis Roberto, ADPF 709).

A garantia do modo de organização, conforme seus costumes, articular-se singularmente à visão de representatividade, sedimentando-se a consciência étnica de existência no mundo. A defesa dos interesses e direitos pelas comunidades e organizações indígenas em juízo é, indiscutivelmente, um aspecto primordial para a longevidade dos povos indígenas.

A concepção sobre as organizações associativas, por aqueles indígenas que tive a oportunidade de dialogar, é de que estas entidades os representam no mundo dos não indígenas, logo, não é um mundo que os pertence. De alguma forma, a resistência do Poder Judiciário e, até de instituições que fazem parte do sistema de justiça, reforçam esse abismo cosmológico, em que não se está preparado, institucional, para se respeitar a cultura indígena como condição preponderante e suficiente de legitimidade processual na defesa de seus direitos e interesses.

Autores

  • é advogado, mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos (UERR), especialista em Direito Público, ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

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