Observatório Constitucional

Direitos fundamentais e democracia no Constitucionalismo Digital

Autor

  • Ilton Norberto Robl Filho

    é professor da Faculdade de Direito da UFPR e do IDP líder do grupo de pesquisa "Democracia Constitucional Novos Autoritarismos e Constitucionalismo Digital" no IDP membro do CCons-UFPR e da Fundação Peter Häberle e sócio do escritório de advocacia Marrafon Robl e Grandinetti.

8 de julho de 2023, 8h00

1. O tempo, para todos e especialmente para os juristas, é elemento central e objeto de constantes reflexões. Nesta prestigiosa coluna do Observatório Constitucional, sou responsável por escrever artigos no começo e na metade do ano. No final do primeiro semestre e no início da segunda parte do ano, há uma tendência de refletir sobre o que ocorreu e o que acontecerá até o término deste calendário.

2. Em 8 de janeiro de 2023, os democratas ficaram estarrecidos com a barbárie dos ataques às instituições do Estado Democrático de Direito, os quais foram arquitetados por meio do pensamento autoritário e da utilização dos grupos em mensageria instantânea (WhatsApp e Telegram) e das redes sociais. Essa questão deixou ainda mais nítida a necessidade de regulamentação constitucional e adequada da internet, tendo como parâmetro a liberdade dos cidadãos e das pessoas jurídicas, mas produzindo mecanismos hígidos e proporcionais para controlar e para implementar maior transparência na atuação das empresas de tecnologia e principalmente das big techs. Nesse contexto, avançou a tramitação do relevante Projeto de Lei nº 2.630/2020 (Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet), acerca do imprescindível enquadramento do mundo digital no figurino da democracia constitucional. O Congresso Nacional necessita terminar a análise desse processo legislativo no segundo semestre.

3. Exatamente o tema da governança digital ocupou as reflexões das comunidades jurídicas brasileira e europeia, no XI Fórum Jurídico de Lisboa, em 26, 27 e 28 de junho de 2023, que é promovido pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pela Fundação Getúlio Vargas e pela Universidade de Lisboa. Em perspectiva plural, o evento enfrentou inúmeros dilemas contemporâneos. Dessa forma, o painel de abertura tratou precisamente do Estado Democrático de Direito e Defesa das Instituições, versando a palestra principal (Keynote Speech) do professor Dieter Grimm sobre como salvar a democracia. As análises em relação ao direito e ao constitucionalismo não se fazem sem reflexão profunda. Não desconsidera que inovações teóricas se impõem, porém esses debates precisam ser realizados em diálogo com a tradição constitucional democrática. Assim, no Fórum de Lisboa, coordenei, com o professor Guilherme Pupe, o Grupo de Trabalho da Fundação Peter Häberle, tendo sido apresentados e discutidos exatamente que textos e pesquisas nessa perspectiva.

4. O segundo semestre, para os estudiosos do Direito, começa com boas novas, em virtude do lançamento, na Espanha, da coletânea de artigos científicos Derechos Fundamentales y Democracia en el Constitucionalismo Digital, tendo a obra a direção dos professores Francisco Balaguer Callejón e Ingo Wolfgang Sarlet e contando com a minha coordenação e dos professores Carlos Luiz Strapazzon, Augusto Aguilar Calahorro e Antonio Pérez Miras [1]. O livro foi construído com contribuições acadêmicas de professoras e professores brasileiros, espanhóis, italianos e portugueses.

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5. Alguns trechos da citada obra indicam a relevância do livro.

6. "Na sociedade digital, as plataformas e serviços digitais que nela opera tornam-se um canal de fake news, desinformação, pós-verdade, fatos alternativos… transformando-se em ferramentas de soft power na guerra de valores entre poderes e grupos sociais. O recente reconhecimento do papel nocivo que eles podem desempenhar na desconstrução dos sistemas constitucionais, deu, ao mesmo tempo, um impulso para que as redes e suas empresas elaborassem suas próprias listas de valores. Valores que, embora coincidam no nome com valores constitucionais, são, no entanto, produto da autorregulação e, portanto, são também dotações que refletem os interesses econômicos das grandes empresas" [1].

O artigo científico de Augusto Aguilar Calahorro foi escrito antes dos ataques às instituições democráticas brasileiras de 8 de janeiro de 2023 e por constitucionalista espanhol, comprovando que o fenômeno da desinformação e os ataques às instituições infelizmente são uma tendência global. Entendo que existem tanto críticos sinceros como insinceros da regulamentação da internet e das redes sociais, das mensagerias instantâneas e das ferrramentas de buscas. O fragmento acima é importante chave de leitura para a adequada compreensão do tema. Explico. A utilização do léxico dos direitos fundamentais pelas big techs, de um lado, demonstra a inegável deferência que todas as pessoas jurídicas e físicas necessitam ter em relação às normas constitucionais. De outro lado, há também um uso oportunista pelas grandes empresas de tecnologia das ideias de liberdade, de igualdade e de pluralismo para tentar legitimar práticas que, com a máxima vênia, entram em rota de colisão justamente com esses valores. Chamo essa postura de uso insincero — quem sabe cínico — do instrumental dos direitos fundamentais.

Essa retórica insincera dos direitos fundamentais às vezes engana ou no mínimo joga uma cortina de fumaça na discussão sobre regulamentação da internet. É um equívoco absurdo equipar regulamentação com censura ou com intervenção indevida na comunicação. O fenômeno jurídico, por excelência, disciplina as relações e atos sociais, econômicos e culturais. Com certeza, a regulamentação das redes sociais, da mensageria instantânea e das ferramentas de buscas necessita ser razoável e proporcional, além de concretizar os direitos fundamentais na melhor medida possível. Essa disciplina não é apenas constitucionalmente possível, mas necessária, conforme veremos no fragmento abaixo.

7. "A realidade digital não se limita a refletir meramente a realidade física, mas a transforma de tal forma que a cultura constitucional, os direitos fundamentais, a ideia de democracia, o Estado de Direito e a própria configuração do ordenamento jurídico assumem uma dimensão diferente. Pensemos, por exemplo, no ordenamento jurídico, tradicionalmente baseado em três princípios essenciais para garantir a segurança jurídica: unidade, coerência e plenitude" [2].

Como não regulamentar a realidade digital, quando esta impacta e principalmente modifica o próprio direito constitucional, assim como a democracia e o Estado de Direito? Nesse contexto, a questão não é se, mas como disciplinar a internet. Isso não é nenhuma novidade, no Brasil, em razão, por exemplo, da aprovação do Marco Civil da Internet (Lei Federal nº 12.965/2014) e da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei Federal nº 13.709/2018).

Por sua vez, como bem apontado por Francisco Balaguer Callejón no trecho acima, a unidade do ordenamento jurídico, que possui a constituição como sua norma central, é reestruturada, porque o sistema jurídico é alargado com as regulamentações globais, advindas muitas vezes do direito privado (por exemplo, os termos de usos de equipamentos e aplicativos eletrônicos). A busca por coerência do ordenamento constitucional e jurídico é ideal teórico de boa parte da teoria e da prática jurídicas. É inegável que se vive em mundo de inflação legislativa e regulativa, contudo o papel dos operadores do direito e dos juristas é construir a coerência, a partir da adequada hermenêutica constitucional. Por outro lado, as regulamentações das empresas de tecnologia, as quais contam com a adesão de bilhões de pessoas, com frequência causam fraturas e incoerências nos sistemas estatais e sociais.

8. Ainda, "os dados são, de facto, o bem econômico essencial do mercado digital, hoje nas mãos de grandes empresas de tecnologia. Não obstante, a positivação da propriedade dos dados implicaria uma validação generalizada deste modelo de negócio, bem como a introdução de uma cosmovisão jurídica transformada – se não diferente – na qual o mercado se tornaria a peça fundamental para garantir a dignidade humana, mesmo prevalecendo sobre esta última de acordo com a oportunidade econômica do momento" [3].

A analogia de que os dados são o novo petróleo é impactante, mas incorreta. Os dados não são recursos naturais não renováveis, pois a utilização de informações não produz necessariamente o seu esgotamento. A integração de bancos de dados torna mais forte o conhecimento que empresas e governos possuem sobre o titular das informações. Também, as pessoas naturais são "o negócio" de inúmeras empresas, já que estas detêm o interesse na obtenção das informações dos indivíduos para maximizar seus lucros. Dessa maneira, a proteção das pessoas físicas como consumidores é o principal mote das reflexões jurídicas atuais.

O texto acima de Daniela Dobre discute outra perspectiva: e se os dados passarem a ser vistos e regulamentados a partir do direito de propriedade dos seus titulares, isto é, pessoas naturais? A mudança não seria pequena, visto que ocorreria o emprego de robusto instituto jurídico e de enorme envergadura constitucional para proteger o titular desse direito, ou seja, todos os seres humanos! Claro que é uma proposta controversa, porém essa é uma das riquezas do livro: instigar debates complexos e árduos, contudo imprescindíveis.

9. O tema do constitucionalismo e do Direito Digital é instigante e urgente, sendo assim os debates não param. Em setembro, a Universidade de Granada, o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul realizarão o III Seminário On-Line Internacional de Constitucionalismo Digital, o qual em breve divulgaremos.

 


[1] CALAHORRO, Augusto Aguilar. Valores Constitucionales y Sociedad Digital. CALLEJÓN, Francisco Balaguer; SARLET, Ingo Wolfgang (Directores). STRAPAZZON, Carlos Luiz; ROBL FILHO, Ilton Norberto; CALAHORRO, Augusto Aguilar; MIRAS, Antonio Pérez (Orgs.). Derechos Fundamentales y Democracia en el Constitucionalismo Digital. Navarra: Aranzadi, 2023. Esse fragmento e os demais foram traduzidos por Izabel Oliveira.

[2] CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Inteligencia artificial y cultura constitucional. CALLEJÓN, Francisco Balaguer; SARLET, Ingo Wolfgang (Directores). STRAPAZZON, Carlos Luiz; ROBL FILHO, Ilton Norberto; CALAHORRO, Augusto Aguilar; MIRAS, Antonio Pérez (Orgs.). Derechos Fundamentales y Democracia en el Constitucionalismo Digital. Navarra: Aranzadi, 2023.

[3] DOBRE, Daniela. La propiedad sobre los datos personales: un análisis desde el Derecho Constitucional. CALLEJÓN, Francisco Balaguer; SARLET, Ingo Wolfgang (Directores). STRAPAZZON, Carlos Luiz; ROBL FILHO, Ilton Norberto; CALAHORRO, Augusto Aguilar; MIRAS, Antonio Pérez (Orgs.). Derechos Fundamentales y Democracia en el Constitucionalismo Digital. Navarra: Aranzadi, 2023.

 


*A obra Derechos Fundamentales y Democracia en el Constitucionalismo Digital pode ser adquirida aqui. O livro será lançado em italiano e em português também, com previsão de publicação para o final deste ano.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da UFPR e do IDP, líder do grupo de pesquisa "Democracia Constitucional, Novos Autoritarismos e Constitucionalismo Digital" no IDP, membro do CCons-UFPR e da Fundação Peter Häberle e sócio do escritório de advocacia Marrafon, Robl e Grandinetti.

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