Ambiente Jurídico

Litígios climáticos na Justiça Federal

Autor

  • Gabriel Wedy

    é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

8 de julho de 2023, 8h00

É importante que se faça uma breve análise de ações climáticas ajuizadas e algumas já apreciadas pelos juízes federais e pelos desembargadores nos Tribunais Regionais Federais. A tutela do meio ambiente e do sistema climático estável são objeto de uma parcela significativa das demandas que hoje são distribuídas na Justiça Federal, exigindo um elevado preparo técnico no tema dos candidatos ao cargo de juiz federal substituto e, igualmente, dos juízes federais substitutos, juízes federais e desembargadores federais que compõe a carreira e que necessitam de constantes atualizações sobre direito ambiental e, em especial, sobre o novíssimo e multidisciplinar direito climático.

Direito que, como se sabe, estará cada vez mais em voga, nas universidades e nos tribunais, até o ano de 2100, quando será verificado o sucesso ou o fracasso do Acordo de Paris. A organização da Justiça Federal e a competência dos juízes federais encontra-se disposta claramente no texto da Constituição e não enseja maiores dúvidas [1] para os operadores do direito.  

Passos de Freitas refere:

Spacca
"… o artigo 109 da Carta Magna disciplina a regra de competência jurisdicional federal do Brasil e está inspirado no direito norte-americano. Desde a proclamação da República e a edição do Decreto 848, de 11.10.1890, o artigo segue, mais ou menos, a mesma orientação. Em linhas gerais, a competência da Justiça Federal é fixada pelo interesse da União Federal, suas autarquias ou empresas públicas" [2].

Dentro deste contexto e desta organização judiciária, caso relevante, foi a ação popular climática ajuizada por Engajamundo e Fridays For Future Brasil, ajuizada na justiça federal de São Paulo, em que se pediu a anulação da Contribuição Nacionalmente Determinada (CND) apresentada pelo país à Convenção do Clima da ONU (UNFCCC) em dezembro de 2020. Na inicial, os autores, aduziram que o Brasil alterou para mais a base de cálculo das emissões da meta, proposta originalmente em 2015. Na referida atualização, de acordo com os autores, o governo não fez o ajuste correspondente no percentual de corte de emissão (43% até 2030 em relação ao ano de 2005). Com isso, o país inflou artificialmente seu compromisso internacional, podendo emitir, em uma verdadeira pedalada climática, até 400 milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2030 a mais do que na proposta de 2015.

Conforme os demandantes, o Acordo de Paris, que é um Tratado de Direitos Humanos, veda expressamente alterações nas metas nacionais que reduzam sua ambição, e isto viola o pactuado na COP 21. Além disto, a parte ré também havia infringido normativa nacional, pois o Acordo foi ratificado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo presidente Michel Temer, por meio do decreto 9.073, de 2017.

Sobreveio decisão interlocutória que deferiu em parte o pleito dos demandantes, mas a União recorreu, argumentando que o Acordo de Paris é um ato que diz respeito apenas à política externa brasileira  e, portanto, qualquer decisão sobre ele seria prerrogativa apenas do Poder Executivo em virtude do princípio da independência dos Poderes.

Em sede de agravo de instrumento da União, a eminente desembargadora federal Marli Soares (TRF3), em decisão festejada por ambientalistas, referiu que o Decreto 9073/2017 é lei brasileira em vigor e pode ser invocada e aplicada por qualquer instância do Poder Judiciário brasileiro [3].

A egrégia Corte Federal decidiu, em outro caso, no entanto, de modo consoante com precedente do egrégio STF, ao autorizar a queima da palha da cana de açúcar e a sua diminuição gradativa com o passar dos anos de acordo com interpretação de lei estadual. Referida decisão, abaixo ementada, está em desacordo, no entanto, com os precedentes do egrégio Superior Tribunal de Justiça [4].

As demandas civis públicas climáticas ajuizadas pelo ministério público contra companhias aéreas que operam no Aeroporto Internacional de Guarulhos buscando a obtenção de medidas mitigadoras dos impactos ambientais decorrentes das emissões dos gases de efeito estufa têm sido julgadas igualmente improcedentes pelo egrégio TRF-3 sob o argumento de que inexiste previsão legal a limitar a emissão de gases de efeito estufa por companhias aéreas ou a fixar-lhes obrigação compensatória ou reparatória ao meio ambiente, em razão de eventuais danos provocados pelo exercício de atividade devidamente autorizada pelo poder concedente. Exemplo elucidativo é o litígio climático Ministério Público v. Turkish Airlines [5].

Outro precedente que demonstra especial relevância, este julgado pelo egrégio TRF-4, foi a decisão interlocutória da Desembargadora Vânia Hack de Almeida, que anulou audiência pública e determinou a inclusão, nos Termos de Referência dos processos de licenciamento da Usina Termoelétrica Nova Seival, ante riscos ambientais e humanos, das diretrizes legais previstas na Política Nacional sobre Mudança do Clima introduzidas pela Lei nº 12.187/09 e das diretrizes legais previstas na Política Gaúcha de Mudanças do Clima, introduzidas pela Lei Estadual nº 13.594/10 [6].

A Abrampa, o Greenpeace Brasil e o Instituto Socioambiental, outrossim, também ajuizaram a Ação Civil Pública nº 1009665-60.2020.4.01.3200, na 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas, com vistas à anulação de medidas do Presidente do Ibama que constituem-se em retrocesso ambiental e contribuem para o aquecimento global.

De acordo com os autores, contrariando o parecer das áreas técnicas, o presidente do Ibama declarou inexigível a autorização para exportação de madeira nativa a ser emitida pelo próprio Ibama. Na prática, a decisão liberou a exportação sem fiscalização, facilitando o cometimento de ilícitos ambientais.

A decisão administrativa atendeu a um pedido formulado pelo setor madeireiro, que argumentou que, com a mudança dos sistemas de fiscalização adotados pelo Ibama, a autorização de exportação anteriormente prevista teria se tornado desnecessária e obsoleta, caindo naturalmente em desuso.

Todavia, conforme os autores climáticos, apesar do Documento de Origem Florestal (DOF) (uma licença obrigatória para a comercialização dos produtos florestais), este não foi suficiente para atestar a legalidade da exportação. Isto porque o referido documento é expedido a partir de dados fornecidos pelas próprias empresas e só indica que o transporte da mercadoria até o porto está autorizado, mas não indica se a carga em si respeita as exigências legais [7].

Não houve, para os demandantes, regularidade no mecanismo fiscalizatório. Como resultado, na prática, a fiscalização do Ibama ocorre apenas depois de a mercadoria deixar o país. O afrouxamento do controle da exportação de madeira, de acordo com os autores, já vem causando graves e irreversíveis danos ambientais, tendo se observado um aumento alarmante dos índices de desmatamento ilegal na floresta amazônica.

O pedido liminar de suspensão da decisão do Ibama foi indeferido em primeira instância, todavia, o recurso interposto pelas associações deve ser julgado em breve pelo TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) [8].

Merece destaque outro litígio de natureza climática, com embasamento constitucional, que segue em curso em Vara da Justiça Federal do Distrito Federal.

Na ação civil pública promovida pelo Ministério Público Federal (MPF), em parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa), os autores suscitam a nulidade do Despacho 4.410/2020 do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e sustentam que o ato administrativo coloca em risco o que resta da Mata Atlântica (12% da cobertura original), pois o referido despacho recomenda aos órgãos ambientais (Ibama, ICMBio e Instituto de Pesquisas Jardim Botânico) que desconsiderem a Lei da Mata Atlântica (nº 11.428/2006) e apliquem regras mais brandas constantes do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), podendo o ato ensejar o cancelamento de milhares de autos de infração ambiental por desmatamento e incêndios provocados em áreas de preservação do referido bioma.

A ação ressalta os reflexos climáticos da medida impugnada, pois segundo dados do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases (Seeg) do Observatório do Clima, a maior fonte de GEE decorre do desmatamento e das alterações de uso de solo, matéria albergada pela Política Nacional sobre Mudança do Clima (artigo 4º, II e VI), ao prever que esta visará "II — à redução das emissões antrópicas de gases de efeito estufa em relação às suas diferentes fontes; e VI – à preservação, à conservação e à recuperação dos recursos ambientais, com particular atenção aos grandes biomas naturais tidos como Patrimônio Nacional" [9]

O ato administrativo ao reconhecer as propriedades rurais instaladas em áreas de proteção ambiental, até julho de 2008, permite o cancelamento de milhares de autos de infração ambiental por desmatamento e incêndios provocados em áreas de preservação do bioma. O MPF pediu a revogação urgente dos efeitos do despacho e a proibição da União de publicar norma de conteúdo semelhante [10].

Baseado em parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), o despacho impugnado pelo MPF alterou o entendimento do Despacho MMA 64.773/2017, que reconhecia a vigência da Lei da Mata Atlântica (Lei Federal 11.428/2006), mesmo após a publicação do Código Florestal (Lei Federal 12.651/2012).

O Despacho 4.410/2020, para os autores, tinha como consequência direta negar vigência à Lei da Mata Atlântica, em especial à vedação de consolidação de ocupação de Áreas de Preservação Permanente situadas em imóveis abrangidos pelo bioma Mata Atlântica, proveniente de desmatamento ou intervenção não autorizada, a partir de 26 de setembro de 1990 [11].

Ainda segundo o MPF, o cumprimento e aplicação da nova norma trouxe como consequência o risco do cancelamento indevido de milhares de autos de infração ambiental em Áreas de Preservação Permanente (APP) situadas no bioma Mata Atlântica, assim como da abstenção indevida da tomada de providências e do regular exercício do poder de polícia em relação a esses desmatamentos ilegais.

De acordo com os autores, apenas no Ibama, e sem computar a atuação de todos os órgãos públicos ambientais estaduais e das polícias ambientais, houve a lavratura de 1.476 autos de infração ambiental na área da Mata Atlântica. Para o MPF a preservação da biodiversidade da Mata Atlântica exerce múltiplas funções ambientais, das quais dependem, pelo menos, 150 milhões de brasileiros.

Mesmo para setores econômicos ligados ao agronegócio, a preservação e recuperação dos remanescentes de vegetação do bioma Mata Atlântica também são essenciais para a sustentabilidade econômica brasileira, na medida em que a sua degradação causa, entre outros graves prejuízos, a escassez hídrica, a erosão, as inundações, a desertificação e os desabamentos [12].  

Na ação é detalhadamente alegado que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está previsto na Constituição, que também reconhece a Mata Atlântica como patrimônio nacional e que a sua utilização apenas pode ocorrer, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

Por fim, o MPF pediu a suspensão do despacho do Ministério do Meio Ambiente e a condenação da União em não editar mais nenhum dispositivo com conteúdo semelhante. Referida demanda integra atuação nacional articulada coordenada pela Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do MPF (4CCR) em defesa da Mata Atlântica e mobilizou procuradores da República nas 17 unidades da federação.  Referido litígio climático é direto e ao mesmo tempo, pelos seus próprios fundamentos, estratégico, e está tramitando no foro competente da justiça federal da primeira região [13].

Dentro deste contexto, se observa que existem litígios climáticos, vários dos quais estratégicos [14], que tramitam na justiça federal brasileira. Na jurisdição federal merece destaque especial, portanto, a invocação constante e necessária da Constituição Federal, do Acordo de Paris, da Lei 12.187/2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima, do Decreto 9578/2018, da jurisprudência e da doutrina de direito climático [15].  

 


[1] Artigo 107, artigo 108 e artigo 109 da CF.

[2] PASSOS DE FREITAS, Vladimir. Comentário ao artigo 109 da Constituição Federal. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz(Org). Comentários à Constituição do Brasil. Editoras: Saraiva e Almedina, 2013. p. 1461.

[3] OBSERVATÓRIO DO CLIMA. Governo perde na justiça argumento sobre pedalada climática. Disponível em: https://www.oc.eco.br/governo-perde-na-justica-argumento-sobre-pedalada-climatica/.

[4] BRASIL, Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Apelação Cível nº 0001063-45.2008.4.03.6116/SP. Relator: desembargador federal Nery Júnior. Relator p/acórdão: desembargador federal Carlos Muta. Publicado em 23.01.2018.

[5] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv 5002711-77.2019.4.03.6119. Relator: desembargador Federal Luis Carlos Hiroki Muta. Data: 27/11/2020.

[6] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Terceira Turma, AG 5041566-54.2021.4.04.0000, relatora para Acórdão: desembargadora Federal Vânia Hack de ALMEIDA, 04/07/2022).

[7] Abrampa. Abrampa, Greenpeace e Instituto Sociambiental pedem anulação de decisão que facilitou a exportação de madeira ilegal do país.  Disponível em: https://abrampa.org.br/abrampa/site/index.php?ct=conteudoEsq&id=939&modulo=NOTÍCIA.

[8] Abrampa. Abrampa, Greenpeace e Instituto Sociambiental pedem anulação de decisão que facilitou a exportação de madeira ilegal do país.  Disponível em: https://abrampa.org.br/abrampa/site/index.php?ct=conteudoEsq&id=939&modulo=NOTÍCIA.

[9] Abrampa. MPF propõe ação para anular despacho do Ministério do Meio Ambiente que colocam em risco a preservação da Mata Atlântica.  Disponível em: https://abrampa.org.br/abrampa/site/index.php?ct=conteudoEsq&id=841..

[10] Abrampa. MPF propõe ação para anular despacho do Ministério do Meio Ambiente que colocam em risco a preservação da Mata Atlântica.  Disponível em: https://abrampa.org.br/abrampa/site/index.php?ct=conteudoEsq&id=841.

[11] Abrampa. MPF propõe ação para anular despacho do Ministério do Meio Ambiente que colocam em risco a preservação da Mata Atlântica.  Disponível em: https://abrampa.org.br/abrampa/site/index.php?ct=conteudoEsq&id=841.

[12] Abrampa. Abrampa, Greenpeace e Instituto Sociambiental pedem anulação de decisão que facilitou a exportação de madeira ilegal do país.  Disponível em: https://abrampa.org.br/abrampa/site/index.php?ct=conteudoEsq&id=939&modulo=NOTÍCIA.

[13] Abrampa. Abrampa, Greenpeace e Instituto Sociambiental pedem anulação de decisão que facilitou a exportação de madeira ilegal do país.  Disponível em: https://abrampa.org.br/abrampa/site/index.php?ct=conteudoEsq&id=939&modulo=NOTÍCIA.

[14] LEHMEN, Alessandra. Advancing Strategic Climate Litigation in Brazil, German Law Journal, Volume 22, December 2021, pp.1471-1483.

[15] Sobre o tema, ver: SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER, Tiago; WEDY, Gabriel. Curso de direito climático. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2023. p. 352.

Autores

  • é juiz federal, membro do grupo de trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, do CNJ, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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