Direitos da mulher e o STF: o fim da infame "legítima defesa da honra"
6 de julho de 2023, 13h18
O tema do feminicídio consiste em uma evolução significativa do reconhecimento dos direitos da mulher no Brasil, em linha com o Objetivo 5 de Desenvolvimento Sustável da Organização das Nações Unidas para 2030: "Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas". O objetivo concentra metas específicas na eliminação de todas as formas de violência contra mulheres e meninas, bem como determina o fortalecimento de políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o seu empoderamento em todos os níveis [1].
Ainda em sintonia com o tema da igualdade de gênero no Brasil e a nível internacional, a Organização das Nações Unidas engloba uma entidade dedicada exclusivamente a este objetivo, a ONU Mulheres (UN Women [2], tendo sido estabelecida pela Resolução da Assembleia Geral da ONU nº 64/289, de 2 de julho de 2010. Tal resolução estabelece sua atuação multilateral e em diferentes níveis de governança entre os Estados membros da organização [3].
Ressalta-se o tema sobre Mulheres antecederam a ONU Mulheres, tendo ocorrido quatro conferências mundiais no final do século 20: no México em 1975, na Dinamarca em 1980, no Quênia em 1985 e na China em 1995, sendo esta última de maior importância e repercussão [4].
Nesse sentido, o tema do feminicídio no Brasil possui um contexto de reconhecimento da defesa da mulher e da igualdade de gênero a romper com comportamentos culturais nocivos à integridade física e moral da mulher brasileira.
Somente em 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que a alegada tese da "legítima defesa da honra", um costume não previsto em legislação e discriminatório perante a condição da mulher no Brasil, contraria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida e da igualdade de gênero [5]. Nesse sentido, obsta-se a utilização dessa posição a qualquer etapa do processo penal, inclusive perante o Tribunal do Júri, considerada tal prova ou alegação como nula. A decisão do STF, em plenário, referendou a limitar deferida pelo ministro Dias Toffoli na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779 MC-REF/DF. O voto do referido ministro sustenta-se a partir da demonstração de dados alarmantes de casos de homicídio de mulheres publicados pelo Atlas da Violência 2020 (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — Ipea), entre os anos de 2008 a 2013:
Ao se analisarem os homicídios de mulheres pelo local de ocorrência, notam-se duas tendências distintas. A taxa de homicídios ocorridos fora da residência da vítima segue a mesma tendência da taxa geral de homicídios e da taxa total de homicídios de mulheres no país, com quedas nos períodos entre 2013 e 2018 e entre 2017 e 2018 (redução de 11,8% em ambos os períodos), e aumento no decênio 2008-2018 (3,4%). Por sua vez, a taxa de homicídios na residência segue outro padrão: enquanto a taxa ficou constante entre 2008 e 2013, aumentou 8,3% entre 2013 e 2018, havendo estabilidade entre 2017 e 2018.
Essas diferenças indicam a existência de dinâmicas diversas nos homicídios de mulheres nas residências em comparação com aqueles fora das residências. Ademais, considerando-se os homicídios ocorridos na residência como proxy de feminicídio, observa-se que 30,4% dos homicídios de mulheres ocorridos em 2018 no Brasil teriam sido feminicídios — crescimento de 6,6% em relação a 2017 —, indicando crescimento da participação da mortalidade na residência em relação ao total de mulheres vítimas de homicídio. Esse percentual é compatível com os resultados apresentados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em que a proporção de feminicídios em relação aos homicídios de mulheres registrados pelas polícias civis foi de 29,4% (Bueno et al., 2019) [6].
Além disso, salienta-se que o Código Penal Brasileiro de 1940 foi alterado a incluir, no crime de homicídio (artigo 121), a qualificadora da pena quando se tratar de feminicídio, a partir da Lei Federal nº. 13.104/2015 [7]:
"TÍTULO I- DOS CRIMES CONTRA A PESSOA
CAPÍTULO I – DOS CRIMES CONTRA A VIDA
Homicídio simples
Artigo 121. Matar alguém:
Pena – reclusão, de seis a 20 anos.
(…)
Feminicídio
VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
(…)
Pena – reclusão, de 12 a 30 anos".
Dessa forma, observa-se que o crime de feminicídio estabelece uma pena maior ao indivíduo, de 12 a 30 anos. A jurisprudência brasileira, em diferentes julgados sobre feminicídio, ressalta que, para ocorrer a qualificação do crime, é necessário que a mulher figure no polo passivo do delito e que este seja cometido por razões de condição de sexo feminino, envolvendo violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição da mulher [8].
Portanto, observa-se que a questão da igualdade de gênero e da proteção da mulher frente ao feminicídio não está encerrada. Pelo contrário, trata-se de importantes marcos jurídicos e de política pública a reforçar tais objetivos. A alteração na legislação brasileira é somente uma etapa para se obter a proteção da mulher, demandando investimentos em conscientização da população, políticas públicas e ações da sociedade civil organizada na promoção da igualdade e na efetivação dessas normas, a fim de que a cultura brasileira reconheça os direitos da mulher e permita a todas as mulheres o pleno exercício dos seus direitos fundamentais.
[1] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Objetivo 5. Igualdade de Gênero. Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5>. Acesso em: 26 jun. 2023.
[2] UNITED NATIONS. UN Women. About. Disponível em: <https://www.unwomen.org/en/about-us>. Acesso em: 26 jun. 2023.
[3] UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Resolution 64/289, adopted by the General Assembly on 2 July 2010. Disponível em: <https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N09/479/17/PDF/N0947917.pdf?OpenElement>. Acesso em: 26 jun. 2023.
[4] UN WOMEN. Beijing and its Follow-up. Disponível em: <https://www.un.org/womenwatch/daw/beijing/>. Acesso em: 26 jun. 2023.
[5] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Referendo na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779-DF. Voto do ministro relator Dias Toffoli. 15 de março de 2021. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346469193&ext=.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2023. p. 12-13.
[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Referendo na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779-DF. Voo do ministro relator Dias Toffoli. 15 de março de 2021. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346469193&ext=.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2023. p. 12-13.
[7] BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 26 jun. 2023; BRASIL. Lei Federal nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o artigo 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 — Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o artigo 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm>. Acesso em: 26 jun. 2023.
[8] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. Feminicídio – Natureza objetiva da qualificadora. 28 de abril de 2022. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/lei-maria-da-penha-na-visao-do-tjdft/crimes-e-procedimentos/feminicidio-natureza-objetiva-da-qualificadora#:~:text=Para a incidência do feminicídio,5º da Lei 11.340/2006>. Acesso em: 26 jun. 2023.
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