Opinião

Passo seguinte da Previdência tem sido planejar uma nova reforma

Autor

  • Carlos Vinicius Ribeiro Ferreira

    é mestre em Direito na linha de Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD/Uerj) advogado parecerista professor de pós-graduação e autor de artigos e obras jurídicas.

5 de julho de 2023, 13h14

As conclusões aqui lançadas constam, com maior profundidade, no meu recém-lançado livro O Argumento Financeiro na Previdência Social: o Falso Embate entre a Proteção Social e a Escassez Orçamentária, disponível no site da Juruá e da Amazon.

Recentemente, circulou na mídia uma notícia de que o déficit da previdência poderia quintuplicar até 2100 [1]. O tom é alarmante e desperta a atenção, e ressalto que a crítica não se dirige ao teor da reportagem, pois os jornalistas informaram exatamente o que consta no Relatório Contábil do Tesouro Nacional de 2022 — e esse, sim, merece especial atenção.

Com aparente propriedade, o relatório aponta que "a projeção atuarial do déficit para 2023 é de 2,0% e poderá chegar a 10,2% em 2100", baseando-se "em hipóteses de tendência de massa salarial, crescimento vegetativo, taxa de inflação, variação real do PIB, reajustes salariais e reajustes de demais benefícios, bem como a tendência demográfica do IBGE" [2].

Os parâmetros e fontes utilizados para o cálculo da projeção do resultado previdenciário, segundo afirma o relatório, poderiam ser observados na Nota "Projeção Atuarial do Regime Geral de Previdência Social" do Balanço Geral da União (BGU) de 2022. Busquei com afinco as fontes que dariam suporte ao relatório do Tesouro que, por sua vez, daria lastro à reportagem  e aqui começou o problema.

É certo que o conhecimento científico "tem como característica fundamental a sua verificabilidade" [3]. Não basta afirmar, nem mesmo relatar que foi adotado um rigor metodológico para se constatar o que se afirmou  ciência é verificável, ao passo que a divulgação de dados, necessariamente, exige que se apresentem os caminhos que levaram a determinada conclusão.

Não é o caso do que observei no BGU. No item 60, há a projeção a que faz referência o relatório, em que se afirma que "as entidades provedoras de benefícios sociais são incentivadas, mas não obrigadas, a elaborar Relatórios Contábeis de Propósito Geral que forneçam informações sobre a sustentabilidade de longo prazo das finanças da entidade".

Diante desse cenário, a nota conclui que se buscou "analisar a experiência internacional sobre a evidenciação da Previdência Social", ao passo que "as referências analisadas foram os Estados Unidos da América (EUA) e o Canadá, que figuram entre as maiores economias mundiais, pertencem à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e possuem sistemas similares ao RGPS" [4].

O BGU não demonstra qual seria o critério para a classificação das maiores economias mundiais  aqui, então, adotei o G7 como parâmetro, do qual são membros: Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos [5]. O segundo parâmetro utilizado foi que o país integrasse a OCDE. Pois bem: se todos os países membros do G7 integram a OCDE, quais seriam os motivos para segregar o exemplo do Canadá e dos Estados Unidos e importar o seu modelo de evidenciação?

Além disso, o BGU afirma que Estados Unidos e Canadá possuiriam "sistemas similares ao RGPS". Em relação à previdência estadunidense, afirma que "guardadas as devidas particularidades, o Social Insurance pode ser considerado equivalente ao RGPS e segue o regime de caixa". No caso do Canadá, "existe um plano de benefícios […] que, guardadas as devidas particularidades, é similar ao RGPS" [6]. Não se sabe, porém, quais as devidas particularidades que deveriam ser guardadas para que se pudesse importar os modelos de evidenciação estadunidense e canadense.

Tomando-se o exemplo do Canadá, é fato que o seu modelo é uma das mais bem sucedidas transformações em políticas públicas da história do país. Entretanto, conforme aponta Bruce Little, o sucesso da previdência canadense se deu por um grau de cooperação entre as províncias e o governo federal, de modo que a maioria dos países tinha uma variedade de programas que tentavam alcançar o mesmo patamar atingido pelo Canadá, mas o sistema canadense estava firmemente enraizado em sua própria realidade protetiva [7].

Ressalto que não seria necessário que o relatório pormenorizasse os motivos que levariam a adotar modelos de determinados países  apesar disso, deveria o BGU apontar algum estudo ou obra que analisasse o modelo previdenciário escolhido e atestasse a possibilidade de importação. A análise comparada exige "um conhecimento dos conceitos utilizados nos países, uma profunda noção do funcionamento do direito, das instituições e da sociedade estrangeiras" [8]. Assim, a comparação dos modelos brasileiro, estadunidense e canadense não possui embasamento teórico e metodológico.

Pois bem. Seria possível discorrer, por mais alguns parágrafos, sobre a impropriedade metodológica e técnica dessa importação automática  mas, por incrível que pareça, o próprio relatório do BGU aponta para uma conclusão sincera sobre as lacunas de seus mecanismos de aferição de déficit:

No âmbito do Governo Federal brasileiro, está em discussão qual deve ser a melhor forma de evidenciação para o RGPS.

Neste exercício e no exercício anterior, na União, considerando o contexto anteriormente apresentado, não foi realizada a consolidação do passivo atuarial relacionado ao RGPS por entender que é necessário o avanço da discussão sobre esta temática para o aperfeiçoamento do modelo contábil nacional. Entretanto, na tabela a seguir, é apresentada a projeção do resultado previdenciário do RGPS para um horizonte de 78 anos.

Afastado o juridiquês, os dois parágrafos poderiam ser transcritos da seguinte forma: "O sistema estadunidense e canadense, apesar de serem similares ao RGPS, não possuem modelos de verificação atuarial aplicáveis ao caso brasileiro. No Brasil, o modelo contábil e atuarial ainda está em discussão, de modo que não se tem certeza de qual seria a melhor forma de evidenciação para o RGPS. Apesar disso tudo, segue uma planilha que realiza projeções para os próximos 78 anos".

Desta maneira, não seria incorreto apontar que, passando ao largo de qualquer critério científico, a projeção se revela verdadeiro exercício de futurologia. E pior: as conclusões são referidas sem demais preocupações no Relatório Contábil do Tesouro Nacional de 2022 e, em seguida, publicado na mídia com a informação de que o déficit previdenciário poderia ser quintuplicado até 2100.

Não há embasamento para se afirmar o futuro apocalíptico da previdência social como pareceu pretender o relatório do Tesouro Nacional e o do BGU. Porém, e infelizmente, já se pode prever que os referidos dados integrarão a "base de sustentação" de uma potencial nova reforma da previdência. Ao menos, foi isso que ocorreu anteriormente, a exemplo da Emenda Constitucional nº 103/2019.

Nesse sentido, em abril de 2019, quando requerido acesso aos estudos que dariam base à reforma proposta, a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho afirmou que os elaborou "no âmbito de suas competências regimentais", mas que "todos os expedientes foram classificados com nível de acesso restrito por se tratar de documentos preparatórios" [9]  o que não impediu, por outro lado, que se anunciasse que a reforma traria uma "economia" de mais de R$ 1 trilhão.

Após pressão dos parlamentares, o Governo Federal disponibilizou os estudos, materializados na Nota Técnica SEI nº 6/2019/SPREV/SEPRT-ME. Na descrição da metodologia constante no documento, um parágrafo em especial chama a atenção [10]:

As estimativas de economia no âmbito do RGPS foram obtidas a partir do modelo de projeções fiscais do RGPS. Esse modelo foi desenvolvido com a participação de equipe da STN, SPE e Ipea, e é continuamente aperfeiçoado e utilizado pela Secretaria de Previdência/SPREV para as projeções de médio e longo prazo constantes no Anexo IV.6 do PLDO 2019. O arcabouço metodológico desse modelo segue padrões internacionais tais como os modelos amplamente utilizados pelo Banco Mundial (Modelo Prost ― Pension Reform Options Simulation Tool kit) e pela Organização Internacional do Trabalho (ILO-Pension Model).

Essa metodologia foi objeto de um levantamento em que se apontou que, de forma tendenciosa, ela superestimaria as despesas e subestimaria as receitas, ausente um padrão de confiabilidade mínimo para ser um método de avaliação da necessidade de reforma do sistema previdenciário, pois deveria explicitar o desenvolvimento matemático, a forma de implementação realizada e os resultados obtidos [11]. Nesse sentido, a ausência de um conjunto de dados completos torna matematicamente impossível estimar todas as possibilidades, além de que diversas variáveis apresentadas como fundamento dos cálculos não mencionam as fontes de que foram extraídas.

A despeito da problemática apontada [12], ressalta-se que a "metodologia" e "modelagem matemática" que teriam dado sustentação para a EC 103/2019 é a mesma utilizada por todos os Projetos de Lei de Diretrizes Orçamentárias, ao menos, desde 2018 [13]. Inclusive, uma vez constante no PLDO de 2024 [14], e apesar de ainda se encontrar em trâmite, a projeção foi objeto de outra manchete alarmante, no sentido de que o "rombo previdenciário" dobraria até 2060 [15].

Ante todo o histórico de criação de dados para que a previdência fosse e seja reformada de acordo com os interesses governamentais, é válido questionar: quais as prioridades dos governos em se tratando da Previdência Social? Com base nos próprios dados fornecidos, tem-se que não é possível afirmar a existência de déficit ou superávit, principalmente atuarial, em virtude da ausência de transparência sobre a forma de cálculo e a inexistência de um modelo confiável e eficaz de cálculo atuarial  mas o referido discurso de déficit insiste em se fazer presente.

Os postulados financeiros têm funcionado como um substrato, ainda que inflado e irreal, para apresentar um pretenso cenário catastrófico das contas previdenciárias e, consequentemente, operar no convencimento social de que o sistema seria insustentável e, por isso, a reforma da previdência seria a única saída possível. Reformas são importantes e necessárias, mas não se promove a alteração do sistema protetivo para economizar recursos, principalmente se não houver meios concretos para apontar a real situação financeira dos caixas previdenciários.

A reforma se tornou um medicamento amargo para a proteção previdenciária no Brasil, ao mesmo tempo em que nem se sabe qual seria a doença que estaria sendo combatida e em qual grau ela estaria se manifestando. Se o que diferencia o remédio do veneno é a dose, a posologia reformista deve se reprogramar para focar no real objetivo da previdência social: cobertura da população contra os riscos sociais – sob pena de o paciente não suportar as intervenções desmedidas e sem embasamento.

 


[1] SANT'ANA, Jéssica; PIMENTA, Guilherme. Déficit da previdência pode quintuplicar até 2100. Valor Econômico, 20 de junho de 2023. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/06/20/deficit-da-previdencia-pode-quintuplicar-ate-2100.ghtml. Acesso em: 24 jun. 2023.

[2] BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Relatório Contábil do Tesouro Nacional – 2022: Uma Análise dos Ativos, Passivos e Fluxos Financeiros da União. Brasília, 20 de junho de 2023. 2023a, p. 104. Disponível em: https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO:47256. Acesso em: 24 jun. 2023.

[3] GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª edição. São Paulo: Atlas, 2008, p. 8.

[4] BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Balanço Geral da União – 2022: Demonstrações Contábeis Consolidadas da União. Brasília, 05 de abril de 2023. 2023b, p. 329. Disponível em: https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO:46468. Acesso em: 24 jun. 2023.

[5] MOLITERNO, Danilo; BOSA, Gabriel. Saiba o que é o G7, o grupo das maiores economias do mundo. CNN Brasil, 19 de maio de 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/saiba-o-que-e-o-g7-o-grupo-das-maiores-economias-do-mundo/amp/. Acesso em: 25 jun. 2023.

[6] BRASIL, op. cit., 2023b, p. 330..

[7] LITTLE, Bruce. Fixing the future: how Canada's usually fractious governments worked together to rescue the Canada Pension Plan. Toronto: Rotman, 2008, pp. XV e 95.

[8] SIQUEIRA, Gustavo Silveira. Pequeno Manual de Metodologia da Pesquisa Jurídica: ou roteiro de pesquisa para estudantes de direito. 2ª edição. Belo Horizonte: Instituto Pazes, 2021, p. 95.

[9] FABRINI, Fábio; CARAM, Bernardo. Governo decreta sigilo sobre estudos que embasam reforma da Previdência. Jornal Folha de São Paulo, 21 de abril de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/governo-decreta-sigilo-sobre-estudos-que-embasam-reforma-da-previdencia.shtml. Acesso em: 02 out. 2022.

[10] BRASIL. SECRETARIA DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. Nota Técnica SEI nº 6/2019/SPREV/SEPRT-ME. Brasília, 2019, p. 96. Disponível em: http://sa.previdencia.gov.br/site/2019/04/PEC-6-2019-MANIFESTACOES-TECNICAS-SEI_10128.100105_2019_01b.pdf. Acesso em: 04 jan. 2023.

[11] PUTY, Carlos Alberto Castelo Branco; et al. O novo modelo atuarial do Governo Federal para o RGPS: as inconsistências permanecem. 2017, p. 3. Disponível em: https://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2017/06/ArtigoRGPS.pdf. Acesso em: 06 nov. 2022. O estudo de 2017 realizado por Puty et al. pode ser utilizado como parâmetro para verificação dos critérios atuariais da reforma proposta pela EC 103/2019 em decorrência de a metodologia ter sido adotada em 2016 e replicada nas propostas de alteração previdenciária e nos textos dos Projetos de Lei de Diretrizes Orçamentárias de todos os anos desde então.

[12] Para aprofundar mais o tema, destaco o Capítulo 3, item 3.3, de meu livro.

[13] FERREIRA, Carlos Vinicius Ribeiro. O argumento financeiro na Previdência Social: o falso embate entre a proteção social e a escassez orçamentária. Curitiba: Juruá, 2023, p. 142.

[14] BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei do Congresso Nacional n° 4, de 2023 (PLDO 2024). Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e a execução da Lei Orçamentária de 2024 e dá outras providências. Anexo IV.5 – Projeções Atuariais para o Regime Geral de Previdência Social – RGPS. Brasília, 2023, pp. 30-32. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9322179&ts=1686836431300&disposition=inline. Acesso em: 25 jun. 2023.

[15] MARTELLO, Alexandro. Governo estima que rombo previdenciário deve dobrar até 2060; analistas veem necessidade de nova reforma no futuro. G1, Economia. Brasília, 13 de maio de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/de-olho-no-orcamento/noticia/2023/05/13/governo-estima-que-rombo-previdenciario-deve-dobrar-ate-2060-analistas-veem-necessidade-de-nova-reforma-no-futuro.ghtml. Acesso em: 18 mai. 2023.

Autores

  • é mestre em Direito na linha de Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD/Uerj), advogado, parecerista, professor de pós-graduação e autor de artigos e obras jurídicas.

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