Opinião

Caso Warhol v. Goldsmith: uso justo aplicado às artes plásticas

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5 de julho de 2023, 16h20

Em 18 de maio de 2023, a Suprema Corte americana consolidou seu entendimento sobre o primeiro caso de fair use aplicado às artes plásticas ao examinar o caso Warhol v. Goldsmith (Andy Warhol Foundation for the Visual Arts, Inc. v. Lynn Goldsmith, et al., No. 21-869).

No cerne do caso estava o alcance da exceção prevista na lei de direitos autorais americana (Seção 107 do Copyright Act), que permite, em certas situações, o uso por terceiros de obras protegidas por direito autoral mesmo sem a autorização dos detentores de tais direitos — o chamado uso justo da obra original.

Apesar do caso ter sido examinado, obviamente, sob a ótica do sistema de common law americano, a discussão sobre o direito de criar a partir de uma obra anterior protegida por direito autoral é relevante a todo mercado artístico, especialmente nos dias atuais em que a arte de apropriação é progressivamente mais comum. Em uma cultura digital, o rápido avanço tecnológico trazido pela indústria de Web3 e a Inteligência Artificial generativa mudou o modo como criamos e consumimos arte e conteúdo em geral.

Breve histórico do caso
Conhecida nos Estados Unidos como a fotógrafa do rock'n'roll, Lynn Goldsmith retratou, ainda em 1981, o artista pop Prince. A sessão de fotos foi dividida entre duas locações — um show do músico em Nova York, e o estúdio da fotógrafa na mesma cidade.

Anos depois, Goldsmith autorizou, por meio de uma licença limitada para uso específico, que a revista Vanity Fair utilizasse uma de suas fotografias de Prince (figura 1) para criar uma ilustração artística e utilizá-la em um artigo jornalístico sobre cantor. Com os devidos créditos atribuídos à fotografa, tal ilustração foi então criada pelo artista Andy Warhol (Purple Prince — figura 2) e publicada por Vanity Fair em 1984.

O que a fotógrafa não imaginava à época é que durante o trabalho realizado por Warhol para Vanity Fair, o artista teria também criado outras 15 ilustrações derivadas da mesma fotografia licenciada por Goldsmith, intitulando a coletânea de Prince Series.

Em 2016, ano da morte de Prince, a Warhol Foundation, entidade que administra o legado de Andy Warhol, concedeu à revista Condé Nast, empresa controladora de Vanity Fair, o direito de uso de uma das outras ilustrações da coletânea Prince Series — Orange Prince – sem, no entanto, atribuir qualquer crédito à Goldsmith, tampouco a remunerando.

Reprodução

Com a publicação, Goldsmith tomou conhecimento da coletânea completa de Warhol e exigiu da fundação reparação pela suposta infração de seus direitos autorais sobre a fotografia original utilizada para criação da coletânea Prince Series de Warhol.

A Fundação refutou o pedido de reparação de Goldsmith sob o argumento de que a coletânea Prince Series seria uma obra distinta da fotografia original de Goldsmith ou, em último caso, que o uso feito por Warhol seria um uso justo (fair use) da obra original nos termos da exceção prevista pelo Copyright Act americano. Como forma de dirimir a disputa entre as partes, a fundação ingressou com uma ação declaratória de não infração perante o Tribunal Distrital de Nova York buscando estabelecer que a obra de Warhol não infringia os direitos de Goldsmith sobre a fotografia original.

Enquanto o Tribunal Distrital Federal considerou que a coletânea Prince Series de Warhol era transformadora porque transmitia uma mensagem diferente da obra original, sendo, portanto, um “uso justo” daquela, o Tribunal de Apelações do Segundo Circuito discordou de tal conclusão pontuando que os juízes não devem assumir o papel de críticos de arte e procurar determinar o significado das obras em disputa. A Suprema Corte decidiu então apreciar o caso e dirimir a discussão sobre a aplicação dos princípios de fair use aplicados às artes plásticas.

A doutrina de Fair Use americana
A doutrina de fair use, consolidada na legislação americana na Seção 107 do Copyright Act, é uma limitação ao direito de exclusividade atribuído ao detentor dos direitos autorais (copyright) de obras intelectuais, que permite o uso da obra por terceiros sem a necessidade de autorização ou remuneração ao autor originário. Para determinar se um uso se enquadra na exceção de fair use, a legislação americana considera a aplicação equilibrada de quatro fatores: (1) o objetivo do uso da obra original (crítica, comentário, jornalístico, educacional, pesquisas, etc) e a finalidade do novo uso da obra (natureza comercial ou educacional, sem fins lucrativos); (2) a natureza da obra protegida (ex. inédita ou não, ficção ou não, etc); (3) extensão utilizada da obra original como um todo; e (4) o efeito do novo uso no mercado potencial para comercialização da obra original ou em seu valor.

As decisões anteriores da própria Suprema Corte americana que envolveram o princípio do fair use examinaram casos de uso de obras autorais em paródias musicais (Campbell, aka Skywalker et al. v. Acuff-Rose Music, Inc.) [1] e em sistemas de programação (Google LLC v. Oracle America, Inc.) [2].

No primeiro caso, a corte estabeleceu que o mero uso comercial de nova versão da música Oh Pretty Woman não, necessariamente, a caracterização do uso justo (paródia) desde que os demais elementos prescritos pela legislação também fossem encontrados no caso concreto. Um dos principais pontos observados pela corte na aplicação da doutrina do fair use neste caso foi o grau de transformação que a nova obra trouxe à obra original. Nesse sentido, como medida de equilíbrio entre os 4 fatores de fair use, entendeu-se que quanto mais transformador for a nova obra, menor será a importância dos demais fatores, como, por exemplo, o propósito comercial da nova obra [3] (SCOTUS Opinion, p. 569 [4]).

Já no caso mais recente entre Google e Oracle, a discussão focou no desenvolvimento pela Google de uma versão do sistema de programação Java (lançado em 1995 pela Sun Microsystems, hoje subsidiária da Oracle Corporation) no desenvolvimento do sistema Android, atualmente de amplo uso em smartphones. Neste caso, a Corte entendeu que o código Java utilizado no desenvolvimento do sistema operacional Android teve uma espécie de "função organizacional", que se limitou a 0,4% do código-fonte, apenas o necessário para que os programadores pudessem incluir recursos em aplicativos Android. Além disso, foi provado nos autos que o mercado atingido pelo programa da Google não era o mesmo do mercado da Java, não havendo, portanto, interferência na comercialização dos produtos. Assim, tomando como base principalmente os fatores 3 e 4, a corte considerou o uso de Google como sendo fair use.

No caso em discussão, a Suprema Corte reafirmou a decisão da corte de Apelação, entendendo que Goldsmith teve seus direitos autorais violados por Warhol já que as duas imagens (a de Goldsmith e a licenciada por Warhol Foundation à Condé Nast) serviram ao mesmo objetivo — ilustrar uma matéria jornalística sobre uma celebridade — sem que qualquer uso transformador, sátira ou paródia tenha sido verificado.

O uso justo no Brasil
No Brasil, a doutrina do fair use (ou do "uso justo") pode ser comparada às limitações aos direitos autorais presentes no artigo 46 da Lei de Direitos Autorais (Lei n. 9.610/98 – "LDA"). Tais limitações, são oriundas da Convenção de Berna [5] e do Acordo Trips [6], acordos internacionais cujo Brasil é signatário. As limitações, segundo as normas internacionais incorporadas em nosso ordenamento pátrio, devem observar a “regra do teste dos três passos”, que consiste em admitir a reprodução não autorizada de obras de terceiros (1) em casos excepcionais, desde que a reprodução (2) não conflite com a exploração normal da obra reproduzida; e (3) não prejudique, injustificadamente, os interesses legítimos do titular do direito [7].

Nessa linha, vale destacar o artigo A Publicidade, a Regra dos 3 Passos e Jurisprudência do STJ [8], que discorre sobre a regra do teste dos três passos e pondera sobre a necessidade de se aplicar, em equilíbrio, outros dois requisitos que devem ser considerados quando da análise das limitações de uso previstas na LDA. São eles: (4) a limitação à pequenos trechos (à exceção das artes plásticas que poderia ser reproduzida integralmente) e a necessidade de criação de uma obra nova. Apesar de esse não ser o seu objetivo principal, o artigo nos faz refletir se o requisito relacionado à criação de uma obra nova, que, em certa medida, poderia ser comparada ao uso transformador do Copyright Act, seria amplamente debatido no caso Warhol v. Goldsmith, se julgado no Brasil.

Na jurisprudência brasileira há aplicação da regra do teste dos três passos em casos, por exemplo, envolvendo obras musicais. Um exemplo é o julgamento do REsp 1.217.567/SP, interposto pela Editora Abril S/A contra Sidem Sistema Globo de Edições Musicais Ltda derivado de uma ação ordinária de indenização por violação de direitos autorais. Na ação, Sigem acusava Editora Abril de reproduzir parcialmente trecho da obra lítero-musical intitulada Dancin’ Days na edição de fevereiro/99, da revista Playboy, de forma não autorizada e indevida. Segundo Sigem, a reprodução indevida do trecho da música levou a empresa a perder negócio com outras empresas que reproduziriam a música em comercial televisivo.

Ao considerar os fundamentos do artigo 46 da LDA, entendeu a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que o uso do trecho em questão não se enquadrava nos permissivos legais que permitem a reprodução de obra de forma não autorizada. Segundo o relator, o ministro Luis Felipe Salomão, a utilização do pequeno trecho, no caso concreto, viabilizou uma contemplação da obra mais atenta, bem como valorizou a obra, logo, a "obra nova" não seria a mesma sem o trecho reproduzido.

Além disso, restou incontroverso que o uso do pequeno trecho causou prejuízos à exploração normal da obra, uma vez que os detentores do direito patrimonial dela exploravam economicamente a obra por meio de contratos de licença específico. Por fim, baseando-se nas demais licenças concedidas pela detentora dos direitos sobre a obra musical, o tribunal também pontuou que nunca foi de interesse legítimo dos autores da obra vincular a mesma ao mercado erótico. Assim, a violação ao direito autoral restou configurada.

A aplicação dos princípios de uso justo às artes visuais no Brasil, entretanto, ainda é incerto. Em que pese o STJ já tenha enfrentado alguns casos envolvendo o uso não autorizado de obras, nenhum deles é ligado diretamente às artes plásticas e, principalmente, em nenhum deles há a criação de uma nova obra com base na reprodução integral de uma obra anterior.

Conclusão
É difícil prever, com a legislação hoje vigente no Brasil, os rumos que o caso Warhol v. Goldsmith teria no país. Enquanto nos Estados Unidos a legislação busca proteger de forma mais rigorosa o direito patrimonial do autor, no Brasil, a legislação visa proteger, principalmente, os direitos morais do autor da obra. Além disso, seria difícil prever se os Tribunais brasileiros veriam a obra de Warhol como uma reprodução integral da obra de Goldsmith ou se entenderiam que, embora a reprodução tenha se dado de forma integral, a mesma não consistiu no objetivo principal da nova obra. Entretanto, a decisão proferida pela Suprema Corte norte-americana pode servir para inspirar avanços nas discussões sobre o tema no Brasil.

Fato é que o caso Warhol v. Goldsmith se projeta para além do direito norte-americano especialmente frente às questões de uso de obras autorais protegíveis em aplicações digitais.

Tomando-se como exemplo a comercialização de obras autorais em NFTs, bem como a proliferação de fanarts que já representam uma porção considerável de obras digitais disponíveis em plataformas como o Behance [9], a decisão não apenas pode ser aplicada na proteção de fotografias autorais, como de quaisquer outras criações do espírito que venham a ser apropriadas por terceiros sem atividade transformativa ou intenção satírica.

 


Referências

LANDES, William M; POSNER, Richard A. The Legal Protection of Postmodern Art. In: The economic structure of intellectual property law. Cambridge, Massachusetts, and London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 2003.

MEYERS, Emily. Art on Ice: The Chilling Effect of Copyright on Artistic Expression. Columbia Journal of Law & the Arts 30, no. 2, 2007, pp. 219-244.

PROWDA, Judith B. Visual Arts and the law: A handbook for professionals. London, UK: Lund Humphries e Sotheby’s Institute of Art, 2013.

STECH, Molly Torsen. A reflection on The Warhol Foundation v. Lynn Goldsmith. Antiquity & Law, vol. 26, no. 2, July 2021, pp. 161-167.

SOUZA, Monique Peixoto; MARINELI, Marcelo Romão. O Fair Use na Indústria Fonográfica: um Estudo sobre a Aplicabilidade no Direito Autoral Brasileiro. In: Direito: ramificações, interpretações e ambiguidades. Organizador Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos – Ponta Grossa – PR: Atena, 2021

BOYDEN, Bruce E. The Stakes in Andy Warhol Foundation v. Goldsmith. Disponível em: https://law.marquette.edu/facultyblog/2022/10/the-stakes-in-andy-warhol-foundation-v-goldsmith/. Último acesso em 15.02.2023.

CARLISLE, Stephen. Warhol v. Goldsmith: Court of Appeals "Rolls Back the Tide" on the "High Water Mark" of Transformative Use. Disponível em: http://copyright.nova.edu/warhol/. Último acesso em 15.02.2023.

 


[1] No. 510 U.S. 569 (1994). No caso, o grupo de rap 2 Live Crew gravou uma versão com letras provocantes da conhecida Oh Pretty Woman, de Roy Orbinson, mesmo depois de terem seu pedido para tanto negado pelos titulares dos direitos da música, a gravadora Acuff-Rose.

[2] No. 18-956. Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/20pdf/18-956_d18f.pdf. Ultimo acesso em 19 de junho de 2023.

[3] Do original: "the enquiry focuses on whether the new work merely supersedes the objects of the original creation, or whether and to what extent it is'transformative,' altering the original with new expression, meaning, or message. The more transformative the new work, the less will be the significance of other factors, like commercialism, that may weigh against a finding of fair use".

[5] Artigo 9.2. "2) Às legislações dos países da União reserva-se a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor."

[6] Artigo 13. Limitações e Exceções. Os Membros restringirão as limitações ou exceções aos direitos exclusivos a determinados casos especiais, que não conflitem com a exploração normal da obra e não prejudiquem injustificavelmente os interesses legítimos do titular do direito.

[7] Art. 46, VIII, LDA. Não constitui ofensa aos direitos autorais: VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

[8] LEONARDOS, Gabriel. "A Publicidade, a Regra dos 3 Passos e jurisprudência do STJ". Revista ABPI. Edição 182. Mês: Janeiro | Fevereiro | Ano: 2023.

[9] Behance é uma plataforma do grupo Adobe conhecida por ser a principal vitrine virtual para exibir e descobrir criações artísticas.

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