Conflito de direitos

Causa ganha na Suprema Corte dos EUA por designer cristã se originou em trote

Autor

3 de julho de 2023, 9h48

A decisão da Suprema Corte dos EUA na sexta-feira (30/6), que deu ganho de causa a uma designer evangélica que não quer criar sites para celebrar casamentos gays, com base em seu direito constitucional à liberdade de expressão, trouxe um momento de glória para o mundo cristão do país e de depressão para a comunidade LGBTQIA+ — como era de se esperar.

Phil Roeder/Wikimedia
Corte julgou causa de designer que não queria criar sites para casais homoafetivos
Phil Roeder/Wikimedia

O que não era esperado — e só foi revelado agora pelo site The New Republic e confirmado pelo USA Today, Washington Post e Associated Press — foi a notícia de que um homem chamado Stewart, que teria solicitado à empresa 303 Creative, da designer Lorie Smith, a criação de um site para celebração de seu casamento com outro homem, na verdade nunca fez tal pedido.

No decorrer da ação movida por Lorie Smith contra o Colorado há sete anos, procuradores do estado pressionaram a designer para revelar as identidades do casal gay que teria solicitado seus serviços, para avaliar se ela tinha legitimidade para processar. Em 2017, a designer forneceu o nome de Stewart (sem sobrenome), seu endereço, e-mail, telefone e website.

Contatado por um repórter do The New Republic, Stewart, que não quis revelar seu sobrenome por medo de represálias, declarou que não é gay, vive um casamento feliz com uma mulher há 15 anos, é pai, sequer sabia que seu nome estava envolvido no processo e não contrataria uma empresa para fazer um site, porque ele mesmo é um web designer.

Indagada, a advogada da designer Kristen Waggoner, que é CEO da Alliance Defending Freedom (ADF), uma organização jurídica conservadora que patrocinou a ação de Lorie Smith contra o Colorado, declarou que o pedido foi feito, embora isso possa ter sido um trote — na melhor das hipóteses porque, alternativamente, seria uma declaração falsa no processo.

Sob esse aspecto, a designer não teria legitimidade para processar. O site da organização que patrocinou sua causa, a Alliance Defending Freedom, explica: "Para ter legitimidade, a parte precisa comprovar que houve um 'dano de fato' a seus próprios interesses legais. Se a parte não pode comprovar que sofreu dano, não tem legitimidade para mover uma ação".

Mas um tribunal de recursos, que decidiu contra ela no mérito, reconheceu que ela tinha legitimidade para mover a ação, o que a decisão da Suprema Corte reafirmou. A justificativa é a de que a lei do Colorado iria compeli-la a criar um website para celebrar um casamento gay, o que seria uma ofensa a sua fé religiosa. Isso significaria, portanto, uma "ameaça acreditável".

A decisão da Suprema Corte reconhece que a oferta de criação de sites para celebrar a união exclusivamente entre um homem e uma mulher estava apenas nos planos da designer, que não chegaram a ser executados. Mas a corte adotou a teoria da "pre-enforcement challenge". O site da banca Jones Day define assim essa teoria:

"Uma pessoa ou empresa que queira recorrer ao instrumento da pre-enforcement challenge deve comprovar uma ‘ameaça acreditável’ de execução. Isto é, deve mostrar que: 1) planeja se engajar em conduta que possivelmente pode se enquadrar no escopo de uma determinada lei; 2) há uma boa chance de que o governo irá executar a lei contra ela, se for em frente com a conduta planejada."

A Suprema Corte decidiu a favor da fé religiosa da designer por 6 votos (conservadores) a 3 (liberais). A decisão da maioria, relatada pelo ministro Neil Gorsuch, se sustentou, no entanto, no direito à liberdade de expressão, garantido pela Primeira Emenda da Constituição. O voto dissidente, escrito pela ministra Sonia Sotomayor, reforçou, acima de tudo, o estrago que a decisão da maioria estava fazendo nos direitos da comunidade LGBTQIA+.

Trechos do voto de Gorsuch
"Como as criações de Lorie Smith são reconhecidas como expressão, o estado não pode compeli-la a criar uma mensagem na qual ela não acredita, mesmo que ela ofereça seus talentos ao público em geral".

"Esta corte decidiu há tempos que a oportunidade de pensar por nós mesmos e de expressar esses pensamentos livremente está entre nossas liberdades mais apreciadas e é parte do que mantém nossa República forte. É claro que cumprir o compromisso da Constituição com a liberdade de expressão significa que todos nós iremos encontrar ideias que não consideramos atrativas."

"Os constituintes projetaram a Cláusula da Liberdade de Expressão na Primeira Emenda para proteger a liberdade de pensar como você quiser e de se expressar como você pensar. Eles assim fizeram porque viram a liberdade de expressão como um fim e um meio. Um fim porque a liberdade de pensar e falar está entre nossos direitos humanos inalienáveis. Um meio porque a liberdade de pensar e falar é indispensável na descoberta e na disseminação da verdade política."

"Ao permitir que todos os pontos de vista floresçam, os constituintes entenderam que podemos testar e melhorar nosso pensamento como indivíduos e como nação. Por todas essas razões, há uma estrela fixa em nossa constelação constitucional. É o princípio de que o governo não pode interferir em um mercado irreprimido de ideias."

Trechos do voto de Sonia Sotomayor
"Há cinco anos, esta corte reconheceu a 'regra geral' de que objeções religiosas e filosóficas ao casamento gay não permite que proprietários de empresas e outros atores na economia e na sociedade neguem às pessoas acesso igual a bens e serviços, de acordo com a lei de acomodações públicas aplicadas de forma neutra e geral [em Masterpiece Cakeshop, Ltd. v. Colorado Civil Rights Comm’n – um caso em que um confeiteiro do Colorado se recusou a fazer um bolo de casamento para um casal gay]."

"A corte também reconheceu o 'sério estigma' que poderia ocorrer, se fornecedores de bens e serviços, que têm objeções ao casamento gay por razões morais e religiosas, pudessem colocar uma placa dizendo que nenhum bem ou serviço será vendido para ser usado em casamento gay. Que diferença cinco anos fazem."

"Hoje, a corte, pela primeira vez na história, garante a uma empresa aberta ao público o direito constitucional de recusar serviços a membros de uma classe protegida. Especificamente, a corte decide que a Primeira Emenda isenta uma firma de web design de uma lei estadual que a proíbe de negar a criação de um website a casais do mesmo sexo, se a empresa pretende vender seus serviços ao público. E reconhece que a empresa tem o direito de colocar uma nota em seu website, dizendo que não atenderá casais gays."

"Quando [no passado] movimentos de direitos civis e de direitos das mulheres lutaram pela igualdade na vida pública, alguns estabelecimentos públicos se recusaram [a fornecer bens e serviços a minorias]. Alguns reivindicaram, com base em crenças religiosas sinceras, o direito constitucional de discriminar. Mas os bravos ministros, que uma vez se sentaram nesta corte, rejeitaram decisivamente essas reivindicações."

"A maioria protege a empresa contra uma lei que proíbe a discriminação na venda de bens e serviços, com base na cláusula da liberdade de expressão da Primeira Emenda. No entanto, a lei se refere à conduta, não à expressão, em sua regulamentação. E o ato de discriminar nunca constituiu expressão protegida pela Primeira Emenda."

A "lei de acomodações públicas" garante a todos os cidadãos "o desfrute completo e igual de lugares públicos, sem discriminação injusta". As leis federais, Civil Rights Act de 1964 e Americans with Disabilities Act de 1990, proíbem discriminação por "acomodações públicas" com base em raça, cor, religião, nacionalidade ou deficiência.

Apoios
Em apoio à designer cristã, a Suprema Corte recebeu como amicus curiae 20 procuradores-gerais de estados republicanos, 60 membros do Partido Republicano no Congresso, de várias igrejas e organizações religiosas.

Em apoio ao estado do Colorado, a corte recebeu como amicus curiae a American Civil Liberties Union (ACLU), da Human Rights Campaign, de grupos de defesa de LGBTQIA+, 137 membros do Congresso, 21 procuradores-gerais de estados e da American Bar Association (ABA).

O governo Biden defendeu o estado do Colorado na audiência de sustentação oral na Suprema Corte, junto com o procurador-geral do estado.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!