Opinião

Paradoxo do queijo suíço e o direito educacional no país

Autores

  • Lucas Sachsida Junqueira Carneiro

    é promotor de Justiça e coordenador do Núcleo de Defesa da Educação do Ministério Público do Estado de Alagoas membro da Comissão Permanente de Educação e do Grupo Nacional de Trabalho Interinstitucional Fundef/Fundeb da 1ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (1ª CCR).

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

3 de julho de 2023, 11h26

Quanto mais queijo, mais buracos. Quanto mais buracos, menos queijo. Portanto, quanto mais queijo, menos queijo. O paradoxo do queijo suíço é um ensaio, contraintuitivo (por isso um paradoxo), utilizado para se explicar como as falhas, os acidentes e os fracassos acontecem em sistemas complexos, especialmente quando sua evolução é feita sem o conhecimento necessário de sua própria complexidade. O paradoxo do queijo suíço é instituto utilizado nas ciências médicas e exatas, mas temos um exemplo interessante no universo jurídico: o direito educacional brasileiro.

O desconhecimento dos princípios básicos de direito educacional (artigo 205 e seguintes. da Constituição de 1988) e da sua estrutura legislativa nuclear (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional — LDB, Plano Nacional de Educação, Lei do Fundeb etc.) fez nascer nos últimos anos normas e programas de governo que estão alheios à integridade de tal sistema normativo, refletindo numa pujante ineficiência do direito fundamental à educação. O contexto atual é indiscutível, eis que estamos no último ano de vigência do Plano Nacional de Educação com 85% de suas metas não cumpridas, sendo que dessas, 65% estão em retrocesso[1].

Os exemplos de evolução normativa dissociada do contexto geral são muitos. Veja-se a retirada, feita pela Lei 14.276/2021 daqueles profissionais de assistência social e psicologia ligados ao processo de ensino-aprendizagem do conceito de profissionais de educação, retirando-os, portanto, do plexo dos 70% das verbas do Fundeb destinados à valorização dos profissionais da educação e, portanto, dificultando[2] consideravelmente que as redes de ensino contem com referidos serviços de forma adequada, conforme determina a Lei 13.935/2019.

Além disso, esqueceu-se do fato de que a educação brasileira tenta se reerguer das mazelas do período pandêmico cujas questões sociais e psicológicas passaram a ser um desafio diário a ser superado no contexto escolar e, ademais, que o Brasil é o segundo maior país em ataques contra as escolas no mundo[3] e que esses profissionais são essenciais, também, para o enfrentamento respectivo. Nesse contexto mais recente de violência contra as escolas, o erro normativo veio à lume com um tom constrangido de arrependimento, quando soluções pretensiosamente milagrosas (detectores de metais, aumento de muros etc.) trouxeram à luz, ainda mais, o fato de a Lei 13.935/19 estar em franco descumprimento no país e, portanto, que muitas das redes de ensino não tinham, efetivamente, psicólogos e assistentes sociais inseridos no processo de ensino-aprendizagem. Aliás, percebeu-se que muitos não sabiam nem mesmo a diferença funcional daqueles que atuam nas pastas de saúde e assistência social daqueles que atuam no processo de ensino aprendizagem.

Mais um exemplo: a publicação de cartilha sobre homeschooling pelo MEC[4] [5] (que parecia não perceber outras prioridades mais evidentes diante do apagão da educação pública durante a pandemia) e o debate legislativo sobre sua criação no país, enquanto o Congresso Nacional, em sentido diametralmente oposto, a despeito de fazê-lo quase concomitantemente, aprovava a Lei 14.333/2022 que reconhecia a importância do ambiente escolar, e portanto dos "(…) insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem adequados à idade e às necessidades específicas de cada estudante, inclusive mediante a provisão de mobiliário, equipamentos e materiais pedagógicos apropriados" (LDB, artigo 4º, inciso IX).

A nova Lei do Fundeb (Lei 14.113/2020), que de fato trouxe boa evolução na sistemática de financiamento da educação, através de princípios firmes de redistribuição e equidade, também fechou os olhos para o horizonte do direito educacional, esquecendo-se do Plano Nacional de Educação. Seu artigo 14 prevê uma forma de repasse de verbas da União para os demais entes federativos, denominado complementação-Vaar, para cujo repasse elenca condicionalidades que devem ser cumpridas. Em seu inciso I, prevê a necessidade de provimento do cargo ou função de gestor escolar de acordo com critérios técnicos de mérito e desempenho ou a partir de escolha realizada com a participação da comunidade escolar dentre candidatos aprovados previamente em avaliação de mérito e desempenho. Ora, a nova Lei do Fundeb faz crer, para olhos desatentos, com a alternativa (ou) em destaque acima, que a meta 19 do Plano Nacional de Educação, relativa à gestão democrática das escolas, não precisaria ser cumprida.

Seria possível o teclar de linhas e linhas para mencionar os exemplos de criação normativa de direito educacional no país dissociada da noção do seu universo técnico-normativo e princípios basilares. Também não sejamos ingênuos para pensar que esse desconhecimento técnico é sempre não intencional, como se muitas dessas normas não tivessem propulsão motivadora preponderantemente política, isso pois tratam, muitas delas, de destinação de verbas vultosas, ex vi a retirada dos profissionais de assistência social e psicologia da fatia dos 70% do Fundeb destinados aos profissionais de educação. Nem entremos, também nessa linha, no buraco negro das polêmicas relativas ao novo ensino médio, tema para outro ou outros artigos.

Não obstante, existe um instituto que é, sob nossa ótica, o símbolo da ‘esquizofrenia’ normativa, emblemático a demonstrar o quão a produção normativa de direito educacional precisa ser repensada e voltar, novamente, os olhos para seus princípios fundantes: o abono.

O abono, em linhas bem superficiais, é a divisão de "sobras" de verbas da educação destinadas à valorização dos profissionais da educação (60% do antigo Fundef e antigo Fundeb e 70% do novo Fundeb). Esse instituto foi considerado, por muito tempo, inconstitucional/ilegal (STF, Mandado de Segurança nº 35.675/DF e Acórdão nº 1.824/2017 do Plenário do TCU), isso por uma questão simples: abonos indenizatórios ou "rateios" não se enquadram no rol constante do artigo 70 da LDB e, por assim ser e estarmos sob a égide do princípio da legalidade administrativa, não poderia ser concedido sem previsão específica no referido dispositivo legal.

Ademais, ratear "sobras" não poderia nunca ser considerado como atendimento da vontade de valorização dos profissionais da educação, afinal, não promove a: a) habilitação de professores leigos; b) capacitação dos profissionais da educação (magistério e outros servidores em exercício na educação básica), por meio de programas de formação continuada;  e, c) remuneração dos profissionais da educação básica que desenvolvem atividades de natureza técnico-administrativa (com ou sem cargo de direção ou chefia) ou de apoio, como, por exemplo, o auxiliar de serviços gerais, o auxiliar de administração, o(a) secretário(a) da escola, etc., lotados e em exercício nas escolas ou  órgão/unidade administrativa da educação básica pública. Não promove, outrossim, a estruturação do meio ambiente do trabalho e/ou sistemas de trabalho[6].

Apesar disso, o parágrafo único do artigo 5º da Emenda nº 114, de 16 de dezembro de 2021, deu ao abono o status de conformidade constitucional. Eis o ambiente fértil para desvalorização dos profissionais da educação: quanto menos se investe nos profissionais da educação, mais dinheiro "sobra" para ser dividido ao final do ano. É preciso colocar "sobra" sempre entre aspas, afinal, é impossível, como sabemos, afirmar que abunda verba para valorização dos professores. Como sabemos, prevista para 2020, a Meta 17 do PNE, que determina a equiparação do salário médio dos professores ao dos outros profissionais de escolaridade equivalente não foi cumprida no prazo, tendo avançado a cerca de um terço do ritmo necessário ao seu cumprimento.

A Meta 18, que pretende assegurar a existência de planos de carreira para os profissionais da Educação Básica e Superior Pública de todos os sistemas de ensino e, para o plano de carreira dos(as) profissionais da Educação Básica Pública, tomar como referência o piso salarial nacional profissional, por sua vez, está em retrocesso[7].

A permissão do abono na EC 114/2021 se deu de forma contingente e adstrita ao passivo dos precatórios relativos à complementação de parcela da União aos estados e municípios no âmbito do extinto Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Todavia, aludido arrimo de exceção inscrito em norma constitucional derivada trouxe um cenário tão caótico e cruel à própria vontade constitucional originária de valorização dos profissionais de educação (artigo 206, inciso VIII da CF/1988), que passamos a presenciar gestões que não pagam o piso nacional do magistério, alegando falta de dinheiro, mas, ao final do ano, declaram “sobras” substanciais para garantir rateios em valores significativos. Aliás, chegou-se a se defender, inclusive, que o piso nacional dos professores não precisa mais ser cumprido.

A bem da verdade, a opção de pagar o abono, em detrimento do piso nacional do magistério ou de qualquer outra meta do PNE relativa à valorização dos profissionais da educação, configura literal ofensa ao art. 10 da Lei 13.005/2014. Vale lembrar, pois, que as leis do ciclo orçamentário devem ser formuladas e executadas "de maneira a assegurar a consignação de dotações orçamentárias compatíveis com as diretrizes, metas e estratégias deste PNE e com os respectivos planos de educação", até para que seja garantido o seu pleno e tempestivo cumprimento.

É uma opção ilícita, portanto, acumular saldo a ser repartido se há obrigações legais de fazer inadimplidas. Considerando que as metas e estratégias do PNE perfazem obrigações legais de fazer que devem orientar substantivamente o conteúdo do dever de gasto mínimo em educação e a aplicação dos recursos do Fundeb (artigo 10 da Lei 13.005/2014), não deveriam ser preteridas por despesas alheias ao planejamento educacional.

Revela-se patente a irregularidade do cômputo da despesa com abono nos recursos vinculados à educação, quando, concomitantemente, houver inadimplemento das metas e estratégias relacionadas à valorização dos profissionais da educação. Há um inegável o custo de oportunidade (trade-off) no desvio dos recursos educacionais para atender a finalidades outras que não aquelas identificadas como metas e estratégias do respectivo planejamento setorial, em afronta — reitere-se — ao artigo 10 da Lei 13.005/2014.

Evidenciar a inversão de prioridades e glosar o cômputo de tais abonos que operam, por assim dizer, como "substitutivos falseados do cumprimento do PNE" passa por impor ao gestor o ônus agravado de motivação, para fins de correção das distorções alocativas que comprometem a política pública de educação na federação brasileira.

Sem uma regulamentação séria e comprometida com o interesse público primário educacional do que seriam "sobras", ou seja, por meio da verificação valorativa da gestão eficiente ante as metas do PNE e demais normas inerentes à valorização dos profissionais da educação, o abono torna-se, em verdade, um prêmio da má-gestão, garantindo ao gestor que menos investe no decorrer do ano a imagem daquele que mais reparte dinheiro, pagando valores que não são incorporados na remuneração, não refletem em 13º, aposentadoria, férias etc. Isso, claro, sem falar das demais esferas de valorização (planos de carreira, capacitação etc.) que são esquecidas nos buracos desse queijo suíço, nosso direito educacional contemporâneo.

 


[2]Falta de verba trava lei que obriga psicólogos e assistentes sociais nas escolas”(https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/falta-de-verba-trava-lei-que-obriga-psicologos-e-assistentes-sociais-nas-escolas/).

[5] Note-se que não se está a discutir o homeschooling em si, tema que demandaria um ambiente de debate muito maior. O que se dispõe é que no momento de publicação da cartilha, vigorava normativamente no país a inconstitucionalidade do homeschooling, isso pois o Supremo Tribunal Federal decidiu, no bojo do RE 888.815/RS, com repercussão geral reconhecida, havia decidido que essa modalidade de ensino não seria constitucionalmente possível, isso diante da ausência de lei regulamentadora editada pelo Congresso Nacional. Portanto, a cartilha contrariava a realidade normativo-constitucional em vigor.

[6] Conforme definição do Ministério da Educação, no documento intitulado “Perguntas Frequentes”, acerca do Fundeb.

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