Público & Pragmático

O tema "conflito de interesses na arbitragem" chega ao STF

Autores

  • Gustavo Henrique Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

  • Manuela Albertoni Tristão

    é advogada na área de arbitragem e solução de conflitos no escritório Justino de Oliveira Advogados pós-graduada em Direito Civil e Empresarial e pós-graduanda em Direito Econômico e Regulatório.

2 de julho de 2023, 8h00

O tema sobre conflito de interesses na atuação dos árbitros nunca saiu de moda, mas ganhou ainda mais destaque no sistema jurídico brasileiro com a propositura do PL nº 3.293/2021, que busca alterar a Lei de Arbitragem nº 9.307/1996 para delimitar a nomeação de profissionais como árbitros.

No entanto, foi com a propositura da ADPF nº 1.050 convertida em Adin , em março deste ano, pelo partido União Brasil (UBR), que o Poder Judiciário foi chamado a se manifestar a respeito. Dentre diversos pleitos, o partido requer a unificação da jurisprudência brasileira quanto ao dever de revelação do árbitro, sob o fundamento de que as partes não têm o dever de investigá-lo, mas é ele quem precisa revelar tudo aquilo que lhe for questionado, caso contrário, estará impedido de atuar nessa função; e ainda pleitearam o impedimento da aplicação das diretrizes da International Bar Association (IBA) sobre conflito de interesses.

Não por menos, o tema merece reflexão mediante análise de alguns pontos significativos que serão elencados neste breve texto.

Inicialmente, importante trazer à tona o cenário da arbitragem como método privado e adequado de solução de conflitos no âmbito internacional  em que impera a vontade das partes e a liberdade de escolha de aplicação legal "importado" para o Direito brasileiro, cuja cultura jurídica, além de ser extremamente litigante, tem sua base no direito positivo (civil law), de modo que a lei é fonte imediata e principal fundamento para a resolução de litígios.

Por outro lado, os conflitos internacionais submetem-se a outra lógica, sendo comum a existência de diretrizes que refletem as práticas internacionalmente aceitas no intuito de orientar os players de diferentes culturas jurídicas a solucionarem eventuais impasses sem que tenham de se submeter ao sistema jurídico alheio.

Portanto, para se solidificar no Brasil, a arbitragem teve de se moldar ao Direito brasileiro, o que foi feito. São mais de duas décadas de vigência da Lei de Arbitragem nº 9.307/1996, que abriu portas para outros textos legais normatizarem o instituto não somente na esfera do Direito Privado, como também na do Direito Público [1].

Apesar das adequações necessárias, o instituto da arbitragem permanece (e deve permanecer) com as suas principais características que inevitavelmente envolvem a prática internacional, como a autonomia, vontade e liberdade das partes de escolherem aquilo que melhor couber a sua disputa. Isso porque a natureza jurídica da arbitragem é contratual.

Por isso, quando a ADPF ajuizada questiona o modo como o dever de revelação é tratado, acaba deixando de lado toda a lógica própria do instituto da arbitragem, na tentativa de equipará-lo ao método da jurisdição do Poder Judiciário.

Mas a lógica não é a mesma. As normas da legislação brasileira de arbitragem ditam comandos gerais sobre o procedimento, deixando margem para as partes customizarem o processo conforme suas respectivas vontades. Isto é, a hard law, em conformidade com os princípios da flexibilidade e da autonomia da vontade, abre espaço para um mecanismo de solução de conflitos que pode ser adaptado para o caso concreto.

Em razão disso é que se considera essencial a utilização das soft laws para a orientação dos players do instituto, que nada impõem, mas tão somente guiam os atos e decisões para a efetividade procedimental, tal como fazem as Regras da IBA sobre conflito de interesses.

Não é dizer que as diretrizes da IBA possuem aplicação automática ao procedimento, mas elas complementam a Lei de Arbitragem e os demais regulamentos aplicáveis, a fim de que seja alcançado o bem da vida, em observância à ordem pública.

Outrossim, a divulgação de determinada situação não implica na imediata ausência de imparcialidade e independência de um profissional para ocupar a função de árbitro, mas a violação desse dever pode causar dúvidas quanto à idoneidade, o que inevitavelmente dependerá da análise do caso concreto.

Durante muito tempo, o dever de revelação foi considerado de norte subjetivo. Com a entrada da administração pública como novo player da arbitragem no Brasil, disputas de altíssimo cunho financeiro e de interesse nacional passaram a ser tuteladas também pela jurisdição arbitral e não mais exclusivamente pela jurisdição do Poder Judiciário , de modo que o resultado desses procedimentos deixou de ser somente de interesse privado das partes para impactar também na economia brasileira e em inúmeros setores regulados.

Assim, veio à tona a polêmica da nomeação reiterada de profissionais para a função de árbitro, pelas mesmas partes, o que parece ter causado insegurança nos players sobre as decisões arbitrais, levando o STF a decidir sobre questões relacionadas à arbitragem.

Diante disso, espera-se que a Suprema Corte possa contribuir positivamente com a comunidade arbitral, de modo que se pretende apontar algumas possíveis soluções.

No que tange à nomeação reiterada de árbitros, é de se considerar a criação de standards mais objetivos para a escolha de profissionais que não tenham qualquer relação com as partes, com seus patronos ou com o litígio, sempre, é claro, tendo como norte a análise do caso concreto. A Nova Lei de Licitações nº 14.133/2021 já reflete esse posicionamento, quando dispõe sobre a necessária observância aos critérios isonômicos, técnicos e transparentes para o processo de escolha dos árbitros, em seu artigo 154 [2].

Ademais, parece útil a elaboração de uma espécie de "teste" da imparcialidade e independência do árbitro a ser aplicado pelas câmaras arbitrais quando submetem os questionários de declaração de idoneidade aos profissionais, momento em que realizam o disclousure, colaborando com a "autorregulação" da arbitragem.

Outra possibilidade é a previsão legal de aplicação de sanções ligadas à má-fé das partes e dos árbitros quando da indicação, caso venham a ocultar, propositalmente, situação sensível, que deveria ter sido revelada em momento oportuno, com a finalidade única de que a contraparte aceite a indicação do profissional nomeado em busca de interesse próprio.

Por fim, outra contribuição que poderá ser feita pelo STF, em termos institucionais, é que as câmaras arbitrais organizem, internamente, os comitês de impugnação. Como exemplo, a Câmara do Mercado faz uso dos Comitês de Impugnação, que se mostram bastante eficazes para o caso concreto. A divulgação, também, dos critérios utilizados nas decisões desses comitês parece pertinente, resguardadas as informações sigilosas o que também está sendo feito pela mencionada instituição.

A própria CAM, assim como outras instituições, possui um ementário público de decisões arbitrais, cujo escopo é o direcionamento dos players, ao lado de outras soft laws adequadas ao caso.

A preocupação da comunidade arbitral frente aos questionamentos da arbitragem no Brasil é pertinente. O que se vê em mais de duas décadas de vigência da Lei de Arbitragem é que o ordenamento jurídico brasileiro comporta o Sistema Multiportas inclusive incentivado pelo CNJ por meio da Resolução nº 125/2010 , o qual está cada vez mais requintado e incentivado pelo Judiciário

Nem sempre uma norma posta será capaz de sanar as deficiências do sistema. Talvez reste aos profissionais uma maior abertura para o consensualismo estratégico, a ser promovido mediante diálogo entre as partes e seus patronos, com o fim de diminuir a alta litigiosidade e, consequentemente, adaptando o Direito doméstico também às demandas internacionais.

 


[1] Como exemplo, pode-se citar a Lei nº 13.105/2015, que incorporou a possibilidade da utilização da arbitragem (e de meios autocompositivos) no Código de Processo Civil, e a Nova Lei de Licitações nº 14.133/2021, que regulamenta o instituto nos contratos administrativos em que pese já fosse previsto pela Lei de Concessão e Permissão nº 8.987/1995, atualizada pela Lei nº 11.196/2005.

[2] Também a AGU, em consonância com o Decreto nº 10.025/2019 (art. 12), editou a Portaria nº 42, de 7 de março de 2022, ampliando os requisitos para a escolha de árbitros, como: deter conhecimento da natureza do contrato de acordo com a formação profissional, área de especialidade, nacionalidade e idioma (par. 1º, art. 2º); não incidência em situações que gerem conflitos de interesses; e não ocupar cargo das carreiras jurídicas da AGU, PGF e PG do Banco Central (incisos do art. 2º, Portaria AGU nº 24/2022).

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