Reflexões sobre a peça teatral 'O verdugo', de Hilda Hilst
2 de julho de 2023, 8h00
O que deve ser feito quando o agente da lei se recusa a cumpri-la alegando injustiça em sua aplicação? E o que deve ser feito quando é claro e insofismável que a aplicação da lei (ou ordem) injusta resulta na perversão total do sistema de justiça? Para complicar, o que ocorre quando o agente que se recusa a cumpri-la percebe que a lei é manipulada pelos juízes e que ele, o agente, é instrumento do cumprimento de ordens cuja origem desconhece, mas em cuja lisura desconfia. E quando o agente da lei é pressionado também por parte da família, que depende da aplicação implacável da lei (às vezes injusta) como fonte de sustento?
A peça é ambientada em tempo e lugar indefinidos. Não se sabe onde os fatos ocorreram e também não se sabe quando os fatos ocorreram. Uma narrativa sombria que de algum modo nos remete à “Colônia Penal”, de Franz Kafka, com a diferença que nesse último há indícios de que o enredo se desdobra em uma ilha perdida.
Não temos os nomes dos personagens. Na peça transitam o Verdugo, a mulher do Verdugo, o filho, a filha, o noivo da filha, o carcereiro, o juiz velho, o juiz jovem, alguns cidadãos, o Homem (que deve ser quem será executado pelo Verdugo) e dois Homens-Coiotes, que segundo a autora “devem ser altos”.
O leitor/espectador vê-se em permanente dúvida. A peça, assim, pode também ter ocorrido em qualquer lugar, a qualquer tempo, com quaisquer pessoas. Porém, e o leitor/espectador atento assim intui, os fatos imaginários ocorrem no Brasil, em 1969.
A narrativa nos dá conta de um carrasco (o Verdugo) que se recusa a executar um condenado. Os juízes exigem o cumprimento da lei – – o condenado deve ser executado – – e ao mesmo tempo oferecem um bom dinheiro para o carrasco que, no limite, deveria cumprir a lei e desincumbir-se da tarefa.
O primeiro ato ocorre na humildade casa do Verdugo. A família está reunida. Discutem o caso. O Verdugo afirma que há algo no condenado que revela sua inocência, sua beleza como ser humano, sua candura. Não quer executá-lo. O filho fica a seu lado e diz que tem toda razão. A mulher, preocupada com o dinheiro que ganhariam com a execução, insiste que o marido deva cumprir sua missão. A filha fica toma seu lado. O noivo da filha, “aspecto pusilânime, tem sempre um sorrido idiota” também critica o Verdugo. A família está dividida.
A mulher argumenta que há necessidade do dinheiro, que o condenado já está morto e que a execução é uma mera confirmação de uma situação já definida. Os juízes visitam o Verdugo e insistem na necessidade de uma execução, o mais rapidamente possível. Ante a negativa do marido a mulher resolve cumprir a tarefa, assumindo o papel do Verdugo, disfarçando-se, e vestindo-se como ele.
O Verdugo se insurge: o carrasco é ele, não ela. Ela se desespera e sente o perigo: não receberiam o dinheiro, que tanto necessitavam; os juízes encontrariam um outro verdugo, em um outro lugar. Os juízes insistem que a lei deva ser cumprida. Afirmam que já houve um julgamento, e que não há mais nada a fazer.
Subitamente o carcereiro irrompe pela casa. Informa que há rumores de uma rebelião popular. Há um movimento que pretende libertar o condenado. Por essa razão a sentença deve ser imediatamente cumprida. Após uma acalorada discussão o carcereiro prende (e amarra) o Verdugo e seu filho. A esposa vai até a praça onde será realizada a execução, disfarçada de Verdugo e pronta para desempenhar o trabalho do marido, fazendo-o por interesse monetário direto: precisa muito do dinheiro. É apoiada pela filha e pelo genro.
O Verdugo e o filho liberam-se das cordas e vão até a praça onde a execução ocorre. O Verdugo denuncia a mulher e implora para que não executem o condenado. Alguns ensandecidos avançam contra o condenado e o Verdugo. Atacam. Com os corpos no chão, um cidadão observa “agora já acabou”. Há na peça os “Homens-Coiote” que simbolizam a resistência, e que na última cena salvam o filho do Verdugo. Essas figuras tem as mãos para trás, cruzadas na altura dos rins, informando Hilda Hilst que possuíam as mãos em forma de patas de lobo, muito grandes.
O condenado era um agitador inocente. Amado pelos cidadãos, fora execrado pelos juízes, que precisavam de uma rápida execução. O Verdugo negou-se ao cumprimento das ordens, porque no íntimo julgou manifestamente injustas. Pagou com a vida uma vida que quis salvar.
De algum modo essa peça remete o leitor/espectador ao enredo de “Um inimigo do povo”, de Henrik Ibsen (1828-1906). Comprova-nos que as relações entre direito e teatro constituem campo amplo para o estudo das percepções culturais que há do direito e, especialmente, da injustiça, do compadrio, e dos interesses por vezes inconfessáveis que marcam esse lado da organização social.
Alguns chamam de “lawfare”. E se a guerra é a continuação da política por outros meios, como afirmou Carl Clausewitz (1780-1831), o direito pode resultar na continuação da guerra por meios próprios.
1 Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
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