Embargos culturais

Reflexões sobre a peça teatral 'O verdugo', de Hilda Hilst

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

2 de julho de 2023, 8h00

O que deve ser feito quando o agente da lei se recusa a cumpri-la alegando injustiça em sua aplicação? E o que deve ser feito quando é claro e insofismável que a aplicação da lei (ou ordem) injusta resulta na perversão total do sistema de justiça? Para complicar, o que ocorre quando o agente que se recusa a cumpri-la percebe que a lei é manipulada pelos juízes e que ele, o agente, é instrumento do cumprimento de ordens cuja origem desconhece, mas em cuja lisura desconfia. E quando o agente da lei é pressionado também por parte da família, que depende da aplicação implacável da lei (às vezes injusta) como fonte de sustento?

Spacca
Esses são alguns dos problemas centrais que Hilda Hilst (1930-2004) coloca na peça “O Verdugo”, de 1969. A data dessa inusitada peça não é mera coincidência. Estávamos na Era Militar. A peça estreou em 1972, na Universidade Estadual de Londrina, dirigida por Nitis Jacon, diretora de teatro e médica psiquiátrica, importantíssima na história cultural do norte do Paraná, de onde venho. Conheci Nitis Jacon, cheia de energia, de ideias, um vulcão prestes a entrar em erupção, uma mulher bem a frente de seu tempo.

A peça é ambientada em tempo e lugar indefinidos. Não se sabe onde os fatos ocorreram e também não se sabe quando os fatos ocorreram. Uma narrativa sombria que de algum modo nos remete à “Colônia Penal”, de Franz Kafka, com a diferença que nesse último há indícios de que o enredo se desdobra em uma ilha perdida.

Não temos os nomes dos personagens. Na peça transitam o Verdugo, a mulher do Verdugo, o filho, a filha, o noivo da filha, o carcereiro, o juiz velho, o juiz jovem, alguns cidadãos, o Homem (que deve ser quem será executado pelo Verdugo) e dois Homens-Coiotes, que segundo a autora “devem ser altos”.

O leitor/espectador vê-se em permanente dúvida. A peça, assim, pode também ter ocorrido em qualquer lugar, a qualquer tempo, com quaisquer pessoas. Porém, e o leitor/espectador atento assim intui, os fatos imaginários ocorrem no Brasil, em 1969.

A narrativa nos dá conta de um carrasco (o Verdugo) que se recusa a executar um condenado. Os juízes exigem o cumprimento da lei – – o condenado deve ser executado – – e ao mesmo tempo oferecem um bom dinheiro para o carrasco que, no limite, deveria cumprir a lei e desincumbir-se da tarefa.

O primeiro ato ocorre na humildade casa do Verdugo. A família está reunida. Discutem o caso. O Verdugo afirma que há algo no condenado que revela sua inocência, sua beleza como ser humano, sua candura. Não quer executá-lo. O filho fica a seu lado e diz que tem toda razão. A mulher, preocupada com o dinheiro que ganhariam com a execução, insiste que o marido deva cumprir sua missão. A filha fica toma seu lado. O noivo da filha, “aspecto pusilânime, tem sempre um sorrido idiota” também critica o Verdugo. A família está dividida.

A mulher argumenta que há necessidade do dinheiro, que o condenado já está morto e que a execução é uma mera confirmação de uma situação já definida. Os juízes visitam o Verdugo e insistem na necessidade de uma execução, o mais rapidamente possível. Ante a negativa do marido a mulher resolve cumprir a tarefa, assumindo o papel do Verdugo, disfarçando-se, e vestindo-se como ele.

O Verdugo se insurge: o carrasco é ele, não ela. Ela se desespera e sente o perigo: não receberiam o dinheiro, que tanto necessitavam; os juízes encontrariam um outro verdugo, em um outro lugar. Os juízes insistem que a lei deva ser cumprida. Afirmam que já houve um julgamento, e que não há mais nada a fazer.

Subitamente o carcereiro irrompe pela casa. Informa que há rumores de uma rebelião popular. Há um movimento que pretende libertar o condenado. Por essa razão a sentença deve ser imediatamente cumprida. Após uma acalorada discussão o carcereiro prende (e amarra) o Verdugo e seu filho. A esposa vai até a praça onde será realizada a execução, disfarçada de Verdugo e pronta para desempenhar o trabalho do marido, fazendo-o por interesse monetário direto: precisa muito do dinheiro. É apoiada pela filha e pelo genro.

O Verdugo e o filho liberam-se das cordas e vão até a praça onde a execução ocorre. O Verdugo denuncia a mulher e implora para que não executem o condenado. Alguns ensandecidos avançam contra o condenado e o Verdugo. Atacam. Com os corpos no chão, um cidadão observa “agora já acabou”. Há na peça os “Homens-Coiote” que simbolizam a resistência, e que na última cena salvam o filho do Verdugo. Essas figuras tem as mãos para trás, cruzadas na altura dos rins, informando Hilda Hilst que possuíam as mãos em forma de patas de lobo, muito grandes.

O condenado era um agitador inocente. Amado pelos cidadãos, fora execrado pelos juízes, que precisavam de uma rápida execução. O Verdugo negou-se ao cumprimento das ordens, porque no íntimo julgou manifestamente injustas. Pagou com a vida uma vida que quis salvar.

De algum modo essa peça remete o leitor/espectador ao enredo de “Um inimigo do povo”, de Henrik Ibsen (1828-1906). Comprova-nos que as relações entre direito e teatro constituem campo amplo para o estudo das percepções culturais que há do direito e, especialmente, da injustiça, do compadrio, e dos interesses por vezes inconfessáveis que marcam esse lado da organização social.

Alguns chamam de “lawfare”. E se a guerra é a continuação da política por outros meios, como afirmou Carl Clausewitz (1780-1831), o direito pode resultar na continuação da guerra por meios próprios.

1 Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

 

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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