Observatório Constitucional

Os caminhos do labirinto: a escolha do procurador-geral da República

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1 de julho de 2023, 8h00

A cada dois anos, o tema da escolha do procurador-geral da República assume um protagonismo singular no debate público mobilizado em torno do sistema de justiça e de suas relações com os poderes políticos em sentido estrito. Os motivos são variados, sendo dois os mais relevantes.

Primeiro, trata-se de um ator que detém ampla capacidade de intervenção em questões centrais relacionadas à estabilidade institucional do país — é ao PGR que cabe promover a persecução criminal, para delitos comuns, dos mais altos mandatários do regime republicano, como o presidente da República e os membros das duas Casas do Congresso. No processo constitucional, é o único ator que detém a prerrogativa de intervir em todos os feitos que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal. De mais a mais, é o chefe do Ministério Público da União (MPU) e de seus quatro ramos, dentre os quais é notável a proeminência do Ministério Público Federal (MPF), nomeadamente em razão do protagonismo assumido por esta instituição em alguns dos episódios mais importantes da vida pública nacional no último decênio.

O segundo ponto diz respeito ao fenômeno da pluralidade institucional, isto é, ao fato de que não há um único Ministério Público no Brasil, dadas as características do nosso federalismo. Há, na realidade, 30 Ministérios Públicos distintos, 26 estaduais, além dos quatro ramos do MPU. Entre esses diferentes órgãos, não há vínculo administrativo. O PGR não detém ascendência administrativa ou funcional sobre os Ministérios Públicos estaduais e suas chefias. E aqui reside um ponto central na recorrência do tema da escolha do PGR no debate público nacional: a Constituição de 1988 deu tratamento distinto para o procedimento de nomeação do PGR em comparação aos chefes dos Ministérios Públicos estaduais e do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios. Assim, enquanto o artigo 128, §3º, da CRFB/88 prevê que será formada uma lista tríplice dentre integrantes da carreira e que o procurador-geral será escolhido, pelo respectivo Chefe do Executivo, a partir desses três nomes, o mesmo não acontece em relação ao Ministério Público da União. Quanto a este último órgão, o art. 128, §1º da CRFB/88 se limita a estabelecer que sua chefia será ocupada por um integrante da carreira, com mais de 35 (trinta e cinco) anos, nomeado pelo presidente da República e submetido a aprovação de maioria absoluta do Senado. Não há nenhuma menção à lista tríplice.

Some-se a esse cenário normativo-formal um dado de conjuntura. Apesar da clara distinção estabelecida pelo Constituinte de 1987-1988, desde 2001, a Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR), uma associação civil que reúne membros do Ministério Público Federal que a ela aderem de forma voluntária, passou a realizar, à época do fim do mandato do procurador-geral da República incumbente, uma lista tríplice votada dentre os seus associados — ou seja, membros do Ministério Público Federal filiados à ANPR — para a subsidiar a escolha do procurador-geral da República pelo presidente da República. Além do presidente da República, a lista dos mais votados também é normalmente enviada a outras autoridades da República, como o presidente do Supremo Tribunal Federal e das duas Casas legislativas.

Em 2001, quando da primeira lista tríplice organizada pela ANPR, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, rejeitou o documento, reconduzindo, pela quarta vez, Geraldo Brindeiro para o cargo. De certa forma, é curioso observar que algumas análises, acertadamente, propõem que o próprio processo político que conduziu à própria construção da lista tríplice naquele período surgira em um contexto de oposição ao PGR Brindeiro (SHALDERS, 2017). A partir de 2003, contudo, os três presidentes da República subsequentes — Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer — acolheram a lista tríplice, indicando o PGR entre um dos nomes nela constantes. Nas duas últimas nomeações, em 2019 e 2021, o então presidente da República ignorou o documento e indicou um membro que sequer se candidatou à disputa, o atual PGR Augusto Aras. Além disso, o atual chefe do Executivo nacional já deu várias declarações públicas de que, na indicação vindoura, não pretende se pautar pela lista tríplice da ANPR.

Tratando-se de um tema recorrente, as diferentes posições já estão postas no debate público, sendo possível aglutinar dos polos argumentativos. De um lado, os que sustentam que o discrímen promovido pelo Constituinte de 1987-1988 configura uma espécie de controle político prévio, dada a ampla capacidade de intervenção do PGR nas questões de relevo público e apontam a lista tríplice como uma pauta corporativista, que mira capturar o processo de escolha da chefia do MPU e do MPF através da imposição de pautas de interesse interno da carreira, nomeadamente aquelas relacionadas a melhorias remuneratórias. Por outro lado, os que sustentam que a lista tríplice para a escolha do PGR é um mecanismo indispensável para a garantia da independência na atuação desse relevante ator público, sem o qual o órgão sempre estará à mercê da captura pela agenda dos poderes políticos em sentido estrito. O aspecto central da discussão, portanto, gravita em torno dos riscos de captura por agendas internas e externas ao MPU e MPF. Longe de oferecer uma solução institucional definitiva, pretendemos aqui chamar atenção para dois elementos, um de caráter histórico e outro contextual, que tem o potencial de contribuir para o debate público. O primeiro deles diz respeito às razões que motivaram a distinção dos procedimentos de escolha entre órgãos ministeriais estaduais e o MPU. O segundo, abrange uma reflexão sobre eficiência do mecanismo da lista tríplice como dispositivo institucional capaz de evitar a captura da PGR por agendas e interesses externos às atribuições do MPU/MPF.

De forma sucinta, é possível localizar um leque muito variado de posições que, direta e indiretamente, colocam a lista tríplice dentro desses, digamos, polos normativos mais imediatos, ou seja, que carregam posições do "dever ser" da nomeação na PGR e, a partir disso, fazem suas análises em termos do desempenho e das possibilidades da gestão. Outro ponto importante que se destaca quando se olha mais de perto as posições relacionadas à lista tríplice é que, de fato, a proximidade ou distanciamento em relação ao poder político sempre surge como tema basilar no questionamento ou na defesa de sua realização. Todos esses pontos mostram que, de fato, o debate normativo está posto e que a discussão sobre a viabilidade política da lista já é bem delimitada. Dessa maneira, o olhar aqui proposto enseja oferecer alguns elementos empíricos para contribuir com análises que se ocupam, mais detidamente, da relação entre o desempenho institucional e os procedimentos de escolha da chefia da instituição.

Comecemos, portanto, pela questão histórica propriamente dita, na verdade, pelo debate constitucional em si. Parece impreciso creditar apenas aos poderes políticos em sentido escrito a escolha do Constituinte de 1987-1988 quanto à diferença de procedimento de escolha da chefia do MPU em relação aos demais órgãos ministeriais estaduais. Embora seja amplamente documentado na historiografia constituinte que a agenda corporativa do Ministério Público brasileiro obteve uma capacidade notável de influenciar o texto final da Carta, nomeadamente por meio da liderança da Conamp e de alguns Ministérios Públicos estaduais, como o MP-SP e o MP-RS, também é conhecida uma divergência de agenda entre os Ministérios Públicos Federal e os estaduais no período anterior e durante a Constituinte. Esses pontos de disputa compreendiam, sobretudo, três elementos:: 1) o MPF tencionava em se manter na atuação da defesa judicial da União Federal, mesmo que a separação dessas funções fosse um debate já consolidado dentro do MP dos estados; 2) a possibilidade de exercício da advocacia privada, extensamente rejeitado por boa parte dos MPs estaduais e pela Conamp, e com ampla adesão à tese da acumulação no âmbito do MPF; 3) justamente, o procedimento de escolha da chefia do procurador-geral da República.

Sabedora da existência de importantes divergências no interior do próprio MPF, a Conamp, desde a emblemática Carta de Curitiba (1986), manteve o procedimento de livre nomeação do chefe do MPU pelo presidente da República, inclusive com a possibilidade de indicação de juristas de fora da carreira — o que era o caso de Sepúlveda Pertence, o procurador-geral da República ao tempo do processo constituinte. No interior do MPF, a própria ANPR, em diferentes momentos da década de 1980, oscilou entre posições mais próximas do modelo de livre nomeação e, ao final — já durante a ANC e sob a presidência de Roberto Gurgel, futuro PGR e escolhido pela lista -, a defesa da lista tríplice no mesmo modelo dos MPs estaduais. De mais a mais, ao longo da Constituinte, a solução adotada pela Assembleia pra a chefia do MPU/MPF foi alterada algumas vezes na Subcomissão do Poder Judiciário do Ministério Público, na Comissão de Organização dos Poderes e Sistemas de Governo, somente assumindo a sua formatação final ao final dos trabalhos da Comissão de Sistematização, nomeadamente após o chamado "projeto do Centrão".

Os significados desse cenário acima descritos são múltiplos. Cabe considerar, dentre eles, se — de fato — a constitucionalização da lista tríplice para a escolha do procurador-geral da República, como fora o caso da Proposta de Emenda Constitucional nº 25/2020, desnaturaria o modelo de controle político engendrado pelos parlamentares constituintes em face de uma solução puramente corporativa, como advogam alguns analistas. Na realidade, propõe-se que a prevalência desse método de escolha do PGR no resultado final da Carta pode ter compreendido, no fundo, uma solução igualmente corporativa, melhor se caracterizando como um resquício do modelo bifronte do velho Ministério Público Federal que, diferentemente de vários MPs estaduais, somente se desvencilhara das funções de advocacia de governo após a Constituição de 1988.

Evidentemente, a historiografia constitucional compreende outros elementos de relevo para a compreensão e o mapeamento dos processos que tornaram possível o discrímen promovido entre o método de escolha do PGR e dos procuradores-gerais de Justiça. O ponto aqui é simples e evoca uma importante lição do historiador francês Pierre Rosanvallon: convém distinguir procedimentos e técnicas de decisão e a chamada legitimidade democrática. Pressões corporativas são elementos integrantes da natureza dos processos de tomada de decisões políticas fundamentais em uma democracia política. O fato da lista tríplice, portanto, ter sido proposta originalmente pela ANPR não implica dizer que a sua constitucionalização resulte, tão somente, em uma captura de uma agenda interna ao Ministério Público Federal.

E aqui se coloca o elemento de fundo contextual. E aqui uma observação relevante é a seguinte: se o tema da lista tríplice povoa o debate público a cada biênio, pouco se discute sobre o reverso da moeda, isto é, os mecanismos de responsabilização e de destituição do procurador-geral da República em caso de infração de natureza política ou funcional. Há, basicamente, dois mecanismos previstos no nosso ordenamento: 1) a destituição, por maioria absoluta do Senado (artigo 52, XI), em um procedimento de natureza tipicamente política; 2) a designação, pelo Conselho Superior do MPF, de um subprocurador-geral da República, por voto de dois terços dos seus membros, para conhecer de inquérito, peças de informação ou representação sobre crime comum atribuível ao procurador-geral da República e, sendo o caso, promover a ação penal (LC nº 75/93, artigo 57, X). Se a ideia que subjaz os argumentos em favor da constitucionalização da lista tríplice é ampliar os mecanismos de responsividade e transparência do futuro procurador-geral da República, parece relevante também questionar se os mecanismos de responsabilização política e funcional atualmente existentes são adequados e suficientes em relação às amplas atribuições e capacidade de intervenção na vida pública confiadas ao chefe do MPU. Mais: em caso de inércia ou questionamento relevante acerca de determinada posição do procurador-geral da República, é cabível um mecanismo semelhante ao artigo 28 do Código de Processo Penal? Tal solução estaria adequada à posição topográfica do chefe do MPU e do MPF na paisagem institucional brasileira? Essas são questões de relevo que, a nosso sentir, também deveriam estar inseridas em uma discussão pública sobre o método de escolha do procurador-geral da República.

É que, por si, a lista tríplice como método de escolha da chefia de um órgão ministerial não é garantia de plena independência da atuação do procurador-geral ou de que não haverá captura por parte dos poderes políticos em sentido estrito. Esse é um dado amplamente conhecido tanto na literatura internacional e de direito comparado, como indicam os trabalhos de Van Aaken e outros (2010) e Carvalho e Leitão (2019), como estudos da experiência de órgãos ministeriais estaduais, como é o caso do trabalho de Nóbrega (2007) acerca do Ministério Público do estado de Pernambuco. Também há exemplos emblemáticos no âmbito da própria PGR: 1) Antônio Fernando de Souza, nomeado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva a partir da lista tríplice, denunciou vários membros do alto escalão do governo no chamado mensalão em 2006; 2) Rodrigo Janot Monteiro de Barros, nomeado PGR por Dilma Rousseff, também buscou a responsabilização de vários integrantes da coalizão governista no bojo da chamada operação "lava jato"; 3) Aristides Junqueira (1989-1995), reconduzido à PGR em 1991 por Fernando Collor de Mello e sem que se falasse em lista tríplice na época, denunciou o presidente da República por corrupção passiva e formação de quadrilha, ainda que após a sua renúncia.

Desse modo, os debates em torno dos critérios de escolha do procurador-geral da República devem ir além da mera finalidade da lista tríplice, mas perpassar questões atinentes ao bom desempenho das complexas atribuições constitucionais deste agente político, que ainda tem por função chefiar um dos mais intrincados arranjos institucionais — e orçamento — da República. Para tal fim, cogitar-se o aperfeiçoamento dos instrumentos de responsividade e accountability, parece-nos coerente com a arquitetura da chefia da instituição encarregada de defender o regime democrático.

 


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Ernani; LEITÃO, Natália. Operationalizing and Measuring Prosecutorial Independence: the Brazilian Case. In: INGRAM, Matthew C.; KAPISZEWSKI, Diana (org.). Beyond High Courts: The Justice Complex in Latin American. Notre Dame: University of Notre Dame, 2019, p. 51-68.

LAMENHA, Bruno. O MINISTÉRIO PÚBLICO DE 1988: construção, trajetória e mudanças institucionais na fronteira entre o jurídico e o político. Tese (Doutorado em Direito) – Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2023.

NÓBREGA, Flavianne Fernanda Bitencourt. Entre o Brasil formal e o Brasil real: Ministério Público no Brasil, instituição para o fortalecimento do Estado de direito? Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Departamento de Ciência Polícia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007.

ROSANVALLON, Pierre. Democratic legitimacy: impartiality, reflexivity, proximity. Trad. Arthur Goldhammer. Princeton: Princeton University Press, 2011, Edição Kindle.

VAN AAKEN, Anna; FELD, Lars. P.; VOIGT, Stefan. Do Independent Prosecutors Deter Political Corruption? An Empirical Evaluation across Seventy-eight Countries. American Law and Economics Review, vol. 12 (1), p. 204-244, 2010.

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