Opinião

Direito comparado franco-brasileiro: a interrupção voluntária da gravidez

Autor

  • Vanessa Alvarez

    é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

31 de janeiro de 2023, 7h09

O direito ao voto das mulheres no Brasil foi inserido na lei em 1932, após uma luta sufragista, por meio do Decreto n˚ 21.076, que criou a Justiça Eleitoral, e foi assinado por Getúlio Vargas. Na França, as mulheres apenas adquiriram o direito de votar em abril de 1944 após uma "ordonnance" outorgada por Charles de Gaulle [1].

Contudo, no âmbito de outros direitos fundamentais das mulheres, a sociedade brasileira não caminhou da mesma forma, nem com a mesma celeridade. O Código Penal brasileiro de 1941 tipificou em seu artigo 124 o crime de aborto, cuja vigência permanece até os dias atuais. Por outro lado, na França, a "Loi IVG (l'interruption volontaire de grossesse), permite a realização do aborto desde 17 de janeiro de 1975.

Neste cenário, pode o ordenamento jurídico francês colaborar para o aperfeiçoamento do direito das mulheres no Brasil?

Para responder a essa questão, se impõe uma análise do desenvolvimento das políticas sociais e econômicas adotadas pelo governo francês desde 1971 com o fito de proteger a dignidade das mulheres.

Em 1971 foi publicado um manifesto assinado por 343 mulheres que declaravam ter realizado abortos e que pediam a sua descriminalização [2]. No mesmo ano, a advogada franco-tunisiana (e militante feminista), Gisèle Halimi criou a Associação "Choisir la cause des femmes" (escolher é a causa das mulheres, em livre tradução do francês para o português) com o objetivo de lutar pela legalização do aborto.

Em 26 de novembro de 1974, Simone Veil, então ministra da Saúde, se apresentou perante a Assembleia Nacional francesa para defender o direito das mulheres à interrupção voluntária da gravidez com a finalidade de, segundo as suas palavras, "pôr fim a uma situação de desordem e injustiça e proporcionar uma solução ponderada e humana para um dos problemas mais difíceis de nosso tempo".

Ao contrário do que o pensamento vulgar possa imaginar, Simone Veil era considerada conservadora e centrista, foi nomeada ministra da Saúde durante o mandado presidencial de Valéry Giscard d'Estaing — então membro do grupo político de direita, o "Parti de L'Alliance des Libéraux et des Démocrates pour l'Europe" — no governo liderado por Jacques Chirac.

A defesa corajosa de Simone Veil pela legalização do aborto na França foi revolucionária, pois a questão foi tratada como uma questão de saúde pública, não de ideologia partidária (diferentemente do que tem ocorrido na América Latina, sobretudo, no Brasil).

Em seu célebre discurso realizado em 17 de janeiro de 1975, Simone [3] defendeu que as autoridades públicas não poderiam mais se eximir de suas responsabilidades nessa área e que a existência de subnotificações era patente, o que caracterizava uma situação de "desordem e anarquia".

Igualmente, defendeu que o aborto deveria continuar sendo o último recurso para situações sem saída e que nenhuma mulher recorreria a esse instrumento com um sentimento de alegria. Em seu discurso ela registrou: "É sempre uma tragédia e sempre será uma tragédia. No momento, quem se importa com aqueles que se encontram nesta situação angustiante? A lei os rejeita não apenas no estigma, vergonha e solidão, mas também no anonimato e no medo de ser processado".

No período do processo legislativo da denominada "Loi IVG", parlamentares da Assembleia Nacional reivindicaram — com fundamento no artigo 61 da Constituição francesa de 1958, concernente ao controle de constitucionalidade — a inconvencionalidade da lei supramencionada perante a Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Nessa oportunidade, o Conselho Constitucional francês adotou uma posição extremamente interessante ao compreender que não seria de sua competência o controle de convencionalidade, mas, tão somente, o controle de constitucionalidade, e, que, neste âmbito, a lei era constitucional — na análise conglobante do bloco de constitucionalidade, ou seja, abarcando o artigo 2˚ da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 — e que não havia qualquer medida a ser declarada [4].

A lei de descriminalização do aborto foi aprovada pelo Parlamento francês em 17 de janeiro de 1975 por um período de vigência de cinco anos. Posteriormente, a lei de 31 de dezembro de 1979 tornou definitivas as disposições da lei de 1975, que em particular eliminou certos obstáculos à realização do aborto, no que diz respeito aos termos do acordo médico e da recepção nos departamentos hospitalares. A definitividade dos termos da "Loi IVG" foi aprovada por 271 votos a 201, com apenas 70 dos 290 deputados majoritários votando a favor.

Em 1982, foi aprovada a lei de 31 de dezembro que determinou a cobertura dos custos relativos à interrupção voluntária e não terapêutica da gravidez e os métodos de financiamento e responsabilidade pelo Estado pelas despesas incorridas.

Nesse contexto, foi especialmente importante a lei de 27 de janeiro de 1993 que tipificou o delito de obstrução à interrupção voluntária da gravidez, haja vista os diversos movimentos conservadores que ocorriam naquele contexto com o fito de criar obstáculos ao direito estipulado pela "Loi IVG".

Igualmente, no sentido de fortalecimento pelo direito das mulheres, a lei de 4 de julho de 2001 estendeu o prazo legal de dez para 12 semanas de gravidez, além de facilitar as condições de acesso a contraceptivos e aborto para menores de idade, o que se tornou ainda mais humano e protetivo com a lei de 17 de dezembro de 2012 que permitiu 100% de cobertura dos procedimentos pelo sistema de seguro saúde.

Em 27 de junho de 2001, houve nova tentativa por parte dos parlamentares francesas de contestar a conformidade da questão prevista na lei de 4 de julho de 2001 frente aos artigos 2, 4, 5, 8 e 19 da Constituição Federal da V República.

Nessa oportunidade, o Conselho Constitucional francês declarou a lei conforme a Constituição de 1958 [5] e registrou a liberdade concernente à interrupção da gravidez é considerada como um componente da liberdade da mulher nos termos do Artigo 2 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

Em 26 de janeiro de 2016 foi aprovada a lei de modernização do sistema de saúde para autorizar as parteiras a realizar abortos medicamente induzidos e suprimir o período de reflexão de sete dias entre a consulta de informação e a consulta para a coleta do consentimento.


 

 

 

Ainda, a partir de 2020 e durante o período da pandemia foram adotadas medidas derrogatórias relativas ao aborto, como a extensão do período legal e, por outro lado, o fornecimento de teleconsultas para todas as consultas planejadas com a finalidade de dispensar medicamentos abortivos pelas farmácias diretamente às mulheres.

 

Neste contexto, diversas medidas ainda foram desenvolvidas em 2022, notadamente, a lei de 2 de março de 2022, estendeu o prazo legal de aborto de 12 para 14 semanas de gravidez, aboliu o período mínimo legal de reflexão e a obrigatoriedade da entrevista psicossocial.

No contexto global, notadamente, nos Estados Unidos, a Suprema Corte reverteu sua decisão Roe vs. Wade de 1973 no processo Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization [6] em 24 de junho de 2022, que considerou o aborto um direito garantido apenas em nível federal.

Diante da regressão do direito ao aborto ocorrida em diversos lugares do mundo, como nos Estados Unidos, Polônia e Hungria, em 7 de outubro de 2022 a Assembleia Nacional francesa aprovou a proposição do projeto de lei constitucional [7] apresentado pela deputada Mathilde Panot (emenda à constituição) a fim de adicionar o artigo 66-2 na Constituição de 1958 para dispor que a lei garante a efetividade e o acesso legal ao direito de interrupção voluntária da gravidez (Art. 66-2. – La loi garantit l’effectivité et l’égal accès au droit à l’interruption volontaire de grossesse).

Em 24 de novembro de 2022, a Assembleia Nacional adotou, com emendas, o projeto de lei em primeira leitura por 337 votos a favor, 32 contra e 18 abstenções. O projeto de lei constitucional deve ser examinado e aprovado pela Assembleia Nacional e pelo Senado, em dois turnos, antes de ser submetido a referendo pelo presidente da República e depois aprovada pelo povo francês, de acordo com o procedimento de revisão definido no artigo 89 da Constituição de 1958 [8][9].

Em 25 de janeiro de 2023 a comissão do Senado [10] que analisa o projeto de lei constitucional se reuniu, mas não adotou um texto sobre o Projeto de Lei Constitucional nº 143 (2022-2023), adotado pela Assembleia Nacional, com o objetivo de proteger e garantir o direito fundamental à interrupção voluntária da gravidez. Consequentemente, de acordo com o primeiro parágrafo do artigo 42 da Constituição, a discussão na sessão será sobre o texto do projeto de lei constitucional adotado pela Assembleia Nacional.

Hodiernamente, entre janeiro de 2021 e 29 de junho de 2022 foram apresentados na Câmara dos Deputados pelo menos sete projetos de lei que preveem restringir ainda mais o aborto no Brasil com o aumento de punições, exigência de boletim de ocorrência das vítimas de violência sexual, proibição de qualquer teste, comercialização e descarte de embriões [11].

Nesta breve análise das proposições realizadas pelo Senado e pela Câmara dos Deputados no âmbito do Congresso Nacional brasileiro se verificam proposições a fim de majorar a gravidade da conduta típica relativa à interrupção voluntária da gravidez, com a criminalização de eventuais meios de induzimento ou instigação [12].

O que se compreende através da lente do direito comparado é a imperatividade de que a sociedade brasileira compreenda que a interrupção voluntária da gravidez é uma questão de saúde pública, concernente aos direitos reprodutivos mais básicos das mulheres. Não deve se tratar de ideologia política da direita ou da esquerda, mas uma questão de direitos humanos.

Simone Veil nos ensinou que (1) a interrupção voluntária da gravidez não se trata de ideologia, não se trata de direta ou esquerda; (2) o direito à vida digna também se aplica à mulher e não apenas ao nascituro; (3) a tipificação da conduta penal no mundo do "dever ser" não se aplica ao mundo do "ser", haja vista os procedimentos realizados em clínicas clandestinas por mulheres em situações extremamente vulneráveis.

No contexto brasileiro, o governo anterior instrumentalizou a misoginia como uma política governamental através da proposição e de normas jurídicas visando ao enfraquecimento dos direitos das mulheres, pois, sem escolhas, a vulnerabilidade se impõe em um mundo absolutamente patriarcal.

Contudo, em 17 de janeiro de 2023 um importante passo na proteção aos direitos das mulheres foi dado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o desligamento do Brasil do Consenso de Genebra — grupo conservador criado pelo ex-presidente norte-americano Donald Trump em outubro de 2020, cuja iniciativa foi liderada pelos Estados Unidos ao lado de Brasil, Egito, Hungria, Indonésia e Uganda —, texto que mencionava que os Estados membros não tinham qualquer compromisso com relação à interrupção voluntária da gravidez.

Igualmente, o Estado brasileiro informou ter comunicado a fóruns interamericanos a decisão de se associar a dois protocolos recentes sobre direitos das mulheres adotados pelo continente, quais sejam, o Compromisso de Santiago [13] (2020), que trata de uma resposta à crise da Covid que leve em conta parâmetros de gênero e a Declaração do Panamá [14], de 2022, que tem como título "construindo pontes para um novo pacto social e econômico gerido por mulheres".

Portanto, se vê emergir uma nova consciência política e jurídica em prol dos direitos das mulheres, como ocorreu em 1971 na França, o que, se espera, possa resultar na construção de um arcabouço legal pela real igualdade entre os homens e as mulheres, conforme dispõe o artigo 5˚, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

 


[2] Disponível em: https://www.france-memoire.fr/dossiers/manifeste-des-343. Consulta em 26/1/2023.

[3] Posteriormente, Simone se tornou a primeira mulher a presidir o Parlamento Europeu.

[4] "Considérant que, dans ces conditions, il n'appartient pas au Conseil constitutionnel, lorsqu'il est saisi en application de l'article 61 de la Constitution, d'examiner la conformité d'une loi aux stipulations d'un traité ou d'un accord international". Disponível em: https://www.conseil-constitutionnel.fr/decision/1975/7454DC.htm. Acesso em 26/1/2023.


[5] Décide : Article premier : Sont déclarés conformes à la Constitution les articles 2, 4, 5, 8 ainsi que le V de l'article 19 de la loi relative à l'interruption volontaire de grossesse et à la contraception.
Article 2 : La présente décision sera publiée au Journal officiel de la République française.

Délibéré par le Conseil constitutionnel dans sa séance du 27 juin 2001, où siégeaient : MM. Yves GUÉNA, Président, Michel AMELLER, Jean-Claude COLLIARD, Olivier DUTHEILLET de LAMOTHE, Pierre JOXE et Pierre MAZEAUD, Mmes Monique PELLETIER, Dominique SCHNAPPER et Simone VEIL. Journal officiel du 7 juillet 2001, page 10828 Recueil, p. 74 ECLI : FR : CC : 2001 : 2001.446.DC. Décision n° 2001-446 DC du 27 juin 2001. Disponível em: https://www.conseil-constitutionnel.fr/decision/2001/2001446DC.htm. Acesso em 26/1/2023.

[6] Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/21pdf/19-1392_6j37.pdf. Consulta em 26/1/2023.

[7] Disponível em: http://www.senat.fr/leg/ppl22 143.html#:~:text=%C2%AB%20Art.,Paris%2C%20le%2024%20novembre%202022. Consulta em 26/1/2023.

[8] Disponível em: https://www.conseil-constitutionnel.fr/le-bloc-de-constitutionnalite/texte-integral-de-la-constitution-du-4-octobre-1958-en-vigueur: Titre XVI – DE LA RÉVISION: ARTICLE 89. L'initiative de la révision de la Constitution appartient concurremment au Président de la République sur proposition du Premier ministre et aux membres du Parlement. Le projet ou la proposition de révision doit être examiné dans les conditions de délai fixées au troisième alinéa de l'article 42 et voté par les deux assemblées en termes identiques. La révision est définitive après avoir été approuvée par référendum. Toutefois, le projet de révision n'est pas présenté au référendum lorsque le Président de la République décide de le soumettre au Parlement convoqué en Congrès ; dans ce cas, le projet de révision n'est approuvé que s'il réunit la majorité des trois cinquièmes des suffrages exprimés. Le bureau du Congrès est celui de l'Assemblée nationale. Aucune procédure de révision ne peut être engagée ou poursuivie lorsqu'il est porté atteinte à l'intégrité du territoire. La forme républicaine du Gouvernement ne peut faire l'objet d'une révision. Consulta em 26/1/2023.

[9] Desde 1958, nenhuma revisão constitucional proposta por um membro do parlamento foi bem sucedida, na maioria das vezes por falta de acordo entre a Assembleia Nacional e o Senado (por exemplo, responsabilidade criminal do Presidente da República em 2001, direito de voto dos estrangeiros nas eleições municipais em 2000 e 2011, ratificação da Carta Europeia de Línguas Regionais ou Minoritárias em 2014).
As 22 revisões da Constituição da Quinta República, realizadas em aplicação do artigo 89 da Constituição, todas decorrem de projetos de lei apresentados pelo executivo. Todos eles foram aprovados pelo Parlamento reunido no Congresso em Versalhes, exceto a reforma de 2000 do mandato presidencial de cinco anos, aprovada por referendo.

[10] Disponível em: https://www.senat.fr/leg/ppl22-284.html. Consulta em 26/1/2021.

[11] A informação faz parte de um levantamento da organização não governamental Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), que contabilizou ao todo 13 novos projetos de lei relacionados ao tópico apresentados na Câmara no período. Desses, um é favorável à ampliação do direito, segundo a organização. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62041902. Consulta em 26/1/2023.

[12] Projeto de Lei do Senado n˚ 460/2016. Altera o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940) para tipificar o induzimento e a instigação ao aborto e o anúncio de meio abortivo, bem como para exigir o exame de corpo de delito e a prévia comunicação à autoridade policial para a não punição do aborto resultante de estupro; e aperfeiçoa a redação dos arts. 1º a 3º da Lei de Atendimento à Vítima de Violência Sexual (Lei nº 12845/2013). Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127777. Consulta em 26/1/2023.

Autores

  • é advogada do escritório Zanin Martins Advogados, especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional, mestre em Direito Internacional na Universidade Paris 1 Panthéon—Sorbonne e secretária-geral do Lawfare Institute.

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