Opinião

Consentimento da vítima nos delitos sexuais no Brasil e na Espanha

Autor

  • João Marcos Braga de Melo

    é advogado criminalista em Brasília pós-graduado em Direito Penal Econômico e em Direito Penal pelo ICCrim em parceria com a Universidade de Coimbra pós-graduado em Direito Penal e em Processo Penal pelo IDP mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e ex-professor voluntário da instituição.

31 de janeiro de 2023, 11h17

O jogador da seleção brasileira Daniel Alves encontra-se preso em Barcelona, por supostamente ter praticado o crime de agressão sexual do Código Penal espanhol. Embora tenha alterado a sua versão algumas vezes, ele alega, em sua defesa, ter tido relação sexual consensual com a pretensa vítima. E esse consentimento, ou não, será o centro gravitacional do processo. Isso porque na Espanha a violência e a grave ameaça deixaram de ser um elemento do tipo penal de agressão sexual. O que não impede que tais circunstâncias configurem um aumento de pena.

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O jogador brasileiro Daniel Alves
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Por meio da reforma denominada "solo si es si", no Código Penal espanhol se extinguiu a distinção entre os delitos de abuso e de agressão sexual. Até então a agressão sexual, mais gravemente punida, era a conduta de atentar contra a liberdade sexual de uma pessoa com o uso de violência ou de intimidação. De outro lado, o crime de abuso, menos grave, era a conduta de violar a liberdade sexual de uma pessoa sem o seu consentimento, mas sem o emprego de violência ou de intimidação. Ou seja, em ambos os casos não havia consentimento e a diferença residia no fato de que na agressão sexual se empregava violência ou intimidação enquanto no abuso não [1]. A agressão ou a intimidação eram elementares fundamentais para distinguir os crimes sexuais.

O legislador espanhol integrou as duas figuras delitivas no crime de agressão sexual e estabeleceu o consentimento como eixo central dos delitos contra a liberdade sexual. A partir da reforma do Código Penal, o delito de agressão sexual passou a se configurar da seguinte maneira (tradução livre):

"Artigo 178.
1. Será punido com pena de prisão de um a quatro anos, como responsável por agressão sexual, quem realize qualquer ato violador da liberdade sexual de outra pessoa sem consentimento. Apenas se entenderá que há consentimento quando este tiver sido manifestado livremente por meio de atos que, em face das circunstâncias do caso, expressem de maneira clara a vontade da pessoa.
2. Para efeitos do parágrafo anterior, a agressão sexual é considerada como atos de conteúdo sexual que são realizados usando violência, intimidação ou praticados com o abuso de uma situação de superioridade ou vulnerabilidade da vítima, bem como atos executados sobre pessoas que são privadas de compreensão ou com o emprego de violência mental e também como condutas que são realizadas quando a vítima tem a sua vontade anulada por qualquer motivo.
3. Caso não estejam presentes as circunstâncias do artigo 180, o órgão sentenciante, de maneira fundamentada, poderá reduzir a pena de prisão à metade ou aplicar multa de dezoito a vinte e quatro meses, em atenção à menor gravidade do fato e às circunstâncias pessoais do autor.
Artigo 179.
Quando a agressão sexual consistir em conjunção carnal por via vaginal, anal ou oral, ou introdução de membros do corpo ou objetos por uma das duas primeiras vias, o autor será punido como culpado de estupro com uma pena de prisão de quatro a doze anos."

Essa mudança normativa aconteceu em atendimento a pactos de direitos humanos dos quais a Espanha é signatária, como a convenção europeia de Istambul. Mas, principalmente, em razão das manifestações por direitos das mulheres em razão da discussão do caso "la manada".

Trata-se de um precedente onde cinco homens foram, inicialmente, condenados pelo crime de abuso sexual, por terem, em conjunto e num beco, mantido relações sexuais não consentidas com uma garota de dezoito anos. A Suprema Corte reverteu a condenação de abuso, menos grave, para o crime de agressão sexual, mais grave, e aumentou a pena dos réus.

Na ocasião, o Supremo Tribunal espanhol migrou o eixo da discussão da agressão ou intimidação para o consentimento da vítima. A partir dos fatos delineados nas instâncias anteriores, entendeu que não houve nenhum consentimento da jovem [2]. A comoção gerada pelo caso desencadeou as reformas da lei "solo si es si".

No Brasil, de outro lado, o crime de estupro está previsto em duas figuras. A primeira delas é o artigo 213 do Código Penal. Nela não há a previsão da falta de consentimento como elementar expressa do tipo penal [3]. Embora o núcleo do tipo seja constranger, a configuração do delito está condicionada à grave ameaça ou à violência. A segunda figura delitiva é a do artigo 217-A do Código Penal, que, em síntese, é a prática do ato sexual com a pessoa incapaz de com ele consentir, seja em razão da idade, de enfermidade, de deficiência mental ou por qualquer outra circunstância.

O crime de estupro no Brasil é, assim, a prática do ato sexual não consensual por meio violento, ou com o emprego de grave ameaça, ou com pessoa absolutamente incapaz de consentir. A ausência de consentimento como elementar expressa e central nos crimes contra a liberdade sexual apenas apareceu recentemente com o delito de importunação sexual. Nesse novo crime, pune-se a conduta de praticar ato libidinoso sem a anuência da pessoa ofendida. Há, contudo, uma grande hierarquização entre a figura do estupro e da importunação sexual.

A forma como o delito de estupro encontra-se configurado no Brasil acaba por ocultar relações patriarcais e violentas de poder. Assim como ocorreu na Espanha, teríamos alguma dificuldade de enquadrar o caso "la manada" na figura delitiva do artigo 317 do CP, embora seja uma clara e gravíssima violação à liberdade sexual da vítima.

A situação vivenciada hoje no Brasil é similar à da Espanha no passado recente. No nosso país ainda se separa os atos sexuais não consentidos com adultos capazes e conscientes nos crimes de estupro e de importunação sexual. O consentimento não é o elemento central do crime de estupro.

O Brasil, assim como a Espanha, é signatário de convenções sobre Direitos Humanos que versam especificamente sobre a proteção dos direitos das mulheres contra a violência de gênero, a Convenção de Belém do Pará e o Pacto de São José da Costa Rica. E, sob esse aspecto, recentemente a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou a Bolívia justamente por estabelecer uma hierarquia entre os delitos contra a liberdade sexual e por não levar em conta o consentimento como elemento principal do tipo de estupro:

"155. Por sua vez, o tipo penal de estupro, tal como está configurado na legislação da Bolívia, cria uma hierarquia entre os delitos sexuais que invisibiliza e diminui a gravidade da violência sexual cometida contra meninas, meninos e adolescentes. Além disso, restringe apenas a casos de 'sedução ou engano' os pressupostos para o afastamento ou afetação do consentimento da vítima. A redação anterior ignorava outras possibilidades condicionantes particulares da vulnerabilidade da vítima e encobria relações pautadas por assimetria de poder. Assim, este Tribunal entende que o tipo penal de estupro, tal como estava e está previsto na legislação da Bolívia é incompatível com a Convenção Americana, de modo que, em qualquer hipótese de conjunção carnal com pessoa entre 14 e 18 anos, sem o seu consentimento ou em um contexto em que não se pode inferir seu consentimento por sedução, engano, abuso de poder, coação, intimidação ou outra razão, possa estar contemplado o delito de violação.
156. Por todo o exposto, a Corte conclui que o Estado é responsável pela violação dos direitos da infância, à igualdade ante à Lei e à proteção judicial, nos temos dos artigos 19, 24 e 25 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 da mesma, assim como por descumprir das obrigações derivadas dos artigos 7.b), 7.c) e 7.e) da Convenção de Belém do Pará, em prejuízo de Brisa De Ângulo Losado."

A relevância de se tornar o consentimento como eixo central dos delitos contra a liberdade sexual e de se retirar as elementares violência e grave ameaça do tipo de estupro foram ressaltados no voto do juiz Rodrigo Mudrovitsch:

"A resistência exigida pelo tipo penal dificulta, ademais, que casos sejam penalmente solucionados por questões probatórias, visto que o Poder Judiciário exigiria, sob essa ótica, a prova física não só da incapacidade de resistir, como também da demonstração de resistência, requisitos de difícil verificação probatória. Essa situação é agravada pelo fato de que, por várias razões (incluindo medo de retaliação, perda de apoio familiar ou estigma social), muitas vítimas não denunciam imediatamente a violência sexual – o que é particularmente verdadeiro para crianças, que podem não perceber que os atos cometidos contra eles constituem crime. Como resultado, as vítimas que demoram a denunciar a violência se deparam, muitas vezes, com dificuldades — ou até impossibilidade — de obter provas físicas ou médicas, como lesões corporais, para mostrar que violência física adicional foi usada durante a violação"

É claro que é complexa a estruturação dos tipos penais dos delitos dessa natureza, especialmente quando se opta por definir legalmente o consentimento. Na Espanha, por exemplo, a redação de que “apenas se entenderá que há consentimento quando este tiver sido manifestado livremente por meio de atos que, em face das circunstâncias do caso, expressem de maneira clara a vontade da pessoa” vem enfrentando duras críticas doutrinárias, especialmente sob o ponto de vista da presunção constitucional de inocência.

De toda forma, a discussão sobre o consentimento da vítima como elemento central dos crimes contra a liberdade sexual precisa ser inaugurada no Brasil por representar um avanço na proteção dos direitos humanos, já em aplicação na Espanha, na Alemanha [4] e na Dinamarca [5] e, concretamente cobrado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.


[1] MALLENT, Lara Esteve. Consentimento y dicotomia entre agresión y abuso em los delitos de naturaliza sexual.

[2] A conclusão da Suprema Corte Espanhola: "7. Dos fatos acima comprovados resulta claro que há erro de subsunção jurídica por parte do Juízo de Instância conforme sustentado pelas acusações. Neste caso, não houve consentimento por parte da vítima, criando-se uma intimidação que emerge sem dúvida do terrível relato dos fatos provados, de onde deriva uma evidente coação da vontade da vítima, que foi totalmente anulada para poder agir em defesa do bem jurídico atacado, sua liberdade sexual" (Sentencia núm 344/2019).

Nos factos do acórdão do processo, afirma-se contundentemente que a vítima foi de repente puxada para um local afastado e estreito que especifica como uma cabine de formato irregular e de tamanho pequeno, com cerca de 3 metros quadrados, numa área sem saída para onde foi direcionada pelos réus, colocando um à sua frente e os outros atrás. Os réus a rodearam, todos eles de idades bem mais avançadas e de "compleição forte", situação em que se afirma que "ela se sentiu impressionada e sem capacidade de reação".

[3] Quase toda a doutrina entende que a ausência de consentimento é uma elementar tácita do crime de estupro. Há uma discussão com tons fortemente misóginos sobre a forma como o não consentimento se configura Nelson Hungria (1981, p. 107), por exemplo, defendia que não seria suficiente uma "platônica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição passiva ou inerte". Segundo seu entendimento, deveria haver, por parte da vítima, contrariedade decidida e manifestamente contrária, a qual só seria superada mediante violência física ou moral..

[4] "Alemania regula en el artículo 177 de su Código criminal los delitos de agresión sexual, coerción sexual y violación (todos los tipos delictivos se recogen en el mismo artículo), y entiende que consuma el delito de agresión quien “en contra de la voluntad discernible de una persona, realice actos sexuales con esa persona o haga que esa persona realice actos sexuales con ella, o haga que esa persona realice o consienta en actos sexualesrealizados por una tercera persona". (MALLENT, Lara Esteve. Consentimento y dicotomia entre agresión y abuso em los delitos de naturaliza sexual).

[5] el gobierno de Dinamarca ha alcanzado recientemente un acuerdo entre partidos de coalición para introducir legislación sobre la violación basada en el consentimiento. (MALLENT, Lara Esteve. Consentimento y dicotomia entre agresión y abuso em los delitos de naturaliza sexual).

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