Processo Familiar

Crianças protegidas em entrega responsável para a adoção

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) coordena a Comissão de Magistratura de Família e é autor de obras jurídicas de Direito Civil e Processo Civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).

29 de janeiro de 2023, 8h21

Resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), definida em sessão virtual (117ª) do colegiado, em face do Pedido de Providencias n. 0006474-79.2021.2.00.0000, tratou de dispor sobre o adequado atendimento de gestante ou parturiente que manifeste desejo de entregar o filho para adoção. A Resolução nº 485/2023, publicada na última quinta-feira última (DJe/CNJ nº 13/2023, de 26/1/2023, p. 2-5) implementa maior funcionalidade à entrega responsável e melhor atende aos normativos existentes (1).

Assinale-se, antes de mais, que a experiencia do projeto Entrega Responsável Judicial para Adoção (Erpa), registra o pioneirismo do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) com o Programa Mãe Legal (2009), desenvolvido na Comarca do Recife e o Programa Acolher (2011), em todas as demais Comarcas do Estado. Pelas iniciativas exitosas, o TJPE recebeu o prêmio Prioridade Absoluta, do CNJ, em 31 de agosto do ano passado (2).

A Lei nº 13.257/2016, que instituiu o Marco Legal de Primeira Infância (3), em seu artigo 23, ofereceu nova redação ao parágrafo 1º do artigo 13 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), acrescentando a cláusula "sem constrangimento", ao dispor que que as gestantes ou mãe, que manifestem interesse em entregar seus filhos para a adoção, serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude. Desde a Lei n° 12.010, de 3/8/2009, que esse dispositivo vigora no ECA, quando conferiu ao seu artigo 13 o referido parágrafo, então § único e sem a referida cláusula.

Em seu voto, o conselheiro Richard Pae Kim expressou que a Resolução será um modelo para os casos de entrega protegida, com as diretivas para fortalecer a cultura da adoção legal.

De fato. Uma rede de proteção da mulher que não deseja maternar já é prevista pelo Marco Legal por inferência lógica das redes de proteção e cuidado à criança nas comunidades (artigo 13 § 1º), "evitando-se situações extremas como abandono de crianças com risco de morte, abortos clandestinos e até mesmo entregas ilegais para adoção".

Anote-se, ademais, que a Lei n. 13.509, de 212.11.2017, a denominada Lei de Adoção, introduziu o artigo 19-A, e seus dez parágrafos, no Estatuto da Criança e do Adolescente, nestes termos:

Art. 19-A. A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude.
§ 1º A gestante ou mãe será ouvida pela equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, que apresentará relatório à autoridade judiciária, considerando inclusive os eventuais efeitos do estado gestacional e puerperal.
§ 2o De posse do relatório, a autoridade judiciária poderá determinar o encaminhamento da gestante ou mãe, mediante sua expressa concordância, à rede pública de saúde e assistência social para atendimento especializado.
§ 3º A busca à família extensa, conforme definida nos termos do parágrafo único do art. 25 desta Lei, respeitará o prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável por igual período
§ 4º Na hipótese de não haver a indicação do genitor e de não existir outro representante da família extensa apto a receber a guarda, a autoridade judiciária competente deverá decretar a extinção do poder familiar e determinar a colocação da criança sob a guarda provisória de quem estiver habilitado a adotá-la ou de entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional.
§ 5o Após o nascimento da criança, a vontade da mãe ou de ambos os genitores, se houver pai registral ou pai indicado, deve ser manifestada na audiência a que se refere o § 1 o do art. 166 desta Lei, garantido o sigilo sobre a entrega.
§ 6º Na hipótese de não comparecerem à audiência nem o genitor nem representante da família extensa para confirmar a intenção de exercer o poder familiar ou a guarda, a autoridade judiciária suspenderá o poder familiar da mãe, e a criança será colocada sob a guarda provisória de quem esteja habilitado a adotá-la.
§ 7º Os detentores da guarda possuem o prazo de 15 (quinze) dias para propor a ação de adoção, contado do dia seguinte à data do término do estágio de convivência.
§ 8º Na hipótese de desistência pelos genitores — manifestada em audiência ou perante a equipe interprofissional —  da entrega da criança após o nascimento, a criança será mantida com os genitores, e será determinado pela Justiça da Infância e da Juventude o acompanhamento familiar pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias.
§ 9º É garantido à mãe o direito ao sigilo sobre o nascimento, respeitado o disposto no art. 48 desta Lei.
§ 10. Serão cadastrados para adoção recém-nascidos e crianças acolhidas não procuradas por suas famílias no prazo de 30 (trinta) dias, contado a partir do dia do acolhimento.

É o que a recente Resolução nº 485/2023-CNJ disso cuida. E cuida, com maior pertinência e operacionalidade (08), a tanto que:

(i) determina que os Tribunais de Justiça estaduais instituam, no prazo de 180 dias, programas e atos normativos para disciplinar, na perspectiva intersetorial e jurisdicional, o atendimento da gestante ou parturiente que manifestar interesse em entregar seu filho para adoção.
(ii) prevê a participação de magistrados e servidores na concretização de programas e fluxos de atendimento, orientação e formação de profissionais no atendimento às mães e famílias que declarem a intenção de entrega de filhos para adoção.
(iii) estabelece capacitações a magistrados e profissionais das Varas de Infância e Juventude sobre a questão da entrega legal para adoção.

Pioneirismo.  Como antes referido, o Tribunal de Justiça apresentou-se pioneiro, quando, há 13 anos atrás, instituiu em 2009, o programa Mãe Legal, na 2ª Vara da Infância e Juventude do Recife, idealizado pelo juiz de direito Élio Braz, geratriz do Projeto Acolher. A esse respeito, em obra inédita publicada pelo TJ-PE, "Acolhendo Mulheres: a entrega de crianças para adoção em Pernambuco" (4) a experiência pioneira é bem referida pelos seus coautores, em uma doutrina aguda e pertinente apresentada.

Narra o desembargador Luiz Carlos de Barros Figueirêdo, presidente atual do TJ-PE, que o Programa Acolher, gerido de forma interinstitucional, concilia "a difícil e delicada tarefa de oportunizar o protagonismo da mulher quando, consciente, decide que não deseja exercer, naquele momento, a maternidade: aliando a prioridade absoluta constitucional do melhor interesse da criança, que precisará ter garantido seu inalienável direito de crescer em uma família sadia e que, sobretudo, a deseje".

Não há negar tratar-se o programa pioneiro de uma importante ferramenta social, propulsora da cultura da adoção, ao tempo que cria "espaços dialógicos para que mulheres, famílias e comunidades sejam ouvidas em suas necessidades e para que os encaminhamentos sejam respeitosos cm todos os envolvidos".

O não-maternar. O tema da não-maternidade por opção, quando a maternidade é negada por mulheres que engravidando optam por não criarem os seus filhos, tem suscitado intensa reflexão doutrinária por se constituir um tema-tabu, pouco discutido, como a desafiar a autonomia da vontade da mulher, colocada como mulher frente à maternidade.

Em sua obra "Mães arrependidas: Uma outra visão da maternidade" (2017) (5), a socióloga israelense Orna Donath, apresenta sua tese de que a pressão social sobre a maternidade é enorme, como se as mulheres não fossem livres para decidir se querem ou não ter filhos. Ela entrevistou inúmeras mulheres, inclusive algumas já avós que, arrependidas, lamentaram a maternidade indesejada.

No ponto, cumpre referir a necessidade do apoio psicossocial e socioassistencial à manifestação da vontade da pessoa gestante ou parturiente para uma tomada de decisão apoiada, amadurecida e consciente (artigo 4º, e incisos, da Resolução n. 485/23-CNJ)

O estudo de Donath tratando sobre a frustração em face das expectativas da maternidade, vincula-se a um importante estudo que descortinou o mito da maternidade por instinto natural. A historiadora e filósofa francesa Elisabeth Badinter em sua obra "Um Amor conquistado: o mito do amor materno" (1985), concluiu que o amor materno não constitui um sentimento inerente à condição de mulher, ele não é um determinismo, mas algo que se adquire" (6).

Retomando o tema, em nova obra "O Conflito: a mulher e a mãe", Badinter refletiu, então sobre as causas e os efeitos da queda acentuada nas taxas de natalidade, o aumento de mulheres que não querem ter filhos e, sobretudo, o renascimento do discurso naturalista para a reconquista da mulher ao seu papel de mãe, quando tem sido postergada bastante a maternidade (7). Segundo o LÉxpress, ela "denuncia a tirania da maternidade que está mandando as mulheres de volta para casa".

Diz-nos Badinter tratar-se de uma tradição ancestral, a mulher antes da mãe, embora o fato de três países terem supervalorizado, em comum, o papel maternal, "a ponto de nele absorver toda a identidade feminina". E acrescenta: "A mutter alemã, a mamma italiana e a kenbo japonesa oferecem uma imagem mítica da mãe, ao mesmo tempo sacrificial e todo-poderosa". Diversamente da maman francesa e da mummy inglesa, com mais independência financeira e vida profissional (pp.165-166).

A seu turno, Vera Iaconelli, em "Mal-Estar na Maternidade — do Infanticídio à Função Materna" (2020), cuida de discutir as atuais condições para a construção da função materna como uma construção psicossocial, "atravessada pela lógica dessubjetivante da contemporaneidade".

Realmente. A maternidade foi (re)inventada em 1762. A sua formulação, na concepção atual, foi feita por Jean-Jacques Rousseau, na obra "Emílio ou Da Educação", publicada naquele ano. Ele repudiou a instituição dominante das amas-de-leite, encorajando as mulheres a assumirem, em definitivo, a maternidade.

Foi a revolução do sentimento, no alvorecer do Iluminismo, escola filosófica articuladora do amor romântico. Desse movimento, o amor tornou-se a razão principal para o casamento e para o filho ser considerado o fruto ou um dom desse amor, introduzindo a ideia do amor materno — afirmou Badinter.

Antes, a infância era um relato de maus-tratos e de abandono afetivo, e nesse contexto de época, indiferentes as mães ao seu vínculo, a maternidade nada significava senão a mera capacidade de procriação, não dispondo de deveres ou direitos. Com as ideias de Rosseau e do Iluminismo, construiu-se a família nuclear, formada pelos pais e os filhos, onde a mãe tornou-se responsável pela criação da prole, realizando-se, como mulher, nas tarefas da maternidade e da esfera doméstica. Surge o ideal materno vitoriano: "a boa mulher em casa com seus filhos, seu piano e seus princípios".

Em "Mãe de Todos os Mitos", a jurista Aminata Forna, explica que o estilo de maternidade, que herdamos com raízes na família nuclear, tem origem na reação ao abandono da infância, quando as crianças eram colocadas nas rodas dos orfanatos (roda de expostos) e em um novo papel social da mulher, até então considerada inferior para a assunção de responsabilidades.

De fato, ela começou no final do século 18, vindo a celebração da maternidade influir na proteção da mulher e da criança, assegurando-lhe os seus valores sociais. Não é demais lembrar que o "matrimônio" canônico, em seu caráter sagrado e sacramental, significa, etimologicamente, a proteção da mãe e da prole. De efeito, Yvone Kniebiehler e Catherine Fouquet apontam que a exaltação do amor materno é fato recente na civilização ocidental. (8)

As mais recentes leis sobre infância e adoção e a Resolução nº 485/2023-CNJ cuidam de proteger a criança, em seus direitos fundamentais para a adoção e a convivência familiar, evitando a grave consequência de o filho indesejado tornar-se colocado em abandono.

As duas questões temáticas do abandono e da entrega são de importância existencial no trato do direito de família, a exigir uma doutrina mais aprofundada.

A doutrina familista portuguesa tem incursionado no tema da maternidade ou da paternidade indesejadas, bastando referir a interessante obra de Jorge Martins Ribeiro "O Direito do Homem a rejeitar a paternidade de filho nascido contra a sua vontade. A igualdade na decisão de procriar" (Almedina, 2013). Diante do denominado feminismo liberal, ele empreende defesa da autodeterminação procriacional, positiva ou negativa, por parte do homem, quando em confronto com a vontade da mulher por seus direitos reprodutivos.

Bem por isso, importa observar a latitude do artigo 12 da Resolução 485/2023, a dizer que a entrega dispensa a deflagração de procedimento oficioso de averiguação de paternidade (artigo 2º da Lei n. 8.560/1992).

Chama-se a atenção de o pai indicado ter o direito iniludível de garantir a sua paternidade sobre a entrega do filho, colocando-se, assim, em fundada crítica, o sigilo quanto ao nascimento (artigo 4º, VI, da Resolução 485/2023). Direito à sua autoderminação procracional positiva, porquanto o sigilo implicaria em nociva paternidade sonegada, por parte da gestante.

A Resolução nº 485 oferece respostas adequadas, para a concretude da entrega responsável, sem poder afastar, todavia, a identificação do pai, o que evitaria a própria adoção.

A criança será, sempre, freudianamente, o pai do homem. Protegida, fará o homem melhor.

Referências:
CNJ. Resolução n. 485/2023. Web:

https://atos.cnj.jus.br/files/original1451502023012663d29386eee18.pdf

TJPE/ASCOM. Ivone veloso e Micarla Xavier. CNJ uniformiza procedimento para entrega protegida de bebês para adoção – TJPE é pioneiro com o desenvolvimento de projetos na área. Web: https://www.tjpe.jus.br/comunicacao/noticias//asset_publisher/ubhL04hQXv5n/content/cnj-uniformiza-procedimento-para-entrega-protegida-de-bebes-para adocao-tjpe-e-pioneiro-com-o-desenvolvimento-de-projetos-na-area?

(2) https://www.cnj.jus.br/prioridade-absoluta-projeto-que-garante-direito-a-entrega-voluntaria-de-criancas-e-premiado/

(3) MARCO LEGAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA. Lei n. 13.257, de 08.03.2016. Web: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm

(4) TJPE. “Acolhendo Mulheres: a entrega de crianças para adoção em Pernambuco”. Luiz Carlos de Barros Figueirêdo, Cynthia Mauricio Nery e Paulo André Sousa Teixeira (Org.), 2021, 2ª ed., 240 p.,

(5) DONATH, Orna. “Mães arrependidas: Uma outra visão da maternidade”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

(6) BADINTER, Elisabeth. O Amor conquistado: O mito do amor materno. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 1985.

(7) BADINTER, Elisabeth. O Conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2011.

(8) KNIBIEHLER, Yvonne. FOUQUET, Catherine. L'Histoire des mères du Moyen-Âge à nos jours”, Paris, Éd. Montalba, 1980

(9) Web: https://www.cnj.jus.br/cnj-uniformiza-procedimento-para-entrega-protegida-de-bebes-para-adocao/

Autores

  • é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família e é autor de obras jurídicas de Direito Civil e Processo Civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).

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