Opinião

Temas 881 e 885 da Repercussão Geral e as decisões do STF sobre a coisa julgada

Autor

  • Hugo Funaro

    é advogado sócio do escritório Dias de Souza Advogados (SP) especialista em Direito Tributário pelo IBDT e mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP.

29 de janeiro de 2023, 13h16

No final de 2022, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento virtual dos Temas 881 [1] e 885 [2] de Repercussão Geral (RG), que tratam dos efeitos futuros da coisa julgada fundada em interpretação constitucional diversa da posteriormente adotada por aquela corte. Na ocasião, os ministros relatores concluíram que as decisões proferidas em controle concentrado ou na sistemática de repercussão geral se assemelham a uma norma jurídica, por possuírem efeitos vinculantes e eficácia erga omnes, aplicando-se, de forma automática e imediata, aos fatos geradores verificados a partir da publicação da ata de julgamento do precedente do STF. Por isso, aplicam-se as garantias constitucionais da irretroatividade e anterioridade da norma tributária.

Tendo em vista os impactos de tal entendimento sobre a estabilidade das relações jurídicas, o julgamento virtual foi suspenso em razão de pedido de destaque do ministro Edson Fachin e será reiniciado de forma presencial, o que se mostrou como medida prudente e louvável.

Afinal, está em jogo a garantia fundamental prevista no artigo 5º, XXXVI, da CF, que já foi tida pelo STF como um obstáculo à alteração de efeitos futuros da coisa julgada por norma superveniente, porque "se se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo alteração na causa, o que é vedado constitucionalmente" [3], ressalvadas as hipóteses legais de ação rescisória [4]. Nesse sentido, a 1ª Seção do STJ [5] e a Câmara Superior do Carf/MF [6] vinham reconhecendo a subsistência da coisa julgada diante de decisão superveniente em contrário do STF. O CPC/2015 passou a admitir ação rescisória nessa situação, porém, somente em relação às decisões transitadas em julgado na sua vigência [7].

Parece nítido, pois, que o acatamento das teses inicialmente propostas em relação aos Temas 881 e 885 implicaria a ruptura do atual cenário legal e jurisprudencial acerca dos efeitos da coisa julgada, o que, por si só, justificaria limitar a sua aplicação aos fatos posteriores à conclusão do julgamento, "no interesse social e no da segurança jurídica" (CPC, artigo  927, §3º) [8].

A par disso, vale destacar três questões afetas às garantias do devido processo legal e da segurança jurídica que deixaram de ser consideradas nos votos proferidos no ambiente virtual e merecem detida reflexão pelo STF, por ocasião da retomada do julgamento dos casos em tela:

1ª: A equiparação dos efeitos das decisões proferidas na sistemática de repercussão geral às decisões em controle concentrado depende de súmula vinculante (artigo 103-A da CF)?
Pela letra da Constituição, há uma diferença substancial entre decisões proferidas em controle de constitucionalidade concentrado ou em controle difuso com repercussão geral: as primeiras "produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal" (artigo 102, §2º); já a "repercussão geral" foi concebida como requisito de admissibilidade de recursos extraordinários (artigo 102, §3º), visando racionalizar o trabalho do STF, e não há previsão de que as decisões proferidas a partir de sua implementação tenham eficácia erga omnes nem efeito vinculante, senão quando editada resolução pelo Senado Federal (artigo 52, X) ou aprovada súmula vinculante por 2/3 dos membros do STF (artigo 103-A).

Assim, parece adequado compreender que, ausente manifestação do Poder Legislativo ou da maioria qualificada do STF, as decisões de repercussão geral só produzam efeitos inter partes.

Nada obstante, o voto condutor proferido pelo ministro Roberto Barroso no RE 955.227/BA (Tema 885) resgatou o tema da "mutação do art. 52, X, da CF/1988", sustentado no "julgamento da Reclamação nº 4.335", mas que, todavia, "não foi acatado pela maioria por concluir que esbarraria na literalidade do dispositivo". Propôs-se, assim, que o STF altere a sua orientação e "reconheça que a declaração de inconstitucionalidade, em sede de recurso extraordinário com repercussão geral, possui os mesmos efeitos vinculantes e eficácia erga omnes atribuídos às ações de controle abstrato. Nesses casos, a resolução do Senado, a que faz menção o art. 52, X, da CF/1988, possuirá a finalidade de publicizar as decisões de inconstitucionalidade, não configurando requisito para a atribuição de efeitos vinculantes erga omnes".

Contudo, a interpretação "evolutiva" da função da resolução do Senado não esgota a questão.

Subsiste a necessidade de exame dos efeitos da "repercussão geral" em face do artigo 103-A da CF, que criou a figura da "súmula vinculante" para que os temas constitucionais decididos pelo STF em controle difuso possam ter "efeito expansivo". Afinal, tanto a repercussão geral quanto a súmula vinculante foram introduzidas na Constituição por intermédio da EC 45/2004, o que sugere interpretação sistemática de tais figuras. Essa é, aliás, a exegese que se extrai do artigo 354-E do RISTF: "a proposta de edição, revisão ou cancelamento de Súmula Vinculante poderá versar sobre questão com repercussão geral reconhecida, caso em que poderá ser apresentada por qualquer Ministro logo após o julgamento de mérito do processo, para deliberação imediata do Tribunal Pleno na mesma sessão". Coerentemente, teses fixadas na sistemática de repercussão geral foram submetidas ao crivo da corte para transformação em súmula vinculante, justamente a fim de viabilizar a "vinculação das autoridades fiscais à decisão deste Supremo Tribunal" [9].

Vale recordar que há um rol taxativo de legitimados e ritos específicos para provocar a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula (CF, artigo 103-A, §2º), diferentemente do que ocorre com as ações comuns cujos recursos são examinados na sistemática de repercussão geral, as quais podem ser propostas por qualquer interessado. Ademais, basta maioria (seis votos) para assentar a (in)constitucionalidade de norma jurídica, ao passo que é necessária maioria qualificada (8) para aprovar súmula vinculante.

Como a Constituição discriminou os instrumentos cabíveis para dotar as decisões do STF de efeitos gerais e/ou vinculantes, admitir que tal objetivo possa ser alcançado por outra via, sujeita a regramento distinto, parece incompatível com a garantia do devido processo legal, considerando o regramento constante do próprio Texto da Carta Maior.

Nesse contexto, afigura-se necessário que o STF examine se a edição de súmula vinculante é (ou não) requisito para que as decisões proferidas na sistemática de repercussão geral produzam efeitos vinculantes e se, além disso, há eficácia erga omnes, de modo a obrigar também particulares e, mais ainda, tolher a eficácia da coisa julgada.

2ª: A publicação da ata de julgamento do leading case é momento adequado para cessar a eficácia da coisa julgada, tendo em vista as disposições legais e normativas que fixam como marco temporal o trânsito em julgado do precedente, em homenagem à segurança jurídica?

Os votos iniciais dos Temas 881 e 885 convergiram no sentido de que a publicação da ata de julgamento seria o marco temporal de vigência da "nova norma" produzida pelo STF, fazendo cessar a eficácia da coisa julgada, observado o princípio da anterioridade.

Entretanto, é possível que as teses firmadas venham a ser alteradas, ou que seus efeitos sejam modulados, mediante a oposição de embargos de declaração. Diante disso, afigura-se incompatível com a função de estabilização do direito, atribuída à coisa julgada, que se admita a cessação de seus efeitos antes de se tornar definitiva a decisão superveniente do STF, pois somente então haverá certeza sobre a sua validade e eficácia.

Nesse sentido, o atual Código de Processo Civil estabeleceu como marco temporal, para o ajuizamento de ação rescisória contra decisão proferida na sua vigência, o "trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal" (CPC/2015, artigos 525, §15 e 535, §8). A opção do legislador merece ser prestigiada, sob pena de haver critérios legais e jurisprudenciais conflitantes acerca do momento em que o julgado superveniente do STF deva ser observado pelas partes da relação jurídica acobertada pela coisa julgada. Até porque, a própria União vinha orientando os contribuintes a observar a decisão que lhes era favorável até o trânsito em julgado do precedente firmado pelo STF em sentido contrário (Parecer PGFN 492/2010 [10]).

3ª: Convém aguardar a oposição de eventuais embargos de declaração para deliberar sobre a modulação dos efeitos de tese que venha a flexibilizar a coisa julgada?

Diante do exposto, parece clara a necessidade de modulação de efeitos de qualquer decisão que venha a flexibilizar a eficácia da coisa julgada, para que a tese fixada só alcance fatos geradores ocorridos posteriormente ao julgamento dos Temas 881 e 885, ou, quando menos, após o trânsito em julgado dos leading cases referentes aos respectivos tributos em discussão.

Embora diversos ministros tenham reconhecido, num primeiro momento, a necessidade de modulação das teses relativas aos Temas 881 e 885, os votos foram alterados para excluir o ponto. Como a questão é relevante, é razoável supor que se tenha preferido aguardar pedido de modulação em eventuais embargos declaratórios, como se deu em outros casos [11].

Ocorre que a eventual flexibilização da garantia individual da coisa julgada terá impacto significativo na esfera jurídica dos contribuintes, a justificar pronta deliberação quanto à modulação dos efeitos de decisão do STF que a autorize. De fato, no interregno entre a publicação da ata de julgamento dos Temas 881 e 885 e o julgamento de embargos declaratórios, poderá haver a lavratura de autos de infração com exigência retroativa de créditos tributários e a prolação de decisões em processos administrativos ou judiciais que julguem legítima a exigência de tributos que, diante do cenário legal e jurisprudencial vigente, se reputavam indevidos, gerando reflexos financeiros graves para os contribuintes.

Assim, parece de todo conveniente que, na hipótese de o STF ratificar as teses que foram propostas para os Temas 881 e 885 em ambiente virtual, seja imediatamente reconhecida a necessidade de modulação dos efeitos de ambas as decisões, de forma que os interessados possam se pautar por regra única e se planejar de forma clara e segura, evitando novos litígios.

 


[1] RE 949.297/CE – rel. min. Edson Fachin.

[2] RE 955.227/BA – rel. min. Roberto Barroso.

[3] ADI 493/DF, rel. min. Moreira Alves, j. 25-6-1992, DJ de 4-9-1992.

[4] MS 23.665/DF, rel. min. Maurício Corrêa, j. 5-6-2002, DJ 20-9-2002; RE 589.513 ED-EDv-AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 7-5-2015, DJE de 13-8-2015; RE 611.503, red. do ac. min. Edson Fachin, j. 20-9-2018, DJe de 19-3-2019. Tema 360 da RG].

[5] "Não é possível a cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade formal e material da exação conforme concebida pela Lei 7.689/88, assim como a inexistência de relação jurídica material a seu recolhimento. O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade" (REsp 1.118.893/MG, rel. min. Arnaldo Esteves de Lima, j. 23-3-2011, 1ª Seção, DJe de 6/4/2011. Tema Repetitivo 340).

[6] Citem-se os seguintes acórdãos: 9101-005.706, red. ac. Caio Cesar Nader Quintella, j. 26-8-2021, DOU: 24/09/2021; 9101-006140, red. ac. Cons. Luis Henrique Marotti Toselli, j. 7-6-2022, DOU: 17-8-2022.

[7] "Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir:

(…)

III – inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;

(…)

§ 5º. Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

(…)

§ 8º. Se a decisão referida no § 5º for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

(…)

Art. 1.057. O disposto no art. 525, §§ 14 e 15 , e no art. 535, §§ 7º e 8º , aplica-se às decisões transitadas em julgado após a entrada em vigor deste Código , e, às decisões transitadas em julgado anteriormente, aplica-se o disposto no art. 475-L, § 1º , e no art. 741, parágrafo único, da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973."

[8] MS 26.603, rel. min. Celso de Mello, j. 04-10-2007, DJ de 19/12/2008; RE 646.313 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 18-11-2014, 2ª T, DJE de 10-12-2014.

[9] PSV 132/DF, rel. min. Dias Toffoli, j. 15-04-2020, DJE de 24/02/2020.

[10] "81. Assim, os precedentes objetivos e definitivos da Suprema Corte, advindos após a publicação deste Parecer, no sentido, por exemplo, da constitucionalidade de determinado tributo, fazem cessar, automaticamente, a eficácia das decisões tributárias transitadas em julgado que lhes forem contrárias, de modo que, assim que os respectivos acórdãos transitarem em julgado, o Fisco poderá voltar a cobrar os tributos relativos aos fatos geradores praticados pelos contribuintes-autores a partir de então."

[11] Vide, e.g., "esclarecimentos" no acórdão do RE 574.706/PR (rel. min. Cármen Lúcia, j. 15-03-2017, Dje: 02-10-2017).

Autores

  • é advogado tributarista, sócio do escritório Dias de Souza Advogados Associados e mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP.

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